¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, dezembro 30, 2006
 
ENTREVISTA

http://protosophos.blogspot.com/2006/12/entrevista-do-sbado-janer-cristaldo.html



Martin: Na entrevista anterior você disse que se formou em filosofia. Como esse blog é feito por alunos de filosofia, resolvemos fazer algumas perguntas mais difíceis, como por exemplo: "Se Deus está morto, tudo é permitido"?

Janer Cristaldo: Isso é uma bobagem que os católicos gostam muito de empunhar. Querem colocar Deus como fundamento de toda ética, como se não pudesse existir ética sem a crença em Deus. Com uma formulação um pouco diferente - "se Deus não existe, tudo é permitido" - esta frase é imputada a Dostoievski, em Os Irmãos Karamazov. Ora, ele jamais escreveu isto. Foi Sartre quem disse que ele havia escrito. Quem cita esta frase são geralmente pessoas que nunca leram Dostoievski e o citam de ouvir falar. Recentemente, me dei ao trabalho de reler Os Irmãos Karamazov para ver se Dostoievski havia realmente escrito tal bobagem. Não encontrei. O mais próximo que existe é isto:

- Ivan Fiodorovitch ajuntou entre parentêsis que lá está toda a lei natural, de maneira que se você destrói no homem a fé na sua imortalidade, não somente o amor nele perecerá, mas também a força de continuar a vida no mundo. Mais ainda, não existiria nada mais que fosse imoral; tudo será autorisado, mesmo a antropofagia. E não é tudo: ele acaba afirmando que para todo indivíduo que não crê em Deus nem em sua própria imortalidade, a lei moral da natureza deveria imediamente tornar-se o inverso absoluto da precedente lei religiosa; que o egoísmo, mesmo levado ao crime, deveria não somente ser autorizado, mas reconhecido como uma solução necessária, a mais razoável e quase a mais nobre. Após um tal paradoxo, julgai, senhores, julgai o que nosso caro e excêntrico Ivan Fiodorovitch julga bom proclamar e suas eventuais intenções.

Mais adiante, Mitia se pergunta:

- Mas então, que se tornaria o homem, sem Deus e a imortalidade? Tudo é permitido e, conseqüentemente, tudo é lícito? (...) Que fazer, se Deus não existe, se Rakitine tem razão ao pretender que é uma idéia forjada pela humanidade? Neste caso, o homem seria o rei da terra, do universo. Muito bem! Mas como ele seria virtuoso sem Deus?

Ou seja, a pergunta não é exatamente sobre Deus, mas sobre Deus e a imortalidade. E imortalidade significa punições e recompensas. Os teístas querem ver nos personagens de Dostoievski a impossíbilidade de uma ética sem Deus. No entanto, o que o autor empunha é a promessa de céu... ou de inferno. O fundamento de sua moral - ou da de Ivan Karamazov, como quisermos - não é exatamente Deus, mas a esperança ou o medo. Neste sentido, nós, ateus, não temos preocupação alguma. Não temos medo de nenhum inferno nem precisamos de recompensas futuras para sermos éticos. No fundo, o que o católico Dostoievski quer dizer é que todo ateu é necessáriamente imoral. E isto é uma solene besteira.

Martin: Existe um plano filosófico que é o plano ético, o qual geralmente está associado à moral. Todos sabemos que é possível agir moralmente (se encararmos a moral como uma série de normas elementares) e ser ateu ao mesmo tempo. Porém como fundamentar essa série de normas? Pois se ela são parte de preceitos de ação em sociedade arbitrários, por que alguém "deveria" segui-los? Ou seja, o dever não é uma mera arbitrariedade e, pois, tudo é permitido?

Janer: No plano filosófico não existe plano ético nenhum, isto é coisa dos primórdios da filosofia, quando esta disciplina englobava todo o conhecimento. Por filosofia entendo uma busca do saber, uma interrogação sobre o homem e sua finalidade. Ética é outra coisa, é o estudo dos costumes. Por outro lado, esta distinção entre ética e moral é bobagem muito em moda no Brasil. Ética é palavra de origem grega, vem de ethos. Que em latim é mores, daí moral. Cícero já escrevia: "posto que se refere aos costumes, que os gregos chamam ethos, nós costumamos chamar essa parte da filosofia uma filosofia dos costumes, mas convém enriquecer a língua latina e chamá-la moral". Querer distinguir as duas coisas é filigrana de petista. Lula, por exemplo, adora encher a bocar com "ética e moral", como se estivesse falando de duas coisas distintas, o analfabeto.

Não há sanções penais para normas meramente éticas. Ninguém está obrigado a seguir normas éticas. Pode haver uma sanção da comunidade, mas esta sanção não pode ferir a liberdade de ninguém. Se alguém infringe uma norma legal comete um crime e é passível de uma série de punições. Se alguém fere uma norma ética, caso esta norma não coincida com a legal, não está cometendo crime algum e portanto não pode ser punido. Dou um exemplo: ser homossexual, no Brasil, fere as normas éticas das religiões e de certos setores da sociedade. Mas não fere lei alguma. Ao optar pela homossexualidade, uma pessoa pode estar ferindo a ética - conforme a comunidade em que viva - mas não pode sofrer nenhuma sanção do Estado. O mesmo diga-se da prostituição e do incesto. Nenhuma destas práticas constitui crime na nossa legislação. O mal dos religiosos é pretenderem que suas concepções éticas tenham força de lei.

Se os religiosos ou moralistas outros quiserem estabelecer seus fundamentos éticos, que os estabeleçam. O que não podem é pretender que tenham validade universal e se imponham inclusive a pessoas que não participam de suas crenças.

Tudo é permitido em termos. Apenas tudo que a lei não proíbe. Só a lei pode proibir. Religiões só podem proibir alguma coisa para seus crentes. Estes crentes, se transgredirem tais proibições, não estão cometendo crime algum. Mas qualquer cidadão, crente ou ateu, se transgredir a lei, está cometendo crime. Temos de seguir a lei, pois assim determina o consenso que fundamenta o Estado. Moral, que cada um siga a que bem entender.

Martin: A lei humana é arbitrária ou existem direitos naturais, com os quais o homem já nasce? Se existem tais direitos, de que forma eles não são uma mera arbitrariedade? Pois seria possível dizer que o homem apenas estatuiu tais direitos arbitrariamente. Mas como fundamentá-los?

Janer: Quem faz a lei é o ser humano. Direitos naturais é conversa fiada de católicos e outros crentes. Não por acaso, Tomás de Aquino é um dos maiores defensores do jusnaturalismo. É curioso notar como os defensores do tal de direito natural sempre fazem com que tais direitos coincidam com valores cristãos.

Os defensores do direito natural o associam a um ordenamento ideal, correspondente a uma justiça superior e anterior, imutável ao longo da História, que independe do direito positivo, deste direito que se origina no Estado. Se aquele direito não se origina no Estado, se origina onde? Na vontade divina, é claro. Imaginar que a fonte seja a natureza é muito complicado. Que seria o tal de direito natural? O direito do leão de comer a gazela? O direito do albatroz de comer o peixe? Transferindo ao plano humano: o direito do mais forte submeter o mais fraco? Seria a guerra de todos contra todos.

