¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, agosto 30, 2004
 
MORTE À VARIG


Não me apraz falar em números quando escrevo. Hoje, as circunstâncias o exigem. Há alguns anos, reencontrei uma amiga gaúcha que há muito não via, e convidei-a para um chope no Brahma, na época em que o Brahma tinha dois bandoneóns, que continuavam tocando até mesmo quando os músicos dormiam. Ela voltava de uma viagem a Portugal e estava inquieta para trocarmos fichinhas. Mal iniciamos a pauta da noite, observei:

- Espero que não tenhas ido pela Varig.

Ela pulou em seus tamancos. "Não vim aqui para ser agredida. Ou mudas de assunto ou vou embora agora mesmo".

Ou seja, ela havia viajado pela Varig. O que me surpreendeu foi a intensidade da reação. Pacientemente expliquei que não pretendia agredi-la. Que se quisesse ir embora, que fosse. Mas isso não me impediria de dizer-lhe que só um viajante burro viaja pela Varig. Ou aqueles patrioteiros furibundos, que insistem em prestigiar "o que é nosso", por pior que seja. Ou ainda aqueles monoglotas atrozes, prisioneiros do idioma, que têm medo até de enfrentar uma aeromoça em espanhol. Ela pagara cerca de dois mil dólares por ida-e-volta. Ora, na época uma boa dezena de companhias aéreas fazia esse trajeto por algo em torno de 800, 700 e até mesmo 600 dólares. E com o que vai de 600 dólares a dois mil, dá pra fazer grandes festas em Lisboa.

Em todo caso, restava o enigma de sua reação violenta. Ocorre que a moça não só fazia psicanálise como estava se analisando com um desses vigaristas maiores que preparam os vigaristinhas menores para o ofício. Essa raça tem uma reação curiosa quando apertados contra a parede: "ou você muda de assunto ou levanto e vou embora". Várias vezes me encontrei em tais situações e, invariavelmente, a moça fazia psicanálise. No fundo, uma nostalgia da ditadura. Como infelizmente já não existia mais a censura do Estado, a moça instalava sua censura particular na mesa.

Mas falava da Varig. Há mais de três décadas viajo para o exterior, praticamente quase todos os anos, e sempre evitei a empresinha infame. Minhas primeiras viagens foram por mar, é verdade. Mas quando a falta de tempo me obrigou a voar, meu primeiro vôo foi pela LAP, Linhas Aéreas Paraguaias. Não lembro de tarifas nem da moeda da época - suponho que cruzeiros - mas o preço da passagem era um terço do preço praticado pela Varig. Havia um porém. A LAP não podia pegar passageiros no Brasil e levá-los diretamente à Europa. Tinha de voltar a Asunción e de lá repartir para a Europa. Brasileiro pode ser besta, mas há uma considerável parcela que não o é. Esta parcela era mais que suficiente para lotar qualquer vôo da LAP. A empresa tinha de partir de território paraguaio, mas nada exigia que o avião aterrissasse em território paraguaio.

Ora, aterrissar e decolar são operações que consomem não poucos dólares. Como não havia um só assento vazio no avião, este apenas sobrevoava Asunción e embicava rumo ao Norte. Várias vezes, sem querer, sobrevoei a capital paraguaia, sem jamais pôr os pés por lá. Essas incongruências perduram até hoje. Se você quer vir de Recife a São Paulo, por exemplo, sai mais barato comprar um bilhete Recife-Buenos Aires, pela Aerolíneas Argentinas, e descer discretamente em Guarulhos. Em minhas viagens, a Aerolíneas muitas vezes me salvou preciosas divisas, e até mesmo a Pluna uruguaia. Voar pela Varig era rasgar dólares.

Ano passado, convidei uma sobrinha que trabalhava em Londres para visitar-me em Roma. Ela nem me esperou. Descobriu uma passagem Londres-Roma-Londres por 50 libras e não resistiu. Ora, 50 libras são 250 reais. A distância entre Roma e Londres é de 1876 km e mais de duas horas de vôo. Entre Rio e São Paulo há 429 quilômetros e um vôo de 40 minutos. Quanto você paga por uma ida-e-volta neste trajeto, viajando pela Varig? Preço mínimo: 486 reais. Máximo: 920. Resumindo: por um trajeto quatro vezes menor que o de Londres-Roma, você paga, arredondando, de duas a quatro vezes mais.

Minha sobrinha, que trabalhou inclusive como garçonete para subsidiar seus estudos de inglês, logo encontrou outra viagem imperdível. Londres-Barcelona-Londres por 17 libras. A distância entre as cidades é de 1541 km e 17 libras significa 85 reais. Claro que esses não são os preços médios dos vôos na Inglaterra e muito menos na Europa. Pouco importa. O que importa é que uma garçonete, por exemplo, tem sempre a chance de passar um fim-de-semana em Roma ou Barcelona. Ajunte a isso o poder aquisitivo de um cidadão britânico e o salário médio de um brasileiro. A conclusão que se impõe a qualquer pessoa sensata é uma só: que morra a Varig.

Em 2.000, planejei uma viagem pela Escandinávia. Os preços da Varig beiravam os dois mil dólares. Fui à luta e encontrei uma passagem pela Swissair, São Paulo-Zurique-Oslo-Estocolmo-São Paulo por 669 dólares. Os patrioteiros que me desculpem, mas viajar pela Varig é atestado de estupidez.

A Varig, graças a suas relações sarnosas com Brasília, sempre afastou os brasileiros da Europa. Ou, enfim, do Exterior. Exercendo monopólio de vôos sobre o território nacional, sempre que pôde impediu que outras empresas oferecessem melhores preços aos viajantes. Recentemente, a Gol ofereceu vôos a 50 reais para 27 cidades brasileiras, fazendo concorrência até mesmo com ônibus. Acionado, o Departamento de Aviação Civil (DAC), correu imediatamente em socorro da Varig e cortou a chance de os brasileiros voarem como voam os europeus, isto é, voar barato.

A Varig, apesar de suas tarifas extorsivas, há anos não consegue sair do vermelho. No ano passado, o prejuízo da companhia foi de R$ 1,836 bilhão, ante um resultado negativo de R$ 2,867 bilhões contabilizados em 2002. Terça-feira passada, o The New York Times destacou a atual crise financeira da companhia brasileira de aviação. Segundo o jornal, o governo Lula está estudando a criação de um programa para salvar a Varig da falência, o que poderá resultar numa operação semelhante ao Proer - o programa de reestruturação dos bancos privados - que em anos passados foi amaldiçoado pelo PT.

Após infrutíferas tentativas de cooptar a TAM para safar a Varig da falência, o governo quer envolver o Ministério da Fazenda e o BNDES para criar um plano de salvação para a empresa. Ou seja: você, contribuinte, vai ser intimado a salvar uma empresa elitista e incompetente, que considera que voar é privilégio de gente fina. E cuja filosofia é impedi-lo de voar a preços humanos. Tudo isto com o pretexto de ajudar o setor brasileiro de aviação civil.

A história é antiga. O governo assume uma empresa falida, saneia suas finanças e a devolve ao mercado, bonitinha e para usufruto dos amigos do rei. Quem paga é você.

Que morram as empresas incompetentes. O governo petista assumiu um perfil capitalista, obediente às normas do FMI. Mas volta e meia tem uma recaída de socialismo e insiste em subsidiar a incompetência com dinheiro público. Alguém poderia preocupar-se com o desemprego dos funcionários. Bobagem. Quaisquer empresas que ocuparem o espaço corrupto da Varig necessitarão de pessoal de ar e de terra, devidamente treinados e com fluência no português.