Há quem pretenda que o direito se origine na racionalidade dos seres humanos. "Divertida justiça que um rio limita, erro aquém verdade além dos Pirineus", disse um pensador francês, creio que Montaigne (não tenho certeza). Se a racionalidade dos seres humanos for o fundamento do direito natural, este direito é então tão cambiante quanto o positivo.

Mas fundamentá-lo em Deus também é complicado. Em qual deus? No judaico-cristão? Ora, Jeová em seu livrinho não só pratica genocídios como também incita seu povo a cometer genocídios. Direito natural é uma concepção totalitária, que pretende submeter a humanidade toda a uma determinada visão de mundo. O que existe é o direito positivo, que muda conforme a geografia. Mas a lei humana não é arbitrária. Nas democracias, pelo menos, ela depende da vontade dos cidadãos e nela se fundamenta. Nas ditaduras, vai depender da vontade do ditador.

Martin: Qual é a sua visão a respeito do liberalismo político, econômico e ético? (por "liberalismo ético" tomar a idéia de que há liberdade para o aborto, para a união civil homossexual, para o uso de drogas, etc.)

Janer: Liberalismo político até hoje não entendi bem o que seja. Aqui no Brasil, por exemplo, há setores católicos que se pretendem liberais. Ora, por mais acepções que a palavra liberalismo tenha, ela não rima com Vaticano, dogmas, teocracia, governo vitalício. (Não sei se alguém notou, o Vaticano é a única teocracia do Ocidente). Se alguém me propuser uma definição precisa de liberalismo, posso tentar uma resposta.

Quando ao liberalismo econômico, se for entendido como um capitalismo ético e bem delimitado por leis, penso ser a melhor fórmula de administração do Estado. É claro que esse capitalismo não existe no Brasil. Vamos encontrá-lo nos Estados Unidos, Canadá, sociais-democracias européias, e isso com todas as imperfeições inerentes ao sistema. Em uma mentalidade capitalista, por exemplo, se procuraria dar trabalho aos pobres, e não esmola, como é o nosso caso.

Quanto ao liberalismo ético, se entendido como liberdade para aborto, união civil homossexual e uso de drogas, sou a favor. As restrições ao aborto e homossexualismo sempre estão eivadas de um ranço religioso. Se o catolicismo, por exemplo, não aceita o aborto e o homossexualismo, que os proíba para seus fiéis. Mas que não pretenda proibi-los para a sociedade laica. Quanto às drogas, sou a favor da descriminalização, que me parece ser a única fórmula eficaz para acabar com o tráfico.

As pessoas esquecem que crime é o que o Estado define como crime. Se o Estado não define aborto ou homossexualismo - ou o que quer que seja - como crime, estamos conversados: não é crime. Nos países mais desenvolvidos do Ocidente, aborto não é crime.

Martin: De que forma o liberalismo como um todo não é apenas mais uma ideologia como foi e ainda é o comunismo? Ou o comunismo não seria uma ideologia?

Janer: Depende do que se entende por ideologia. As acepções desta palavra são muitas, desde Desttut de Tracy que a criou - como sinônimo de ciência das idéias - até Marx e outros teóricos mais contemporâneos. Conforme a definição adotada, tanto liberalismo como comunismo podem ser considerados ideologias. Ou não.

 
FORO DE SÃO PAULO



Janer Cristaldo: analisando algo que não conhece
MSM: enviada em 27/12/2006


Por acaso li um trecho de uma entrevista de Janer Cristaldo, no Orkut, em 12/13 de dezembro de 2006. Nessa entrevista ele disse que "O Foro de São Paulo foi uma tentativa de mobilização tipo a OLAS, a Tricontinental, Rodrigo. Não é algo operante hoje". Primeira pergunta: Como, "foi", uma vez que ele irá realizar o XIII Encontro agora, em meados de janeiro de 2007, em El Salvador, sendo que o presidente de El Salvador espera a presença de Raul Castro, que ora substitui seu irmão, o grande Timoneiro. Segunda pergunta: Como não é operante? Será que o kamarada Janer já leu o que existe sobre o Foro neste site que ele escreve. Será que alguma vez já abriu o site do Foro de São Paulo para dar uma olhadinha? Estou decepcionado com tantos palpites!


Carlos Ilich Santos Azambuja


Tovaritch Ilich:

O Foro de São Paulo vai realizar seu XIII encontro em El Salvador? E daí? Não é normal que as esquerdas internacionais se reúnam? Não houve a Primeira Internacional, a Segunda, a Terceira, a Quarta? O Fórum Social não repete suas reuniões?

Operante hoje é o MST, a guerrilha católico-comunista que não fica em reuniões e blá-blá-blás, mas que age, invadindo prédios públicos e propriedades privadas em todo o país, que interrompe rodovias e destrói laboratórios científicos, que tem escolas formando futuros guerrilheiros, que prega abertamente o comunismo, que cultiva o pensamento de Mao, o mais operoso assassino do século passado, que nunca escondeu sua intenção de transformar o país em uma republiqueta socialista. Não bastasse isto, recebe grossas verbas do governo federal e generosas doações de organizações católicas internacionais, como a Misereor e a Caritas. Não bastasse sua ação criminosa, o MST ainda goza da simpatia de boa parte da imprensa nacional. Estou decepcionado com seu palpite.

Janer Cristaldo

sexta-feira, dezembro 29, 2006
 
MES RÉVEILLONS



Nos últimos 35 anos, a maior parte de meus réveillons - assim como os Natais - os tenho passado em quartos de hotéis. Explico. Natais, já contei porque. Ano Novo é um pouco diferente. Sim, existem as ceias. Caríssimas e sempre coletivas. Restaurantes lotados e todos imbuídos de um mesmo espírito. "Se elegemos viver entre bárbaros - dizia Ambrose Bierce - devemos suportar os bárbaros ruídos de suas bárbaras superstições, mas o imbecil que se senta e espera até a meia-noite para tocar um sino ou disparar um fuzil porque a terra chegou a um ponto determinado de sua órbita, deve ser considerado um inimigo da raça..."
Não, não suporto tais efusões.

Além do mais, não suporto multidões. Certa vez, em um 14 de julho em Paris, tentei aproximar-me do centro dos acontecimentos, na Bastilha. A multidão começou a engrossar e comecei a entrar em pânico. Acabei dando meia volta. Em outros réveillons, outras cidades, também fugi daquelas massas informes. Há uns três anos, não consegui fugir. Estava com minha filha em Paris e ela queria ver os fogos nas Tuilleries. Vamos lá. Não achei graça alguma. O melhor foi ter de voltar a pé na madrugada até o Quartier Latin. Fazia uns 6 ou 8 graus, temperatura ideal para caminhar e havia alguns cafés abertos às margens do Sena. O bom mesmo da festa foi o fim da festa.

Em outro réveillon, estava em Madri, hospedado a poucas centenas de metros da Puerta del Sol, centro das festividades. Um amigo queria arrastar-me até o Ayuntamiento (prefeitura), cujo relógio dá o sinal para comer doze uvas, ritual que propiciaria um bom novo ano. Tentei, não consegui. Ao aproximar-me da Puerta, peguei minha Baixinha pelo pescoço e arrastei-a de volta ao hotel. Onde celebramos a passagem com um bom champanhe, tendo uma visão global de todos os foguetórios do mundo pela televisão. Um dia as gentes descobrirão que, os grandes espetáculos, é melhor vê-los na televisão. Se estamos em meio a eles, só vemos um pedacinho.

Tenho um certo medo aos réveillons, e medo dos mais prosaicos. É o medo ao champanhe. Explico. Réveillon na Europa significa inverno. E sempre viajo com um só casaco. Não ouso sequer chegar perto daquela massa estúpida estourando champanhes na rua. Se mancham meu casaco, no outro dia estou nu. E no dia 1º de janeiro não há lavanderia alguma aberta no planetinha.

Desconheço algo mais incivilizado que tomar champanhe no bico da garrafa. Bierce, se vivesse nossos dias, seria ainda mais amargo.

quarta-feira, dezembro 27, 2006
 
NEOCAROLA DIZ AO QUE VEM



Leio na última Veja um meloso artigo - diabéticos, favor abster-se! - sobre o cristianismo, de autoria de Reinaldo Azevedo. Segundo o articulista, a cultura ocidental se reduz ao cristianismo. A cultura greco-romana existe, é verdade, mas apenas para ser enjolivée pela nova religião. Os massacres cometidos ou ordenados por Jeová são varridos para baixo do largo tapete da História. A condição servil da mulher no Pentateuco se transfigura em defesa e proteção da mulher no cristianismo, como se o Pentateuco não fizesse parte da Bíblia cristã. O sangue derramado pela Igreja nas Cruzadas e na Inquisição, a intolerância monoteística do cristianismo, a perseguição e queima de cátaros, as fogueiras todas da Idade Média, a regulamentação da tortura, a destruição de culturas primitivas, a cobertura de datas pagãs por festividades cristãs, as guerras religiosas, os papas devassos e os papas torturadores, Giordano Bruno, Galileu Galileu, Joana d'Arc, toda esta trajetória sangrenta da Santa Madre, é solenemente ignorada pelo neocarola. Azevedo, em vez de assumir uma postura objetiva, que seria de esperar-se em um jornalismo laico, faz de seu artigo uma profissão de fé. Melhor a Veja tivesse contratado Ratzinger, este pelo menos estaria em seu papel.

A marcha da Igreja na história, para o jornalista, é uma idílica caminhada rumo a um mundo mais humano. Mais de meio século após a morte de Stalin, o realismo socialista ressuscita nas páginas de Veja.

 
SE A IGREJA PRETENDE SOBREVIVER



"Algumas das doutrinas cristãs têm quase 2 000 anos de idade, e várias delas comportariam uma revisão - como a da concepção imaculada. Em quase todas as religiões pagãs encontramos histórias de deuses que geram filhos em mulheres mortais. Maria, porém, não era virgem apenas quando engravidou de Jesus: ela é para todo sempre uma virgem. Ou seja: Jesus não nasceu de nenhum ato sexual convencional, e Maria é uma mulher melhor por ser virgem. Que visão da sexualidade e das mulheres é essa? Devemos aceitá-la tal e qual nos dias de hoje? Se a Igreja pretende sobreviver a longo prazo, talvez precise adotar leituras mais saudáveis de alguns de seus dogmas".

Marvin Meyer,
catedrático de estudos cristãos e da Bíblia
na Universidade Chapman, da Califórnia

 
OS ARQUIVOS SECRETOS DA INQUISIÇÃO



Segunda-feira próxima, às 21hs, no History Channel.

 
SOBRE A HUMANA ESTUPIDEZ



Há muitas coisas no mundo que não entendo. Uma delas é porque as pessoas adoram viajar todas nas mesmas datas. Por trás deste apagão de aeroportos, obviamente estão a greve dos controladores do tráfego aéreo - que ninguém, nem mesmo a imprensa, ousa dizer que é greve -, a inépcia da Anac e da Infraero, o overbooking das empresas. Mas não podemos deixar de lado a estupidez do ser humano. Por que razões todo mundo tem de viajar ao mesmo tempo?

Ora, direis, boa parte das gentes tem só aquele período para visitar os seus. Pode ser. Mas há uma outra boa parte que poderia viajar em outros dias. Alguns objetarão: mas é Natal. Nada disso. Natal pode ser o pico dos deslocamentos ensandecidos. Mas eles acontecem o ano todo. Cada feriadão, o rebanho desce ao litoral. Percursos que normalmente podem ser feitos em uma hora são feitos em cinco. Não tenho visto ninguém reclamar. Ao que tudo indica, o cidadão já aceitou os desconfortos do ano todo. Só chia quando dá atraso em aeroportos.

A estupidez é universal. Não é exclusividade do Brasil. Em toda a Europa, no começo da temporada oficial de verão, a carneirada se lança nas aerovias, ferrovias e estradas, sem preocupar-se com engarrafamentos. É a época ideal para os serviços de transporte entrarem em greve. Se alguém acha que os controladores do tráfego aéreo no Brasil estão sendo originais, em muito se engana. É que só agora descobriram que podem parar o país todo.

Nunca falta quem me pergunte: para onde vais neste feriadão? Não vou para lugar nenhum. Nada mais delicioso que um feriadão em São Paulo. Um milhão e meio de carros sai da cidade. Isto significa, por baixo, três milhões de paulistanos. Sampa se torna silente e provinciana. É o bom momento de passear, curtir bares e restaurantes. Se a cidade se torna palatável quando saem três milhões de pessoas, a conclusão que se impõe é que em São Paulo há pelo menos três milhões de pessoas a mais.

Não entendo. Há pessoas que buscam o verão europeu, quando a Europa está tomada por milhões de americanos, japoneses, brasileiros. Os preços, tanto de passagens como de hotelaria, sobem. Hotéis, praias e trens estão lotados. Viajar se torna desconfortável, quase uma tortura. Mas os turistas vão em bandos. Há uma espécie de compulsão: se todo mundo está partindo, por que estou ficando?

O verão tornou-se uma praga que empesta qualquer país onde ocorra. Enfim, honra a quem merece. Os turistas parecem ainda não ter descoberto o verão frio, isto é, o verão boreal. Não é desagradável viajar pela Escandinávia no verão. Desde que você assuma o conceito de um verão cujas temperaturas podem chegar a 0 grau.

Quando voltei da Suécia, lá pelos anos 70, uma jornalista deslumbrada me perguntou:

- Janer, tu que viajaste, que coisas lindas e maravilhosas descobriste em tua viagem?

Respondi:

- Descobri que a estupidez é universal.