O direito a viajar é algo que não está - mas deveria estar - na Declaração dos Direitos Humanos. Morte à Varig. Para que todo brasileiro tenha a mesma chance de voar que tem um garçom na Europa.


sexta-feira, agosto 27, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XXVI)


Verdade que a Aids empanou os encantos do nobre ofício. Sou de uma geração que não se entende bem com a camisinha. Hoje, em parte por precaução, tenho mantido distância das meninas. Digo em parte, pois há outras razões. Cheguei àquela idade em que uma ópera ou um bom livro consegue me excitar mais do que muita mulher. Teve época em que, se a Kiri Te Kanawa viesse cantar em Porto Alegre e eu tivesse a perspectiva de uma noite com uma menina, a Kiri não contaria comigo para ouvir seus trinados. Era a época da estupidez juvenil.

Há algum tempo - anos 90, ainda na época do fax - percorrendo os classificados que anunciam acompanhantes e massagistas na Folha de São Paulo, encontrei uma que dizia enviar sua foto por fax. Maravilha, pensei, a tecnologia contemporânea a serviço do mais antigo dos ofícios. Paguei para ver. Telefonei pra moça e dei-lhe meu número de modem. Ela foi entrando aos poucos na tela, seu corpo levou seis minutos para chegar todo.

Por alguns dias a tive prisioneira na memória de meu disco rígido, em lingerie, "peitos durinhos e bumbum arrebitado", como anunciava. Telefonei para agradecer-lhe a cortesia, perguntei quanto custavam seus serviços. Cem dólares a hora, me respondeu. E aí a velha profissão perdeu para a tecnologia de ponta. Por cem dólares eu comprava uma enciclopédia em CD-ROM, que me oferecia centenas de horas de aprendizado ou lazer. Sem precisar usar camisinha. Verdade que o sexo sempre valeu mais que a cultura. Hoje, no mercado informal - para usarmos um neologismo - você consegue uma Britannica por 20 reais. Se for buscar naquilo que Marx chamava de Lumpenproletariat, certamente encontrará mulher pelo mesmo preço. Mas aí sexo não é alegria, e sim tristeza. O que está acabando com a prostituição - já disse alguém - é o amadorismo.

Nos dias de Europa, pouco as freqüentei. Um primeiro problema, o abismo entre as tarifas tupiniquins e as de Primeiro Mundo. Como bolsista ou turista, pagaria excessivamente caro por algo que, afinal, no Brasil, é tão bom ou melhor que lá. Em uma passagem por Copenhague, em um sexklubb, uma menina de óculos, com perfil de universitária, me propôs durante um lifeshow algumas carícias orais. Topei. Ao pagá-la, senti-me na obrigação de pedir desculpas. Via-se que não era do ramo e fazia aquilo como bico. Enfim, revendo o episódio a partir destes dias, em que presidentes constrangem estagiárias a felações, não me sinto tão vil. Ainda em Copenhague, tentei uma profissional nas ruas do ofício. I speak a little english, fui avisando. It's enough, me disse a moça. No mundo do comércio, poucas palavras bastam.

Jamais me entendi bem com elas no estrangeiro. A relação com a prostituta exige uma cumplicidade sociológica e até mesmo vernácula. Em Paris, mais para ver como era, visitei duas. A primeira anunciava várias modalidades, desde sexo à espanhola, à francesa, à sueca, à grega e à inglesa. Fiquei intrigado. Já havia vivido na Suécia e nada via de diferente na sexualidade aborígene. A oferta era tão cosmopolita que não resisti. Fui chez elle e perguntei por cada fórmula. À espanhola, sei lá porque, era entre os seios. À francesa, era oral. À sueca, manual, à grega anal. A cada parâmetro, o preço ia subindo. Bom, e à inglesa, como é que é? - quis saber.

Era o mais caro dos menus. Na época, cerca de mil francos. Deveria ser o melhor. Em que consiste? "Eu te algemo na cama, sapateio em cima de você e depois uso um chicote". Merci bien, chérie, nesta altura sou mais um papai-mamãe. O ser humano é mistério profundo. Nunca entendi como sentir prazer na dor. Já os britânicos, parece que entendem.

A segunda, Madame Brouillard, uma felliniana e circunspecta senhora de óculos que fazia ponto na entrada da rua Saint Denis. Em homenagem a Fellini - ou talvez a mim mesmo - contratei-a. Ela me lembra hoje a mais esteatopígica das personagens da Cidade das Mulheres. Em outro giro por Paris, revi Madame Brouillard no mesmo ponto, em um inverno ameno, envolta nas brumas que lhe davam o nome, eterna, hierática e com ar professoral. Claro que eu não ocupava espaço algum em sua memória.

Que mais não fosse, eu não fora à Europa para pagar mulheres. Me sentiria o último dos homens se não as tivesse de graça.

terça-feira, agosto 24, 2004
 
AZALÉIAS DE AGOSTO



Era agosto. Elas se abriam em meu jardim com essa obscenidade com que sempre se abrem as flores, cumprindo sua missão natural de flores. Quanto mais floresciam, mais fenecias. Todos as manhãs eu atravessava aquele festival orgíaco de vermelho, rosa, branco e roxo, rumo ao amarelo ictérico que começava a envelopar tua pele, essa pele que por tantas décadas acarinhei. "Onde estiver, vou sentir tua falta" - me disseste, com voz que jamais senti tão grave. Querendo afagar-me, suspeitando que pela última vez, te enganavas. Não estarás em parte alguma. Partiste para o grande nada, onde nada existe e ninguém sente falta de ninguém.

Quem vai sentir tua falta, todos os dias até o último deles, é este que fica e que em algum lugar sempre estará. Pelo menos até o dia em que não mais estiver. Quem parte descansa. Sofre quem fica. O que até me consola um pouco. Quem está sofrendo, pelo menos não és tu.

De novo é agosto e elas retomaram seu ritual exibicionista. Paranóicas, escondem-se nas primaveras e agora torturam meus invernos. Não apenas os meus, mas os de tantos outros cujos seres amados escolheram agosto para partir. Certa noite de setembro, eu conversava com jovens já contaminados pela resfeber, enfermidade nórdica que significa febre de viagens. Sedentos de vida, perguntaram a este ser tantas vezes acometido pela doença: qual é a mulher mais linda do mundo? Em que geografias pode ser encontrada?

Caí em prantos. A mulher mais linda do mundo, eu a conheci. E a tive. E agora não mais a tinha. Não a encontrara em distantes longitudes nem em países exóticos. Encontrei-a a meu lado, neste prosaico país, e nunca mais a abandonei. Quis a vida - ou talvez tenha quisto eu - que tivesse centenas de mulheres, algumas muitas queridas, outras nem tanto mas também desejadas, mais uma multidão de rostos mais ou menos anônimos, corpos sempre lembrados. Mentira da vida, mentira minha. Em verdade, tive só uma. Tu, que partiste no auge das azaléias.

"Eu não tenho medo da morte" - me disseste ainda, um pouco antes da passagem rumo ao nada. Mesmo desbotada pelo palor da vida que foge, estavas linda como nunca estiveste. Em tuas quase seis décadas, conservavas ainda aquele eterno rostinho de criança, que a passagem dos anos jamais conseguiu roubar-te.