Ela quase se engasgou com o microfone e me pediu para repetir. Repeti:

- Descobri que a estupidez é universal.

terça-feira, dezembro 26, 2006
 
BIBLIOGRAFIA



Guilherme Diniz quer bibliografia sobre Natal e nascimento de Cristo. Bom, tudo isto está de maneira muito clara na Vida de Jesus, do Ernest Renan. É o primeiro volume da História das origens do cristianismo. Depois vem Os Apóstolos, São Paulo, O Anticristo, Os Evangelhos e a segunda geração cristã, A Igreja cristã e Marco Aurélio. Estes nada têm a ver com a vida do Cristo, mas são fundamentais para o entendimento do cristianismo.

Há uma tradução portuguesa dos sete volumes, publicada por Lello & Irmão - Editores. Suponho que exista também uma edição brasileira do primeiro volume. Para quem lê francês, segue de presente La Vie de Jésus:

http://www.gutenberg.org/files/15113/15113-h/15113-h.htm.

Não deve ser difícil encontrar os demais volumes na Internet.

segunda-feira, dezembro 25, 2006
 
MARTA, MARTA...



Convencionou-se no Ocidente, desde há muito, que Natal é época de presentes. Se um dia a data teve algum significado religioso, hoje é sinônima fundamentalmente de comércio. Ora, o significado religioso é falso. Se o Natal pretende marcar o nascimento do Cristo, a Bíblia não fixa data alguma para este nascimento. A data só foi fixada no ano 350, pelo papa Júlio I ou, segundo outros historiadores, em 354, pelo papa Liberius. A intenção era cobrir as comemorações pagãs, pelos povos do hemisfério Norte, do solstício de inverno e de adoração do sol. E principalmente o Dia do Nascimento do Sol Invicto, proclamado no 25 de dezembro, no ano de 274, pelo imperador Aureliano.

Assim, se algum cristão acha que está comemorando o nascimento do Cristo, em verdade está participando de uma farsa. Os cronistas choramingas de final de ano, que deploram o festival de consumo justo no dia em que nasceu aquele pobre menino numa manjedoura, podem tirar seus cavalinhos da chuva, porque naquele dia, se nasceu algum Jesus na Galiléia, nada tem a ver com aquele da cruz. E tem mais: não nasceu em Belém, como repete toda a grande imprensa e até mesmo jornais sérios. Nasceu em Nazaré. E só mais um pouquinho: não nasceu no ano em que a Igreja diz ter nascido. Segundo Renan, o grande historiador do cristianismo, o nascimento "teve lugar durante o reino de Augusto, em torno do ano 750 de Roma, provavelmente alguns anos antes do ano 1 da era que todos os povos civilizados fazem datar a partir do dia em que ele nasceu".

Em nossos dias, Natal está mais relacionado a TVs, DVDs, PCs, notebooks, MP3, celulares e máquinas de fotografia digitais do que ao nazareno. Só que isto não é farsa. É fato. Natal é a grande festa, não da cristandade, mas dos shoppings. Ganhar presentes é bom? Quem ganha sempre gosta. Dar presentes é bom? Também. Existe um inegável prazer em dar. Pelo menos para quem pode dar-se a este luxo. Até mesmo pessoas pobres reservam seu 13º salário - quando o recebem - para investir em presentes. Não gosto de shoppings. Ocorre que um deles instalou-se a uma quadra de meu prédio e, nestes dias, tenho visto multidões saindo de lá com um ar de beatífica felicidade no rosto.

Felicidade besta? Pode ser. Mas felicidade. Neste país em que um governo demagogo enfia a mão no bolso de pobres e ricos - e muito mais no dos pobres que no dos ricos - para entregar seus suados ou não suados ganhos a deputados e senadores corruptos, a bugres ociosos e bandoleiros do MST, a quilombolas e invasores de prédios, melhor que o contribuinte consuma seus trocados em futilidades. Ao menos está tendo algum prazer.

O cronista é um defensor do consumismo, já estará pensando o leitor que não me conhece. Sem me conhecer, tem toda a razão. Defendo a sociedade de consumo. Todo consumo, por idiota que seja, gera empregos. Você quer este Natal regado a bons vinhos, champanhes e perus? Não se iniba, só porque a grande maioria do país não tem acesso a vinhos, champanhes e perus. Ao fazer sua festa, você está dando trabalho a todos os profissionais do ramo, tanto aos que produzem tais mercadorias como aos que as embalam, transportam e comercializam. As sociedades de consumo vão muito bem, obrigado. O que vai mal são as sociedades onde não há consumo algum. Cristo? Ah! Se os jornais não insistissem cada ano em lembrar - erroneamente - que ele nasceu no 25, ninguém lembrava mais.

O cronista é um consumista, já estará pensando aquele mesmo leitor que não me conhece. Por não me conhecer, não tem razão alguma. Nunca tive carro, nem jamais senti necessidade de tais geringonças. Não tenho sítio nem casa de praia, adereço de todo profissional bem sucedido. Diga-se de passagem, detesto sítios. Quando algum amigo me convida para visitar o seu, peço que o ponha em CD-Rom, e eu o visitarei na tela de meu computador. Nunca usei relógios caros e, nos últimos anos, desisti de qualquer relógio. Não freqüento restaurantes de luxo nem consumo bebidas na faixa dos três, quatro ou mais dígitos. Se um assaltante passar algum dia aqui em casa, sentirá a desagradável sensação de ter perdido seu tempo. Sim, tenho computador. É o instrumento de comunicação e trabalho de todo jornalista.

Fora comer e beber, sem o que não existo, meu consumo nada tem de supérfluo. Meus gastos são geralmente em livros e música, e não vejo isto como consumismo. Livros, compro para estudar e tentar entender o mundo que me cerca. Música, para tornar a vida um pouco mais alegre. Gosto de ópera. (Mas também de Inesita Barroso e Miguel Aceves Mejía). Fora isto, não compro quase nada. Conheço pessoas que se sentem no nirvana quando saem a comprar roupas. Para mim, é uma tortura. Enfim, mais dia menos dia, alguma roupa tenho de comprar. É meu dia aziago do ano. Gosto de dar presentes, mas jamais dou presente algum no Natal. Tampouco recebo presentes no Natal. Nenhum amigo seria tão indelicado para cometer tal gafe. Por que dar presentes em um dia preciso, quando o bom do presente é o imprevisto?

Quando vejo essas multidões natalinas, correndo como formigas ante a ameaça de um temporal, não posso deixar de deplorar a miséria humana. São pobres diabos que, por força da propaganda, se sentem compelidos a comprar e comprar e comprar. Que mania é essa de ter de comer peru no Natal, quando se pode comê-lo o ano todo? Que tem a ver o peru com Cristo? A instituição do Papai Noel é significativa. Parece que a cristandade, envergonhada de associar o consumo ao nascimento do filho de Deus, delegou esta função ao Santa Klaus.

Se isto os faz felizes, que direito temos de condená-los? Sejam felizes, caros. Natal é isso mesmo. Não estão cometendo nenhum crime. Pelo contrário, estão azeitando a economia do país. O Natal rega os sistemas vasculares de todo o Ocidente. Mas se faço a defesa do capitalismo, nos natais sou o anticapitalista por excelência. Nestes dias, o sistema não recebe um vintém a mais de meus bolsos.

Enquanto a cristandade compra desesperadamente, eu, o ateu, me dedico ao recolhimento. Nas últimas décadas, sempre estive em algum distante lugar do mundo, com minha Baixinha adorada. Como não é fácil jantar nessa data, geralmente nos muníamos de um bom vinho, pão, queijo e patês e os degustávamos no quarto do hotel. Foram certamente os melhores vinhos e os melhores pães e queijos que tive em minha vida. Foram também os melhores natais. Hoje, sem Baixinha, gosto de ficar sozinho ou com pessoas muito próximas. Mas o vinho não tem aquele mesmo sabor, nem mesmo o pão.

Nestes dias, não posso deixar de lembrar o homenageado da data: "Marta, Marta, estás ansiosa e perturbada com muitas coisas; entretanto poucas são necessárias, ou mesmo uma só".

Dito isto, boas festas a todos!

 
O MELHOR DOS NATAIS



Há exatamente 15 anos, em Moscou, na Praça Vermelha, era arriada a bandeira da União Soviética. Neste Brasil obsoleto, ainda hoje não falta quem a cultue.

domingo, dezembro 24, 2006
 
GENTE FINA É OUTRA COISA



Há alguns anos, um auditor fiscal paulistano foi para o Canadá, com mulher e dois filhos. Na volta, houve um problema qualquer em seu vôo e a empresa - a já falecida Canadian Airlines - levou a família para um hotel e a embarcou no dia seguinte. Se a história terminasse aqui, tudo ficaria por conta do respeito da empresa ao consumidor.

Mas a história ainda não tinha terminado. Uma vez em São Paulo, o auditor foi procurado pela Canadian Airlines. A empresa se desculpava e queria recompensar o cliente pelos transtornos ocorridos no Canadá. Ofereceu então - a ele, sua mulher e dois filhos - mais uma passagem de ida-e-volta, para onde quer que a empresa voasse.

Se a história terminasse aqui, já teria um final feliz e tanto. Mas ainda não termina. O auditor fiscal, carcamano de boa cepa, alegou talvez não poder aceitar a cortesia, afinal tinha um terceiro filho e desta vez havia prometido ao menino que não viajava sem ele. Quem não chora não mama: ganhou cinco passagens.

Um outro amigo, professor de matemática no Mackenzie, foi à China com sua mulher. Mal chegou em Pequim, quebrou um pé. Permaneceu hospitalizado o tempo todo de sua viagem e voltou ao Brasil. Mas a história também não termina aqui. A empresa pela qual viajou procurou-o para dizer-lhe que lamentava ele não ter podido aproveitar sua viagem. Para compensá-lo de alguma forma, lhe oferecia mais duas passagens de ida-e-volta. Bem entendido, a empresa - cujo nome agora não lembro - nada tinha a ver com o acidente com o pé.

No Brasil, é um pouquinho diferente. Milhares de passageiros maltratados e humilhados, aeroportos que mais parecem campos de concentração, gente perdendo desde casamento, audiências e até mesmo transplantes e as recomendações das autoridades são: procure o Procom, processe a empresa. Isso sem falar em policiais armados de metralhadoras vigiando os perigosos passageiros.

Quanto à cortesia elementar de a empresa ressarcir espontaneamente o cliente, nem pensar.

 
OS PAPEIZINHOS DO SANTO



Escreve o leitor Bruno Benedini:

"Os papeizinhos do santo, não creio que possam ser tomados por 'medicina ilegal'. Especialidades 'médicas' como a homeopatia ou cromoterapia não são reconhecidas pelo CFM(ou CRBM, já não me lembro do órgão), mas isto, você deve saber, não torna as práticas ilegais. Creio que só não lhes dê o status de especialidade médica, fazendo com que não possam ser aplicadas na saúde pública, por exemplo. A maior parte das terapias alternativas, aliás, não é nociva quando feita em paralelo a um tratamento tradicional. Em alguns casos, é até positiva em decorrência do efeito placebo. Talvez o título do post sobre frei Galvão mereça uma correção?"

Até pode ser, Bruno. Medicina desonesta, então. Isso de receitar papeizinhos de arroz a pessoas doentes não passa de vigarice. Bento XVI está canozinando um charlatão.

sábado, dezembro 23, 2006
 
TEATRO NATALINO


Sempre que chega o Natal, a Receita Federal se dedica ao teatro em São Paulo. Cerca de 2,5 toneladas de mercadorias irregulares - no valor mais de R$ 1,2 milhão - foram apreendidas até hoje na Operação Tornado, realizada em shoppings da Avenida Paulista e lojas da Rua 25 de Março em São Paulo. A operação começou dia 04 de dezembro. Entre os produtos apreendidos, estão filmadoras, câmeras, perfumes, ipods, notebooks, palm tops, telefones sem fio, material de informática, relógios e roupas.

Mês que vem, tudo volta à rotina e os paulitanos - e demais brasileiros que vêm aqui se abastecer - poderão continuar comprando contrabando e piratagem.

 
VATICANO INCENTIVA MEDICINA ILEGAL



A maquininha de fazer santos do Vaticano, tão do agrado de João Paulo II, voltou a ser acionada por Bento XVI. Para preparar sua gloriosa vinda ao Brasil, o Vaticano divulgou ontem o milagre que fez de frei Galvão o primeiro santo nato de Pindorama. A Santa Sé aceitou como inexplicável o nascimento de um garoto em 1999, na cidade de São Paulo, e atribuiu o sucesso do parto ao frei franciscano Antônio de Sant'Anna Galvão (1739-1822).

A mãe do menino, que passara por três abortos, sofria de uma má formação no útero e teve uma quarta gravidez de alto risco. Logo no começo da gravidez, tomou as famosas pílulas de frei Galvão, pequenos pedaços de papel de arroz grafados com uma inscrição em homenagem à Virgem Maria e são ingeridas em situações de emergência. "Na primeira novena, quando tomei a primeira pílula, estava tendo sangramento e pedi para não ter mais. A partir daquela dia, não sangrei", disse Sandra.

O menino nasceu por meio de uma cesariana, em dezembro de 1999. Dia 16 passado, Bento XVI reconheceu o milagre e autorizou a publicação do decreto de canonização do curandeiro, que já é beato. A data e o local da canonização só devem ser conhecidos no final de janeiro. Antes da vinda do Bento ao Brasil, é claro.

sexta-feira, dezembro 22, 2006
 
PARIS SE ENFEIA



Quando digo que já subi do Quartier Latin a Montmartre de barco, nunca falta quem ache que estou fazendo piada. No entanto, já subi. No Sena, nas proximidades da piscina Deligny, há - ou havia - um pequeno barco, o La Patache, que fazia o trajeto, percorrendo o canal Saint-Martin e subindo através de suas eclusas. O barco saía às nove da manhã e só chegava a Montmartre ao meio-dia, devido ao tempo gasto em abrir e fechar eclusas. Certo domingo, tomei o La Patache com uma amiga. Após um trecho subterrâneo, já nas proximidades do monte, o canal vem à luz sob uma magnífica alameda. É um dos mais belos passeios que se pode fazer em Paris e que o turista geralmente desconhece.