Sedada, já no torpor da morte, chamaste tuas últimas energias, te ergueste no leito. Levantando o dedinho, didática qual professora falando a seus pupilos, sussurraste com o que te restava de voz: "E se fizéssemos assim: eu assino um documento: eu, TKM, em pleno uso de minhas faculdades mentais, declaro que quero ter meus restos cremados no cemitério da Vila Alpina". Reuni minhas forças e consegui balbuciar: não te preocupa, Baixinha adorada, isto há muito está combinado, verme algum sentirá o gosto de tuas carnes. Tuas cinzas, vou jogá-las de alguma ponte em Paris, uma daquelas pontes que tanto amaste, para que saias navegando mares afora.

Passada a mensagem, te reclinaste em paz.Mas descumpri o trato. Não as joguei em Paris. Ficarias muito longe de mim, navegarias talvez por mares gelados e hostis, encalharias em geleiras e te perderias em fiordes, longe de meu calor. Com carinho, te plantei entre os rododendros e todas as manhãs passo entre ti e murmuro: adorada. É bom te cumprimentar. Mas como dói.

A vida nos foi pródiga, e isso é talvez o que mais machuque. Nestes últimos meses, tenho sentido uma secreta inveja de homens que casam com megeras horrendas. Quando elas partem, começa a felicidade. Se morrer feliz é o almejo de todo homem, esta graça não mais está reservada a quem um dia foi feliz. É duro conjugar certos verbos no passado. Dizia Pessoa:

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...


Bobagens de poeta, que tanto influenciaram meus dias de jovem. Verdade que sem ti correrá tudo sem ti. Mas isto vale para as azaléias - seres insensíveis que sequer perceberam a ausência de quem as adorava tanto - e para o resto da humanidade. Para quem perdeu o ser mais lindo da vida, é mero jogo de palavras.

As azaléias em breve irão perdendo seu sorriso orgíaco, suas cores fenecerão e agosto que vem estarão de novo florescendo, despudoradas. Tuas cores feneceram agosto passado e pelo resto de meus agostos não mais te verei florir.

sexta-feira, agosto 20, 2004
 
O AUTOR ESQUECIDO


Modesta Proposta

Modesta Proposta para impedir que as crianças pobres da Irlanda sejam um fardo para seus pais ou para o País e se tornem úteis ao Público.


Jonathan Swift


É melancólico para aqueles que passeiam por esta grande cidade ou viajam pelo campo, ver as ruas, as estradas e as portas dos casebres repletos de mendigas, seguidas de 3, 4 ou 6 crianças esfarrapadas importunando o viajante em busca de esmolas. Essas mães, em vez de trabalhar para ganhar a vida honestamente, se vêem obrigadas a perder seu tempo na vagabundagem, mendigando para seus filhos desamparados que, logo que crescem, se tornam ladrões por falta de trabalho ou abandonam seu querido país natal para lutar como mercenários na Espanha ou serem vendidos na Ilha Barbada.

Creio que todos os partidos estarão de acordo em que esta prodigiosa quantidade de crianças nos braços, nas costas ou nos calcanhares das mães, e muitas vezes dos pais é, no deplorável estado atual do Reino, um grande agravo adicional; e portanto, quem encontrasse um método razoável, econômico e simples para fazer destas crianças membros úteis do Estado mereceria agradecimentos do público, além de ter sua estátua como salvador da Pátria.

Mas minha intenção está longe de se limitar aos filhos dos mendigos profissionais, vai mais longe e inclui todas as crianças de uma certa idade, nascidas de pais tão incapazes de sustentá-las como as que imploram a nossa caridade pelas ruas.

Pela minha parte, tendo há muito anos aplicado o meu pensamento a tão importante assunto, e pesado, de maneira amadurecida, as diferentes propostas de outros planejadores, vi-os sempre errar de maneira grosseira nos seus cálculos. É verdade que uma criança recém-nascida pode ser sustentada pelo leite materno durante um ano, com escasso alimento extra, que custam 2 xelins no máximo, que a mãe pode com certeza obter, ou seu equivalente em migalhas, no seu ofício legal de mendiga; e é exatamente quando as crianças têm um ano de idade, que eu proponho olhar por elas, de tal maneira que, em vez de serem um encargo para os pais ou para a paróquia, ou ficarem à espera de comida e roupa para o resto da vida, possam, pelo contrário, contribuir para alimentar e, em parte, vestir milhares de pessoas.

Uma outra grande vantagem do meu projeto é que ele evitará abortos voluntários e o horrível costume que as mulheres têm de matar os filhos ilegítimos, coisa muito comum entre nós, sacrificando, suspeito eu, as pobres crianças inocentes mais para evitar as despesas do que a vergonha, o que arrancaria lágrimas e piedade no peito mais selvagem e desumano.

Sendo o número de almas deste Reino avaliado geralmente em 1,5 milhão, entre as quais, eu calculo, devem ter aproximadamente 200 mil casais cujas mulheres são reprodutoras; deste número extrairei 30 mil, que se encontram em situação de manter seus próprios filhos, embora pense que nem sejam tantos assim, dada a situação de miséria em que se encontra este Reino; mas, admitindo isso, sobrarão 170 mil mulheres reprodutoras. Descontarei ainda 50 mil para as mulheres que abortam, ou cujos filhos morrem por acidente ou doença ainda no primeiro ano. Sobram, por ano, 120 mil crianças, filhas de pais pobres. A questão é, portanto, como este número será criado e sustentado, o que é, como já disse, no estado atual dos negócios, completamente impossível pelos métodos até agora propostas; pois não podemos empregar como artesãos ou agricultores; não construímos casas (refiro-me aos campos) nem cultivamos a terra; é muito raro que possam viver do roubo antes dos 6 anos de idade, a menos que sejam bastante precoces, embora eu creia que aprendem muito mais cedo os rudimentos, tempo esse que podem, pelo menos, ser consideradas apenas como postulantes, como me informou um distinto cavalheiro do condado de Cavan, que me garantiu só ter encontrado um ou dois casos abaixo da idade de 6 anos, mesmo numa parte do Reino tão afamada pela precocidade em tal arte.

Os nossos comerciantes me garantem que um menino ou uma menina antes dos 12 anos não é uma mercadoria vendável, e mesmo nessa idade, não valem, no mercado, mais de 3 libras ou 3 libras e 1/2 coroa no máximo, o que não compensaria os pais ou o Reino, custando as despesas de alimentação e farrapos pelo menos 4 vezes esta soma.

Eu vou agora, portanto, propor com toda a humildade as minhas próprias idéias espero, não provoquem a menor objeção.

Um jovem americano muito entendido, que conheço em Londres, me assegurou que uma criancinha saudável e bem criada constitui, com um ano de idade, o alimento mais delicioso, nutritivo e completo, seja cozida, grelhada, assada ou fervida; e não duvido que possa ser igualmente servida para um guisado ou um ensopado.

Portanto, proponho humildemente à consideração do público que, das 120 mil crianças já relacionadas no Reino, 20 mil sejam reservadas para a reprodução; destas, somente 1/4 será de machos, o que já é mais do que permitimos às ovelhas, aos bois e aos porcos; e minha razão é que raramente estas crianças são frutos do matrimônio, coisas não muito apreciada pelos nossos camponeses; em conseqüência, um macho será o suficiente para servir até 4 fêmeas. De maneira que as 100 mil restantes podem, com um ano de idade, ser oferecidas às pessoas nobres e de fortuna do Reino, aconselhando sempre às mães que as amamentem abundantemente durante o último mês, a fim de que fiquem bem gordinhas e rechonchudas para uma boa mesa. Uma criança dará 2 pratos em um jantar com os amigos e, quando a família cear sozinha, o quarto traseiro ou dianteiro será um prato razoável que, temperado com um pouco de pimenta e sal, será excelente refeição até o quarto dia, especialmente no inverno.