Conto o episódio em Ponche Verde, posto que um acidente não previsto no percurso marcou aquele dia:

"A manhã era gloriosa, Paris recém despertava, além dele o barco transportava alguns turistas sonolentos fotografando o Pont des Arts, Notre Dame, Conciergerie quando, após a ilha Saint Louis, pouco antes de entrarem no Saint Martin, na pracinha frente a Jussieu, qualquer coisa se movia onde não devia existir movimento algum, uma escultura modernosa e cheia de curvas pareceu adquirir vida, o conjunto era todo cor de ébano e parte do ébano, também curva, parecia mover-se e contorcer-se e acariciar, os turistas todos olhavam perplexos numa tentativa de entender o que estava acontecendo naquele setor do universo quando, após um bom minuto de estupefação o episódio adquiriu - ou pareceu adquirir - sentido: um negro nu, lança em riste, confundia-se em formas e cor fazendo amor com o bronze. C'est drôle! - disse a guia. E mais não disse".

Eu estava com a máquina fotográfica em punho. Mas a cena era tão insólita que sequer lembrei de acioná-la. Meu cérebro - e suponho que os demais que me rodeavam - precisaram de alguns segundos para entender que o acontecia era exatamente o que estava acontecendo. Naquele dia, talvez tenha perdido a grande foto de minha vida. Bom, deixo o negrão de lado e volto ao Saint-Martin. Cuja beleza você pode contemplar aqui: http://www.davidphenry.com/Paris/CanalSaintMartin_fr.htm. Curta com carinho estas imagens. Pois o Saint-Martin está virando uma favela.

Leio no Estadão de hoje que um grupo de sem-teto - ou SDF, como são chamados na França, Sans Domicile Fixe - está tomando as margens do canal. Um dos líderes os SDF está exortando os parisienses "bem-alojados", a juntar-se aos moradores de rua acampados em volta ao canal. A ocupação surpresa foi feita antes que a polícia pudesse impedir. Durante a semana, centenas de barracas vermelhas foram instaladas na região, reunindo também sem-teto verdadeiros.

Mais alguns anos e Paris vira São Paulo. Vai logo, leitor, vai logo antes que acabe. Estou indo mês que vem e desde há muito sei que não estou voltando à Paris de minha juventude.

quinta-feira, dezembro 21, 2006
 
GENEROSO POVO ESTE NOSSO


Causou comoção nacional o aumento de 91% que nossos representantes na Câmara e no Senado se deram a si mesmo neste Natal. A indignação foi tamanha que os senhores deputados e senhores, em uma reação tardia de pudor, tiveram de recuar. Enfim, tentar não custa nada.

Em meio a isso, o brasileiro já nem se indigna mais com as pensões obscenas concedidas aos bandoleiros que um dia tentaram transformar o Brasil numa repupliqueta soviética. Além de indenizações de centenas de milhares de reais, comunistas e compagnons de route foram compensados com remunerações mensais de até 20 mil reais por mês, isentos de imposto de renda.

Esta passou batido. Os eleitores parecem tê-la assumido como uma fatalidade. Não se vê no horizonte movimento algum de opinião para acabar com este assalto das esquerdas ao bolso do contribuinte. Os vigaristas parecem ter sido todos perdoados e os brasileiros aceitam bovinamente o saque perpetrado.

quarta-feira, dezembro 20, 2006
 
MENDIGOS DE LUXO



Não bastassem os mendigos que infestam as ruas neste período natalino, uma outra espécie de pedintes, os de luxo, infestam as páginas dos jornais. Cleyde Yaconis, a festejada dama do teatro nacional, está enfrentando dificuldades para manter a peça A Louca de Chaillot em cartaz. E lança seu pedido de esmola através das colunas sociais. Leio na página de Mônica Bergamo que a temporada no Sesc acabou ontem. O plano da atriz era levar o espetáculo para o "circuito nobre", mais central, de São Paulo. Por falta de patrocínio, a produção teve que desistir de apresentar a peça no teatro Sérgio Cardoso em janeiro, como estava previsto. A temporada no Rio, prevista para março, também corre risco.

Cleyde Yáconis calcula que precisaria de patrocínio de cerca de R$ 350 mil para continuar em cartaz e tem procurado os recursos em empresas privadas. Ou seja, vai apelar à famigerada lei de renúncia fiscal. Trocando em miúdos: quer que nós, contribuintes, financiemos seu teatro. Caso a situação não seja resolvida ainda este mês, o elenco, de 17 pessoas, deve se dispersar, com os atores buscando outros trabalhos.

Nestes dias em que a nação se escandaliza com o generoso aumento que deputados e senadores concederam a si mesmo, é curioso observar que nenhum cidadão parece se escandalizar com esta vigarice habitual da gente de teatro e de cinema, sempre praticada em nome da cultura. Pior ainda: depois de serem financiados pelo contribuinte, cobram entrada do contribuinte que já pagou, ainda que à revelia, pelo espetáculo. E o contribuinte, qual boi de canga, paga docilmente o ingresso. Sem tugir nem mugir.

Yáconis aposta alto. Quer esmola de nada menos de seis dígitos ou não presta mais seus nobres serviços à esta nobre - e onerosa - causa que se chama arte.

 
UTOPIA


Nestes dias que precedem o Natal, uma histeria consumista toma conta das cidades. Cá em São Paulo, como em toda metrópole, o fenômeno é exacerbado. Até freqüentar bares se torna inviável. Os bares são tomados pelo que chamo de amadores, essa gente que não vai a restaurantes o ano todo - ou só vai às sextas-feiras - e de repente se reúne em bandos e se põem a gritar histericamente, em mesas de quinze ou vinte pessoas. Nós, os profissionais, viramos místicos e rezamos para que chegue o Natal e essa raça infame volte a seus lares sem graça alguma.

Uma outra fauna emerge nas ruas. Nos meses de dezembro e janeiro, dobra o número de crianças pedintes junto aos faróis. Segundo agentes da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), o número de mendigos em cruzamentos em outubro era de 1.974. Em novembro passou para 3.406. E no que vai de dezembro, já são 3.719. Ainda segundo a SMADS, este "trabalho", em dias de movimento normal, rende no mínimo 30 reais por dia. Ou seja, 900 reais por mês.

O salário inicial de uma professora da rede municipal em São Paulo é 615 reais. E há quem ache que a mendicância pode ser erradicada das ruas da cidade.

terça-feira, dezembro 19, 2006
 
ENTREVISTA


http://protosophos.blogspot.com/2006/12/entrevista-casual-janer-cristaldo.html

 
ALGUMA BIBLIOGRAFIA SOBRE A VIDA DOS PAPAS



Recebi vários mails de leitores surpresos com as revelações sobre a vida privada dos papas, no programa de ontem do History Channel. E isso que a produção foi mesquinha em matéria de informações. Pelo que vejo, anda fraco o conhecimento de História entre nós. Qualquer livro ou enciclopédia que aborde a história da Igreja, se for honesto, terá necessariamente de relatar estes escândalos da Santa Madre.