Verifiquei que, em média, uma criança recém-nascida pesa 12 libras e, em um ano completo, se for toleravelmente criada, alcançará 28 libras.

Concordo que esta comida será um pouco cara e, portanto, mais adequada para latifundiários que, como já devoraram a maioria dos pais, parecem ter melhores direitos sobre os filhos.

Haverá carne de crianças todo ano, mas será abundante em março, um pouco antes e um pouco depois; porque, como afirma um autor muito sério, um eminente médico francês, sendo o peixe uma dieta bastante prolífica, nascem, em países católicos romanos, mais crianças cerca de 9 meses depois da Quaresma do que em qualquer outra época; por isso, contando-se um ano depois da Páscoa, os mercados serão melhor abastecidos do que é costume, dado que o número de crianças católicas é, pelo menos, 3 contra 1 neste Reino; havendo ainda outra vantagem adicional, a de diminuir a quantidade de papistas entre nós.

Eu já calculei que o custo da criação de um filho de mendigo (entre os quais incluo também os camponeses, trabalhadores e 4/5 dos agricultores) é de um ou dois xelins por ano, farrapos incluídos; e acredito que nenhum cavalheiro se negaria de pagar 10 xelins pela corpo de um bom bebê gordo, do qual, como disse, extrairá 4 pratos de excelente carne nutritiva, quando ele só tivesse para jantar algum amigo particular ou sua própria família. Deste modo, o proprietário rural aprenderá a ser um bom latifundiário e se fará popular entre os arrendatários, a mãe teria 8 xelins de lucro líquido e estaria em condições de trabalhar até que produzir outra criança.

Aqueles que são mais econômicos (como, confesso, exigem os tempos) podem desossar a corpo, cuja pele artificialmente preparada daria admiráveis luvas para damas e botas de verão para os cavalheiros refinados.

Quanto à nossa cidade de Dublin, matadouros podem ser construídos para este propósito nos locais mais apropriados, e açougueiros com toda a certeza não faltarão; embora eu recomende que se comprem, de preferência, crianças vivas e que sejam preparadas ainda quentes, logo após a facada, assim como assamos os porcos.

Uma pessoa de grandes méritos, verdadeiro amante da Pátria, cujas virtudes muito aprecio, dedicou-se ultimamente a estudar o assunto, para aperfeiçoar o meu projeto. Ela disse que, já que muitos cavalheiros deste Reino dizimaram seus veados, imaginava que a falta desta carne poderia ser suprida pelos corpos dos jovens garotos e mocinhas, não maiores de 14 nem menores de 12, já que é tão grande o número de ambos os sexos em todos os países a ponto de morrer de fome por falta de trabalho e de ajuda, e de pais, se vivos, ou parentes mais próximos que querem se livrar deles. Mas, com a devida consideração a tão excelente patriota, não posso estar de acordo com seus sentimentos: porque, no que se refere aos machos, meu conhecido americano me assegurou, com base em sua freqüente experiência, que sua carne é geralmente dura e magra, com sabor desagradável e que engordá-los não resolveria a questão. Agora, quanto às fêmeas, acredito humildemente que seria um desgaste para os cofres públicos porque acredito que elas, em breve, serão parideiras. E, aliás, não é improvável que algumas pessoas escrupulosas sejam levadas a considerar tal prática (embora com grande injustiça, é verdade) como um ato que beira a crueldade, o que, confesso, sempre foi para mim a mais forte objeção contra qualquer projeto, por mais bem intencionado que fosse.

Mas, para justificar o meu amigo: ele confessou que este expediente lhe fora metido na cabeça pelo célebre Sallmanaazor, natural da ilha Formosa, que veio a Londres há mais de 20 anos, e em conversa com o meu amigo lhe contou que, no seu pais, quando um jovem era condenado à morte, o carrasco vendia o corpo para as pessoas nobres como carne de primeira e que, no seu tempo, o corpo de uma garota de 15 anos, crucificada por tentativa de envenenar o Imperador, fora vendido ao Primeiro-Ministro de Sua Majestade Imperial e outros grandes mandarins da Corte, aos pedaços no patíbulo, por quatrocentos coroas. Tampouco não posso negar que, nem por isso o Reino estaria pior, se o mesmo fosse feito com várias garotas rechonchudas desta cidade, as quais, sem um centavo de suas fortunas, não podem sair de casa sem ser de liteira, nem freqüentar teatro ou assembléias com adornos importados que jamais poderiam pagar.

Algumas pessoas de espírito pessimista estão muito preocupadas com a grande quantidade de gente pobre; que está velha, doente ou mutilada, e me pediram que dedicasse meus pensamentos para encontrar uma possível solução que alivie a Nação de tão penoso fardo. Mas este assunto não me preocupa nem um pouco, porque é sabido que essa gente está morrendo e apodrecendo a cada dia, de frio e fome, de imundície e de vermes, tão rapidamente quanto razoavelmente se pode esperar. E quanto os jovens trabalhadores estão agora em situação quase que igualmente esperançosa: não conseguem trabalho e desfalecem de fome a tal ponto que, se algumas vezes são contratados para um trabalho ordinário, não têm força para cumpri-lo, estando assim o pais e eles próprios felizmente livres de males futuros.

Divaguei demais de maneira que devo voltar ao meu tema. Penso que as vantagens da Proposta que estou anunciando são óbvias e muitas, assim como da maior importância:

Primeiro, como já observei, ela diminuirá enormemente o número de papistas com que, todos os anos, nos vemos inundados, pois eles são os maiores produtores de crianças da Nação, assim como nossos mais perigosos inimigos, e que permanecem no pais só para entregar o Reino ao Pretendente, esperando tirar proveito da ausência de tantos e tão bens protestantes, que preferiram sair do Pais, a ficar em casa e pagar, em desacordo com a sua consciência, dízimos a um vigário episcopal.

Segundo, os arrendatários pobres terão algo de valor que a lei poderá confiscar em caso de necessidade e que os ajudará a pagar a renda ao latifundiário, se já foram confiscados seu cereal e seu gado, sendo o dinheiro coisa desconhecida entre eles.

Terceiro, como a manutenção de 100 mil crianças a partir dos 2 anos não pode ser calculada em menos de 10 xelins por cabeça por ano, ao Tesouro Nacional seriam, portanto, acrescentados 50 mil libras por ano, sem contar a vantagem do novo prato introduzido na mesa de todos os cavalheiros de fortuna do Reino, cujo paladar tenham um mínimo de refinamento, e circularia o dinheiro entre nós mesmos, já que os produtos serão inteiramente desenvolvidos e manufaturados por nós.

Quarto, as reprodutoras regulares, além de ganhar 8 xelins esterlinas por ano pela venda de suas crianças, ficarão livres do encargo de mantê-las depois do primeiro ano.

Quinto, esta comida atrairia igualmente uma grande clientela às tavernas, cujos proprietárias com certeza seriam sensatos para procurar as melhores receitas para prepará-la com perfeição; e conseqüentemente teriam seus estabelecimentos freqüentados por todos os distintos cavalheiros, que se orgulhariam, com razão, de serem entendidos em boa comida. E um talentoso cozinheiro, que sabe como agradar seus comensais, encontraria um modo de torná-la tão cara quanto lhes aprouvesse.