Leitores querem saber as fontes de minhas informações. Avanço alguns títulos. Devo ter mais em minha biblioteca, mas estes já dão uma boa idéia do assunto:

Histoire de l'inquisition au Moyen Âge, de Henry Charles Lea, Paris, Robert Lafont, 2004 - um clássico, o precursor de toda a literatura sobre a Inquisição. 1458 páginas. Recomendo vivamente.

Enciclopedia de los herejes y las herejías, de Leonard George, Barcelona, Ediciones Robinbook, 1998.

La véritable histoire des papes, Jean Mathieux-Rosay, Paris, Jacques Grancher, 1991.

La chair, le diable et le confesseur, de Guy Bechtel, Paris, Librairie Plon, 1994.

The Female Pope, por Rosemary & Darroll Pardoe, Wellingorough, Crucible, 1988. Tradução ao espanhol: El Papa mujer - El misterio de la Papisa Juana, Barcelona, Ediciones Martinez Roca, 1990.

La Papisa Juana, de Emmanuel Royidis, Buenos Aires, Editorial Sudamericana, 1973.

Se o leitor quiser uma abordagem ficcional sobre Alexandre VI, pode procurar nas locadoras o belíssimo filme Contos Imorais, de 1974, do cineasta polonês Walerian Borowczyk, no qual Lucrécia Borgia se diverte com seu pai, o papa Alexandre VI, e com seu irmão, o cardeal César Borgia. Um belo achado de Borowczyk foi colocar Lucrécia nua (interpretada pela radiante Florence Bellamy), espichada sobre um corrimão do Vaticano, entre o papa e o cardeal, estes devidamente paramentados com as vestes eclesiásticas. Tudo muito sacro e solene.

 
A MENSAGEM DO MARCELO



No decorrer de meu trabalho neste blog e em mais alguns jornais eletrônicos, tenho recebido não poucos mails, que vão desde o insulto raivoso à mensagem afetuosa, passando por aqueles que começam assim: "desculpe discordar, mas..."

Para começar, confesso que o insulto me deixa quase tão contente quanto a mensagem afetuosa. Quando alguém insulta, é porque não tem mais argumentos e perdeu as estribeiras. Se algum leitor imagina que seus insultos me irritam, está fazendo gol contra. Em verdade constituem música para meus ouvidos. Nem devia confessar isto. De repente, meus irados leitores descobrem que me fazem feliz e são capazes de roubar-me esta felicidade.

Quanto aos leitores que começam se desculpando por discordar, devo alertar que discordar faz parte da vida. Seria um sinal de subserviência mental concordarmos com tudo o que um escritor afirma. Tenho meus autores diletos, mas dificilmente concordo com tudo o que escrevem. Desde jovem, quando lia Platão, ia rabiscando nas margens do texto minhas discordâncias. Dada minha idade e desconhecimento da cultura grega, talvez minhas anotações não tivessem muito fundamento. Mas desde então me arrogava o sagrado direito de discordar. Faço votos que meus leitores continuem discordando de mim. Mas, por favor: para discordar não é preciso pedir desculpas.

Quanto às cartas afetuosas, que elogiam meus textos, é claro que me estimulam a escrever. O pior é que dá vontade de escrever cada vez melhor e isto nem sempre é possível. Recebi ontem uma mensagem que me tocou fundo. É a de um jovem para quem meus textos contribuíram para sua formação. Uma carta assim me faz contente. Não estou escrevendo rumo ao inútil. Mas você não precisa comprar dois livros meus, Marcelo, para dar um de presente a amigos. Baixe um e distribua quantos quiser.


Janer,

Tive contato com você na época que morava em Salvador, no ano de 2003, através de um colega que me enviou uma entrevista para o jornal O Expressionista. De lá pra cá, você é um dos meus autores favoritos que não deixo de ler. Li dois de seus livros e acompanho seu blog regularmente.

Você é realmente muito bom. Sua cultura e erudição são bastante vastas, e mesmo não concordando com tudo o que você escreve, eu reconheço que seus argumentos são bastante sofisticados. Acho que posso dizer que você nestes quase quatro anos contribuiu sensivelmente para minha formação intelectual e para minha visão de mundo.

Estou escrevendo não para ser só mais um fã seu, mas porque não teria outra forma de lhe agradecer. Tinha 19 anos quando lí pela primeira vez um texto seu, e quando olho pra trás e vejo o quanto cresci, posso dizer que você teve sua parcela de contribuição nesse crescimento.

Normalmente quando gosto de um autor compro dois livros. Um para um, outro para dar de presente para alguém que eu ache que conseguirá apreciar a obra. No seu caso, eu não tenho como fazer isso. Não existe edição em papel do seu livro, então, que fique pelo menos o registro do quanto aprecio o seu trabalho.

Um forte abraço, e que você continue realizando um bom trabalho.

Marcelo Tavares

segunda-feira, dezembro 18, 2006
 
VIDA DOS PAPAS DECEPCIONA



Um tanto frustante o programa do History Channel sobre a vida privada dos papas. Começou com os Bórgia, mas omitiu que Lucrécia Bórgia era amante do pai, o papa Alexandre VI, e também de seu irmão, o cardeal César Bórgia. O âncora comentou o famoso baile das castanhas, em que sessenta prostitutas nuas dançaram para os cardeais no Vaticano. Foram jogadas castanhas ao chão, e as bailarinas tinham de apanhá-las. Mas não com as mãos, e isto o âncora não contou. Foram concedidos prêmios aos homens que copulassem com mais mulheres naquele noite memorável. Que viva a Santa Sé!

A história da papisa Joana - mulher que assumiu o papado com o nome de João VIII - tampouco foi devidamente narrada. A produção comentou en passant a história de Formoso,papa desde 891 até sua morte em 896. Seu sucessor Estevão VI trouxe à tona o juízo de sua proclamação. Estevão acusava seu predecessor de haver ocupado o trono de Pedro ilegitimamente. Como Formoso havia falecido nove meses antes, foi preciso exumá-lo para que estivesse presente no processo que o condenou. Seu juízo póstumo passou a ser conhecido como o Concílio do Cadáver. Como Formoso não conseguiu negar as acusações, foi condenado. Cortaram-lhe os três dedos que havia usado em vida para bendizer e seus restos foram lançados ao Tibre. Há toda uma iconografia sobre o Concílio do Cadáver que não foi explorada pela produção do programa.

Comentou-se, sem muito aprofundar, o papado de Sérgio III, que inaugurou o período chamado pelos historiadores de pornocracia, como também de "reinado das prostitutas". Faltaram ainda os papas torturadores. Abominável foi o contraponto feito com a hipótese de como a imprensa contemporânea comentaria os fatos daquela época. Na tentativa de captar o espectador burro, o History Channel desperdiçou um belo tema.

 
A VIDA PRIVADA DOS PAPAS



Hoje, às 23hs, no History Channel. Desde Alexandre VI à papisa Joana, também conhecida como João VIII.