Sexto, isto constituirá um grande estimulo ao casamento, coisa que todas as nações sábias estimulam através de recompensas ou pela imposição de leis e penalidades. Aumentaria o cuidado e a ternura das mães para com seus filhos, cientes de que as pobres crianças teriam uma colocação segura na vida, prevista de algum modo pelas instituições, e que lhes dariam lucros em vez de despesas. Logo vertamos uma honesta competição entre as mulheres casadas para mostrar qual delas leva ao mercado a criança mais gorda. Os homens passariam a gostar de suas esposas durante a gravidez, tanto quanto agora gostam de suas éguas, vacas prenhas ou porcas quando estão prontas para parir, e não ameaçariam de bater nelas ou dar pontapés (como é uma prática tão freqüente) por medo de um aborto.

Muitas outras vantagens poderiam ser enumeradas. Por exemplo, seriam acrescentados alguns milhares de corpos à nossa exportação de carne em barricas; a propagação da carne de porco e o aperfeiçoamento da arte de preparar um bom bacon, de que temos agora tanta falta, devido ao abate em grande escala de leitões, tão freqüentes na nossa mesa, e que nada se comparam em sabor ou suntuosidade de uma criança de um ano completo, gorda e bem desenvolvida a qual, assada inteira, fará uma considerável figura num banquete senhor prefeito ou em qualquer outra recepção pública. Mas disto e de muitas outras não falarei, adepto que sou da brevidade.

Supondo que se mil famílias desta cidade comprasse, com regularidade, carne de criança, independentemente da que fosse consumido em ocasiões festivas, em especial casamentos e batizados, calculo que Dublin devoraria aí uns 20 mil corpos por ano, e o resto do Reino (onde, por certo, se venderiam a um preço mais barato) os 80 mil restantes.

Eu não penso em objeção alguma que possa ser levantada contra esta Proposta, a menos que se alegue que o número de habitantes no Reino ficaria muito reduzido. Isto, eu reconheço, é mesmo a principal razão de oferecê-la ao Mundo. Gostaria que o leitor observasse que estou concebendo este meu remédio para o Reino da Irlanda e não para outro que já tenha existido, exista, ou, acredito, possa existir sobre a face da Terra. Não me falem, portanto, de outros recursos: taxar os nossos ausentes em 5 xelins por libra de imposto; não comprar roupas nem móveis que não sejam da nossa produção ou fabrico; rejeitar, por completo, os materiais e os instrumentos que promovam o luxo estrangeiro; curar as nossas mulheres da mania das despesas que fazem por orgulho, vaidade, ociosidade ou jogo; promover um mínimo de economia, prudência e temperança; aprender a amar o nosso país, no que somos diferentes dos próprios lapões e dos tupinambás; deixar de lado nossas hostilidades e facções, e não agir mais como os judeus que se matavam uns aos outros no exato momento em que sua cidade estava sendo tomada; ter um pouco mais de cuidado em não vender por ninharia nosso país e nossas consciências; ensinar os grandes latifundiários a terem um mínimo de misericórdia para com seus sem-terras. Por fim, colocar um espírito de honestidade, zelo e saber em nossos comerciantes, os quais, se fosse resolvido comprar apenas produtos nacionais, unir-se-iam imediatamente para nos enganar e impor o preço, a medida e a qualidade, e nem nunca conseguiram fazer uma proposta, apesar de freqüente e ardentemente convidados para isso.

Portanto, repito, ninguém me venha falar em tais recursos ou outros semelhantes, enquanto não existir um fio de esperança de que se tentará alguma calorosa e sincera tentativa de colocá-los em prática.

Quanto a mim, cansado de oferecer, durante muitos anos, pensamentos vãos, ociosos e visionários, e afinal desacreditando totalmente do seu sucesso, felizmente descobri esta Proposta que, sendo absolutamente nova, ainda possui algo de sólido e real, com nenhum custo e poucas dificuldades, e com a qual não corremos nenhum risco de desagradar a Inglaterra. Pois a este tipo de matéria prima não condiria a exportação, a carne sendo de consistência por demais delicada para agüentar uma longa permanência no sal, ainda que eu talvez possa citar um país que devoraria com prazer nossa nação inteira sem ele.

Depois de tudo, não estou tão violentamente aferrado à na minha opinião que rejeite qualquer proposta, apresentada por homens sensatos, que possa ser considerada igualmente inocente, barata, fácil e eficaz. Mas antes que qualquer outra coisa venha contrapor ao meu projeto, e proponha outro melhor, espero que o seu autor ou autores tivessem a bondade de considerar, maduramente, dois pontos. Primeiro, no estado em que as coisas se encontram, de que maneira eles serão capazes de descobrir roupa e alimento para 100 mil bocas e costas inúteis. E, segundo, existindo neste Reino aproximadamente um milhão de criaturas de forma humana, cujos gastos em subsistência, somados, os deixaria com uma dívida de 2 milhões de libras esterlinas, incluindo-se àqueles, que são mendigos por profissão, à massa de agricultores, camponeses e trabalhadores, com suas mulheres e filhos, que são mendigos na prática; eu desejaria que estes políticos, a quem minha sugestão desagrada e que talvez sejam atrevidos a ponto de tentar refutá-la, perguntassem primeiro aos pais destes mortais se eles a estas alturas não consideram que teria sido uma grande alegria serem vendidos como comida com um ano de idade, da maneira que estou receitando, tendo assim evitado um perpétuo estado de infortúnio como o que vêm atravessando desde então, pela opressão por parte dos latifundiários, a impossibilidade de pagar o imposto sem dinheiro ou emprego, a falta dos mínimos meios de subsistência, sem casa nem roupa para a abrigá-los das inclemências do clima, e a inevitável perspectiva de legar a mesma ou maior miséria aos seus descendentes para sempre.

Declaro, com toda a sinceridade de meu coração, que não tenho o menor interesse pessoal em promover trabalho tão necessário, não tendo outra motivação do que o bem estar geral do meu País, desenvolvendo o nosso comércio, cuidando das crianças, aliviando os pobres e dando algum prazer aos ricos. Não tenho filhos de que me possa ganhar um tostão, tendo o meu mais novo nove anos, e minha esposa já passou da idade de os gerar.

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Escrito em setembro de 1729.


quarta-feira, agosto 18, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XXV)


A convivência mais intensa com elas ocorreu em Florianópolis. Era professor-visitante na UFSC, ganhava bem e algum bálsamo me era necessário para as crises de hipertensão após uma reunião de departamento. (Esta justificativa tem pouca sustentação: na verdade, sempre gostei do convívio delas). Ao final daqueles massacres mensais e às vezes semanais, em que egos amarrotados voltavam ofendidos e humilhados para seus lares, eu voava em um táxi para um endereço discreto na Adolfo Konder - a casa da Tê - ou para uma sauna explícita, na Anita Garibaldi. Enquanto os PhDeuses estavam preocupados em saber se Capitu havia ou não traído Bentinho, ao alcance de meu desejo havia uma dúzia de mulheres, nuas ou vestidas, ao meu dispor e à minha espera.

Dado o carinho com que sempre tratei as profissionais - as competentes, bem entendido - era cliente preferencial. Jamais desviei de calçada ao encontrá-las na Felipe Schmidt, em geral lhes fazia algum afago. Com algumas delas, me submeti ao sacrifício de tomar aquele café abominável do Senadinho. Uma profissional se sente mal quando evitada em público, e jamais causei este constrangimento àquelas meninas que tanto me alegraram os dias na ilha. Sempre as beijei com carinho ao encontrá-las na rua. Minhas diletas, orgulhosas de serem tratadas como gente por um universitário, quando na sauna, só se tornavam disponíveis aos demais clientes após o 'professor" ter-se decidido por uma delas. Diga-se de passagem, lá na ilha ganhei um nome de guerra que porto como comenda: Professor Paixão.

Para ser franco, o magistério gratificou-me mais no bordel que na universidade. Na UFSC, salvo raríssimas exceções - que se contar na ponta dos dedos me sobra um monte de dedos - as alunas queriam apenas o diploma para obter avanços salariais na função pública. Na casa da Anita Garibaldi, ao refugiar-me na cozinha para ler jornais, era abordado por meninas que preparavam vestibular. Não poucas vezes larguei minha leitura e passei às moças noções rápidas de história, geografia e literatura.

O bordel é uma instituição fascinante, pena que esteja acabando. Em São Paulo, por exemplo, a prostituição adquiriu uma dinâmica que envilece o ofício. As meninas anunciam nos classificados. O cliente, sem ter visto rosto nem corpo, dá um salto no escuro se contrata uma. O que gosto, na verdade, é chegar em um bar ou sauna e examinar as profissionais em oferta. Uma menina de Florianópolis, com quem tive tardes que não consigo esquecer, me perguntou um dia: "me escolheste pelas coxas, Paixão?" Aproveitei sua curiosidade para exercer minha pedagogia: "só um idiota escolhe uma mulher pelas coxas. A sensualidade está nos olhos", disse. Estou certo que até hoje ela me adora. E eu também.

Machista, dirá alguma leitora eivada deste stalinismo sexista, o feminismo. Discordo. Entre os muitos fenômenos contraditórios destes dias de orfandade ideológica, está o dos coletivos ou sindicatos de prostitutas organizados pelos padres católicos. Ou seja, a profissional é uma vítima, e como tal deve ser santificada. Mas o cliente, aquele que lhe garante o sustento, é visto como vilão. Nesta ótica hipócrita, redime-se um dos assinantes do contrato, enquanto o outro - sem o qual o contrato seria inviável - é condenado às quintas dos infernos.

Vontade é o que não me falta, confesso, de criar um sindicato de usuários das profissionais do amor, insistindo em mais competência e carinho no exercício do ofício. Só que, neste universo cada vez mais politicamente correto - versão hodierna da Inquisição - meu projeto talvez não tivesse muitos seguidores.

sábado, agosto 14, 2004
 
RUMO A 64


Existe a preocupação, em certos setores não-esquerdistas, de que o PT esteja encaminhando o país a um regime comunista. A estratégia petista, no caso, seria a pregada pelo pensador marxista italiano Antonio Gramsci, que consiste basicamente em infiltrar-se na cultura de uma sociedade antes da revolução - comunista, bem entendido. Quando esta ocorrer, os corações e mentes - para usarmos uma expressão cara a Richard Nixon - estariam tão contaminados que sequer perceberiam a mudança do regime.Desculpem-me os que assim pensam, mas discordo.
Discordo não só do fato de o PT estar encaminhando o Brasil rumo a um regime comunista, como também da eficácia do gramscismo como instrumento de luta. Verdade que a imprensa e o mundo universitário brasileiro estão imbuídos de uma visão marxista do mundo, mesmo quando jornalistas e professores nem marxistas são. Mas responsabilizar o teórico italiano por este fenômeno seria atribuir-lhe honras indevidas. Existe no Brasil um pequeno círculo de intelectuais que cultiva sua obra, afinal de algo se precisa viver. Mas este pequeno círculo não tem cacife para influir nos destinos deste inculto país.
Um militante não precisa ler grandes teorias para intuir que, dominadas a universidade e a imprensa, está controlada a cultura de uma nação. Os gramscianos históricos no Brasil são hoje acadêmicos aposentados, que jamais renegariam a doutrina de suas juventudes. É muito duro a um homem, no final de sua vida, reconhecer que tudo que escreveu não vale bosta nenhuma. Continuam então apegados à mentira que lhes deu prestígio e sustento. Árvore velha não dobra, quebra. Ou alguém imagina que um Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, Marco Aurélio Nogueira, Paulo Eduardo Arantes, Tarso Genro ou os tantos universitários que fizeram carreiras produzindo teses e artigos sobre Gramsci, iriam jogar ao lixo suas besteiras? É pedir demais ao perfeito idiota latino-americano.
Gramsci morreu em 37. Não foi em função de sua obra que aderiram ao stalinismo intelectuais como Sartre ou Brecht, Aragon ou Neruda, Jorge Amado ou Graciliano Ramos. O pensamento de Marx viciou como ópio a intelectualidade toda do século passado, e isto não se deve ao italiano. No fundo da alminha de todo marxista, há um cristão que renegou sua religião e a substituiu por outra, laica mas também totalitária. (Às vezes ocorre o percurso inverso). Tanto que, no Ocidente, o marxismo vingou com força exatamente em países católicos: Rússia, Itália, França, Espanha, Brasil. Em geografias protestantes, não teve maior sucesso. Se o português é a última flor do Lácio, inculta e bela, o marxismo é o último rebento do catolicismo, culto e feio. Gramsci é apenas um sacristão menor, mero suporte do andor.
Tampouco consigo crer que partido algum, por obsoleto que seja, consiga levar este país a regime comunista. Conseguirá o Supremo Apedeuta transformar esta sociedade pluralista em regime de um partido só? Eliminar eleições e substituí-las por uma farsa de candidato único? Colocar a oposição na cadeia? Acabar com a propriedade privada e os sindicatos? Criar gulags para dissidentes? Convencer médicos a contentar-se com 15 dólares por mês? Os temerosos que me desculpem, mas não consigo acreditar. É tarde demais para defender a quadratura da Terra.
Isso não quer dizer, é claro, que o partido do governo não queira instalar sua ditadura peculiar. O marxismo sempre correu nas veias do PT, faz parte de seu DNA. Não por acaso, volta e meia os ghostwriters do Supremo Apedeuta inserem algum autor stalinista em suas arengas. Se não dá mais para pensar em partido único, jornal único, supressão de eleições e gulags, alguma providência o partido do governo há de tomar para acabar com a oposição. Semana passada, Dr. Strangelove ergueu de novo o braço, em saudação a Jossif Wissarionowitsch Dschugaschwili, o Paizinho do Povos, também conhecido como Stalin, que em russo quer dizer "o de aço".
Duas foram as modestas proposições do governo: uma agência para controlar a produção cultural, a Ancinav, e um conselho para fiscalizar o jornalismo. Em uma só semana, duas cajadadas. A Ancinav controlaria cinema, televisão, TV paga, rádio e outras empresas que atuam em audiovisual, isto é, tudo aquilo capaz de influenciar a grande massa analfabeta do país.
Estamos voltando aos tempos do realismo socialista, também conhecido por zdanovismo. Esta tosca teoria, elaborada pelo teórico russo Andrei Zdanov e importada ao Brasil por Jorge Amado, foi o único estilo de arte permitido na URSS após a subida de Stalin ao poder e no fundo transformava a literatura e demais artes em um panfleto a serviço da revolução socialista. Diga-se de passagem, tem sido amplamente aplicada nas novelas da rede Globo, sem que jornalista algum a denuncie. Afinal, ninguém está a salvo de um dia bater nas portas do império Marinho para pedir emprego. A proposição só poderia ter saído da Casa Civil, controlada pelo bolchevique e agente cubano José Dirceu.
Para controlar os restantes alfabetizados, cria-se um conselho para censurar o jornalismo. Este foi proposto pelos pelegos da Federação Nacional dos Jornalistas.Não bastasse ser o Brasil o único país do mundo que exige diploma para o exercício da profissão, as prostitutas da classe querem agora cortar a voz do único poder que tem denunciado as corrupções do Executivo, Legislativo e Judiciário. O Supremo Apedeuta, apesar de apedeuta, é um homem sensível, sabe onde o calo dói. Não fosse a imprensa, tanto Lalaus como Dirceus e Meirelles permaneceriam impolutos em seus cargos. Lobo não come lobo. Lula é analfabeto mas isso ele consegue entender. Quer então calar a última instância de denúncias, a defesa mais ao alcance do cidadão, a imprensa.
Segundo um dos áulicos do Planalto, o ministro Berzoini, não há hoje instituição para "fiscalizar e punir as condutas inadequadas dos jornalistas". Ao que tudo indica, os aspones de Brasília ainda não informaram ao ministro que já existem um Código Penal e uma Lei de Imprensa, esta última seqüela do regime militar.Continuo não acreditando que o partido do governo consiga chegar a um regime comunista. Mas alguma ditadura há de se estabelecer. Não há marxista que agüente, nem mesmo os do Planalto, uma imprensa denunciando as mazelas do poder. Algo talvez ao moderno estilo chinês, ampla liberdade ao capital e liberdade nenhuma ao pensamento. De qualquer forma, uma espécie de continuidade do regime pós-64, quando os militares, em sua estreitez de caserna, impuseram ao país o que jamais deveriam ter imposto, a censura de imprensa.O novo passo rumo à ditadura será dado nos próximos dias.
Dia 18 próximo, o Supremo Tribunal Federal deverá decidir se suprime ou não um direito liquido, certo e adquirido. O direito dos inativos não pagarem contribuição previdenciária. O governo, que precisa de numerário para pagar os "heróis retroativos" que tentaram destruir a nação, está fazendo tudo para derrubar um dos pilares do regime democrático. Se este pilar, o direito adquirido, for derrubado, não há empecilho algum para que se derrubem os demais, tipo essas bobagens como direito à propriedade ou à herança. Estará então instaurado um novo tipo de regime ditatorial, o tupiniquim, aquele que nega direitos ao cidadão, preservando rigorosamente as formas institucionais.
Parabéns, ó brasileiros!
Já, com garbo varonil,
do universo entre as nações
resplandece a do Brasil.

terça-feira, agosto 10, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XXIV)


Se disser que me eduquei entre putas e comunistas, não estou fazendo nenhum jogo de palavras, como tampouco estou longe da verdade. Em verdade, não gosto da palavra puta, tornou-se pejorativa em seu curso na história. Prefiro falar de profissionais. Liberto das crendices católicas, fui delas me aproximando, com um misto de excitação e temor. Em Dom Pedrito, onde vivia nos cabarés, só conheci - no velho e sovado sentido bíblico da coisa - uma.

No rio Santa Maria, no passo do Don Pedrito, havia duas praias, antes que os arrozeiros destruíssem o rio. Uma destinada às famílias e, à jusante, a do baixo mundo pedritense. Mal descobri a praia das moças, me mudei para lá. Uma bela tarde, pus três delas em uma canoa e remei rio acima, queria levá-las ao universo que lhes era proibido. Navegamos serenamente entre a "gente de família", que aliás se comportou com elegância, sem demonstração alguma de escândalo. A aura execrável que me cercava, de catolicão que um dia pretendera acabar com a prostituição na cidade, transfigurou-se em coroa de louros. Coisa de dez anos depois, encontrei uma daquelas meninas em uma boate de Porto Alegre. Ao reconhecer-me, me levou para sua quitinete e não aceitou pagamento: "tu mereces, reconheci teu rosto, sempre foste um revoltado". Não sei se, algum dia na vida, recebi elogio que me tocasse tão fundo.

Só fui freqüentá-las com certa assiduidade em Porto Alegre. Não desconheço os embates mais ou menos desesperados com as pobres meninas da Voluntários da Pátria ou Riachuelo, nos dias de maior angústia e falta de dinheiro. Em um dos quartos que habitei, escrevi em um mural na parede dois versos de Geir Campos:

Comer o fruto amargo e não cuspir,
cumprir o trato injusto e não falhar.

Duas adolescentes, que apanhei nas proximidades da Faculdade de Filosofia, choraram boa parte da noite ao ler o poema.

Na universidade, a vida sexual tornou-se mais tranqüila. Só havia um problema. Para chegar aos braços de uma menina, era preciso citar muita Simone de Beauvoir, Wilhelm Reich, Henry Miller. Até mesmo com Carmen da Silva, uma feminista tupiniquim, se conseguia alguma coisa. As universitárias, filhas da classe média, teorizavam demais. A liberdade que as universitárias sonhavam, encontrávamos nas meninas que trabalhavam em farmácias ou lanchonetes, sem precisar citar autores europeus. Mesmo quando mais folgado, não traí as profissionais que me haviam aplacado ímpetos quase suicidas nos dias de solidão. Mas mudei de status, freqüentava agora as meninas das boates da Andrade Neves. Delas, eternas saudades. Particularmente de uma noite de festa, em que a aniversariante, uma de minhas preferidas, me elegera como convidado de honra, condição que me era desconhecida.

Levei-lhe uma dúzia de rosas, mal entrei senti que ela tentava conter as lágrimas. Lá estava todo o bordel, mas a atmosfera nada tinha de erotismo. Era uma reunião familiar, com crianças, mães, pais, filhos. Ela estava linda, vestida em patchwork. Entramos na sala de mãos dadas. Apresentações - em verdade desnecessárias, eu era freguês de livreta de quase todas -, brindes, alegria geral. Foi quando chegou um fotógrafo.

Os machos presentes debandaram, uns queriam saber que horas são, "sabe, lembrei que tenho um compromisso", outros se concentravam na cozinha. Na hora de partir o bolo, Carmen me olhou como quem aposta tudo em uma só ficha. Medo bobo. Partimos o bolo juntos, uma mãozinha na outra. Ela quis beijar-me, beijei-a. Por estas fotos, tenho muito carinho. Me imagino às vezes como político, disputando uma deputação qualquer. Um adversário me ameaça com aquelas fotos. Por favor, que as publique na imprensa, em cores e preferentemente ampliadas, que delas muito me orgulho.

Naqueles dias, como dizem os evangelhos, sempre me senti melhor entre as profissionais que em uma reunião de família, e não tenho razão alguma para negar estas preferências. Em família, por mais honesto que seja o relacionamento entre pais e filhos, anfitriões e convivas, sempre há dissimulação e zonas de sombra. Entre elas, a verdade crua do instinto, a ausência da hipocrisia. Naquela noite, enxuguei lágrimas no rosto de Carmen madrugada afora. E não foi só no rosto dela.



 
RECORDAR É RIR


Declarações de Jean Paul Sartre ao jornal parisiense Libération, em 1954:

"A liberdade de crítica é total na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. E o cidadão soviético melhora sem cessar sua condição no seio de uma sociedade em progressão contínua. Exceto alguns, os russos não têm muita vontade de sair do país... não têm muita vontade de viajar neste momento. Têm outra coisa a fazer em casa".

"Lá por 1960, antes de 1965, se a França continua estagnada, o nível médio de vida na URSS será de 30 a 40% superior ao nosso. Qualquer que seja o caminho que a França deve seguir para sair de seu imobilismo, para recuperar ser atraso industrial, para se constituir como nação diferente da de hoje, ele não pode ser contrário ao da União Soviética."


domingo, agosto 08, 2004
 
DO SUPREMO APEDEUTA

"O objetivo (desta competição) é conquistar vagas para os jogos paraolímpicos de Antenas, em 2004, nas modalidades basquete, vôlei masculino e feminino e adestramento. E aumentar a quantidade de vagas em atletismo, natação, ciclismo e esgrima".

"Todos vocês vão competir a uma vaga para Antenas? E quem é que acha que vai ganhar? Levante a mão aí para ver".
(Unifolha, 02/12/2003)

O Atlântico é apenas "um rio caudaloso, de praias de areias brancas, que une os dois países". Falando no Gabão sobre a aproximação entre o Brasil e aquele país.
(O Estado de São Paulo, 27/07/2004).

Leia mais em www.puggina.org


quinta-feira, agosto 05, 2004
 
QUESTÕES TEOLÓGICAS


Uma distante amiga me conta que rolou por uma escadaria e quebrou quatro dentes. "Poderia ter morrido, foi Deus quem me salvou".

Pergunta: não seria Deus quem empurrou?


segunda-feira, agosto 02, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XXIII)


Em post passado, prometi comentar a covardia de Erico Verissimo, em relação à grande peste do século. Quem acompanha minhas crônicas no Midiasemmascara, já conhece a história. Para quem não as acompanha, la revoilà. Quem levantou a lebre foi Sérgio Faraco, em seu livro Lágrimas na Chuva. O livro relata período de pouco mais de ano vivido pelo autor em Moscou, em 1963 e 64. "Depois de uma série de conflitos com chefetes políticos ligados aos partidos brasileiro e soviético" - diz-nos o editor na orelha - "Faraco foi internado em regime de reclusão, sob pesada bateria de medicamentos, numa clínica de reeducação. Era este, na época, um procedimento de rotina em relação àqueles que se rebelavam contra o ultra-esquerdismo do Partido".

Ora, quais foram os gestos de rebeldia do heróico mártir gaúcho? Pelo que lemos em sua memória, foram basicamente duas atitudes: mantinha relações com uma russinha e insistia em escutar Wagner a todo volume em seu dormitório. Fora isso, em uma viagem à Armênia, demonstrou insólita coragem ao perguntar a um mandalete local como podiam avançar na automação do que quer que fosse, se as moradias não dispunham de vasos sanitários e as necessidades eram feitas nos quintais, em latrinas. A tradutora nem sabia o que era latrina. Ou seja, os armênios não haviam chegado sequer ao conceito de latrina. Em função disto, o rebelde escritor foi enviado a uma clínica de reeducação, onde dispunha de quarto individual, com chuveiro e vaso sanitário (um progresso em relação à Armênia) e mais uma enfermeira que vinha pegar-lhe a mãozinha quando deprimido. Gulag classe A, com direito a cafuné. Pra dissidente algum botar defeito.

Do alto desta omissão, quarenta anos nos contemplam. Há quatro décadas, Faraco sentiu na carne o preço a ser pago, na União Soviética, por pequenas molecagens. Escritor, não lhe terá sido difícil imaginar o quanto custava qualquer discordância com a linha do Partido. Agora, já em idade provecta, a tardia madalena alegretense demonstra sua coragem denunciando fato ocorrido nos 60. Seu depoimento, se feito na época, seria de extraordinário valor para sua geração. Seria o relato insuspeito de um militante comunista que, em sua viagem iniciática ao paraíso soviético, fora tratado como doente mental apenas por escapadelas a uma disciplina absurda, típica de seminários católicos. Seria oportuníssimo, logo após 64.

Erico Verissimo pergunta a Faraco se não pensava escrever sobre sua estada na União Soviética. "Respondi que, de fato, tinha essa intenção, embora minha experiência não fosse edificante. Ele ficou pensativo, depois disse que, se era assim, talvez fosse ainda menos edificante narrá-la, enquanto vivíamos, no Brasil, sob uma ditadura militar. Ele tinha razão" - diz Faraco. Ora, os militares lutavam para que o Brasil não virasse o imenso gulag que o futuro escritor então testemunhara. Em função de um regime que jamais o pôs na prisão, mesmo sendo comunista, Faraco silencia sobre o regime comunista que o internou em um hospital psiquiátrico, mesmo sendo comunista.

A história se repete. Em 1929, o escritor romeno Panaïti Istrati publicou Vers l'autre flamme, primeira denúncia do stalinismo no Ocidente. Os originais deste livro levaram Romain Rolland, seu padrinho literário em Paris, a aconselhá-lo: "Isto será uma paulada a toda Rússia. Estas páginas são sagradas, elas devem ser consagradas nos arquivos da Revolução Eterna, em seu Livro de Ouro. Nós lhe estimamos ainda mais e lhe veneramos por tê-las escrito. Mas não as publique jamais". Istrati teve suas Obras Completas publicadas pela Gallimard, exceto Vers l'autre flamme. Que só foi republicado, na democrática Paris ... em 1980. Volto aos anos 60, Brasil. Erico Verissimo, conivente com a barbárie comunista, repassa a Faraco o covarde conselho.

Escritor, Faraco intuiu o que Erico há muito já intuíra. Se dissesse uma só palavrinha contra a Santa Madre Rússia, adeus editoras, adeus honras literárias, adeus imprensa amiga, adeus resenhas e teses universitárias. O gaúcho de Alegrete, que não teve sequer a hombridade de despedir-se da humilde moscovita que o aquecera nos seus dias cinzas às margens do Volga, baixa a crista. Mas seu livro tem um grande mérito: nos revela a cumplicidade com a tirania do escritor gaúcho tido como campeão da liberdade. Não por acaso, a universidade e imprensa gaúchas idolatram Erico.

A História é um lago que seca. Ao descerem, suas águas trazem à tona monstros insuspeitos. Todos os escritores gaúchos foram cúmplices da peste marxista, sem exceção. Dyonélio, por exemplo, após a evidência dos gulags, passou a escrever sobre a antiga Grécia. Foi o mesmo movimento espiritual de Faraco, que refugiou-se em Urartu, na Armênia. Josué Guimarães foi caixeiro-viajante a serviço de Pequim e Moscou. Até as pedras da Rua da Praia sabiam que estes senhores eram comunistas, mas ai de quem o dissesse em público. Seria execrado como delator e expulso do rol dos vivos.

Covardes e omissos foram também todos os demais que, sem pertencerem ao Partido, silenciaram sobre os crimes do comunismo. Mário Quintana, por exemplo, refugiava-se em uma frase cômoda: "eu não entendo de problemas sociais". Moacyr Scliar foi premiado pela ditadura de Fidel Castro. Ou seja, desde há muito se preparava para entrar na Academia Brasileira de Letras, aprazível reduto de viúvas do stalinismo. Já que estamos comentando o assunto: filho de Verissimo, Verissiminho é. Luis Fernando, o rebento, apóia toda ditadura, desde que de esquerda. Apenas dois gaúchos, em todos os cem anos do século passado, ousaram escrever contra a barbárie. Um foi o jornalista Orlando Loureiro, que publicou A Sombra do Kremlin, livro que comentei dois ou três capítulos atrás. Procure nos sebos: editora Globo, 1954, dez anos antes da viagem do alegretense deslumbrado. O outro é este que vos escreve, que tem denunciado o marxismo desde os dias em que Faraco passeava pelas ruas da nova Jerusalém.