Sobre este já fiz um breve comentário. Corria o ano de 858, quando o Tibre transbordou, houve um tremor de terra e nuvens de gafanhotos destruíram a colheita. Foi pedida a intervenção do papa João VIII, que aceitou conduzir a procissão das Súplicas, destinada a fazer chover, no dia da Ascenção. Tudo era festa naquele dia, a procissão desfilava pelas ruas de Roma, quando os cardeais observaram um esgar de dor no rosto do papa, que deixou de cantar e passou a gemer. De repente, o papa soltou um grito, caiu da mula que o carregava, dobrou-se apertando o ventre... e pariu uma filha.

Quanto a Alexandre VI, de nascença Rodrigo Bórgia, teve sete filhos, dos quais o mais conhecido foi a famosa Lucrécia Bórgia. O papa transformou o Vaticano em um bordel e manteve relações sexuais com a própria filha.

domingo, dezembro 17, 2006
 
HERÓI É QUEM MATA MAIS



Nas últimas décadas, a história da América Latina foi marcada por uma polarização emblemática, Fidel Castro e Augusto Pinochet. O continente teve muitos golpes, contragolpes e ditaduras, na Bolívia, Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Venezuela, Nicarágua. Mas a discussão sempre girou em torno dos ditadores de Cuba e Chile. Bastava alguém acusar Castro, o interlocutor logo brandia Pinochet. E vice-versa. Os debates, seja na antiga imprensa como na Internet, tornaram-se monótonos e previsíveis.

Castro e Pinochet tomaram o poder pelas armas - e pelas armas o mantiveram. Mataram, aprisionaram e torturaram seus opositores. Pinochet morreu na semana passada. Castro pode morrer semana que vem. E aqui terminam as semelhanças. Começam então as diferenças.

Pinochet se manteve 17 anos no poder e o entregou após ter sido derrotado em eleições que tiveram um caráter plebiscitário. Castro se mantém há 47 anos no poder e, pelo menos teoricamente, só o largará ao morrer. Responsabiliza-se Pinochet por três mil mortes. A Castro, são debitadas 17 mil. Pinochet construiu as bases de um Chile rico, hoje a economia mais próspera da América Latina. Castro levou Cuba a uma miséria humilhante, só superada pelo Haiti no continente. Pinochet foi relegado ao círculo dos infames. Castro foi entronizado no panteão dos heróis.

Não tem muito a ver com a história, mas não posso deixar de lembrar a clarividência de Eça de Queiroz, quando escreveu, em 1890: "Sempre haverá Chiles ricos e Nicaráguas grotescos". Volto a Pinochet. Pelo jeito, não é herói por ter matado tão poucos. Castro, mais ousado, que matou mais de cinco vezes mais, é o líder inconteste das esquerdas latino-americanas. Stalin, que matou vinte milhões, foi adorado no mundo todo como um deus e mereceu, no século passado, a comenda de "Paizinho dos Povos". Quando morreu, os comunistas não conseguiam acreditar em sua morte, afinal um deus não pode morrer. Apesar de seus crimes terem sido sobejamente denunciados, a partir de 1949 - e sobretudo no 20º Congresso do Partido Comunista Soviético, em 54 - até hoje, 2006, goza da admiração de ilustres intelectuais brasileiros, como Oscar Niemeyer e Ariano Suassuna.

Mao, após ter matado 70 milhões de chineses, ainda é adorado na China. E não só na China. Jung Chang e seu marido, o britânico Jon Hallliday, em recente visita ao Brasil, nos contam uma história emblemática. Depois da visita de Nixon à China, em 1972, o pintor americano Andy Warhol decidiu que "arte é moda. Mao está na moda. Então Mao é moda". Pintou então um quadro que o celebrava como herói, obra que foi vendida por 17 milhões de dólares. Quando a casa de leilões Christie's vendeu esse quadro, um jornalista telefonou aos leiloeiros, oferecendo uma foto de Stalin. "Desculpe - respondeu uma funcionária - não trabalhamos com Hitler ou Stalin". Pelo jeito, não mataram o suficiente para merecer a glória no mundo das artes.

Como dizia Jean Rostand, biólogo francês: "quem mata um é assassino, quem mata milhões e conquistador, quem mata todos é deus". A questão parece ser de dígitos. Matar algo em torno a três quatro dígitos não rende culto. Os militares brasileiros só mataram trezentos. São uns assassinos. Castro chegou aos cinco dígitos. Líder Máximo. Pol Pot conseguiu seis dígitos. Herói. Stalin e Mao alcançaram os oitos dígitos. Divinos.

Castro e Pinochet são seqüelas da Guerra Fria, quando Moscou e Washington disputavam a hegemonia do planeta e, como não poderia deixar de ser, da América Latina. O século passado foi encerrado com um fecho de ouro, a queda do Muro de Berlim e o desmoronamento da URSS. Com a China comunista rumando a uma espécie de ditadura capitalista e o Leste europeu liberto da tirania de Moscou, só restaram dois países obsoletos regidos por um sistema comunista. Era de esperar-se que, com o século, morresse também a Guerra Fria. No entanto ela sobrevive neste nosso continente que vive a reboque da História e parece não ter ainda chegado ao século XXI.

A morte de Pinochet foi comemorada com muita alegria. "O diabo terá um dia ruim, pois vão tomar dele a presidência do inferno", disse o escritor mexicano Carlos Fuentes. "A morte ganhou da justiça", disse o escritor comunista uruguaio Mario Benedetti. Para Massimo d'Alema, ministro italiano das Relações Exteriores, "o que nos faz diferentes em relação a Pinochet e às pessoas que pensam como ele é que nós respeitamos a vida humana, incluindo a vida de Pinochet". O que não parece ser o caso.

Para Fernando Henrique Cardoso, "o julgamento da História será implacável com Pinochet". Para Lula, Pinochet representou "um período sombrio". Para José Serra, "foi-se alguém que não vai deixar nenhuma saudade. É um homem identificado com a repressão, identificado com a tortura e também com a corrupção, pois revelou-se um grande corrupto, além de um grande repressor. Um ditador implacável que infelicitou a nação chilena e deu um mau exemplo para a América Latina e para o resto do mundo".

Deus não joga mas fiscaliza. Quis o Senhor que, nestes dias da morte de Pinochet, Fidel Castro esteja perto da sua. Será interessante ver o que têm a dizer Lula, Fernando Henrique, José Serra, e demais personalidades bafejadas pela mídia, sobre a morte do homem que matou 17 mil de seus compatriotas, manteve a ferro e fogo o poder por 47 anos, suprimiu a liberdade de expressão e de imprensa, governou sua ilha como um déspota e levou seu país à miséria.

Conseguirá FHC dizer que o julgamento da História será implacável com Castro? Dirá Lula que seu amigo representou um período sombrio? Ousará Serra afirmar que Castro não deixa saudades?

Quem viver, verá. E verá - disto estou certo - que estes senhores no fundo continuam enamorados das ditaduras comunistas.

sábado, dezembro 16, 2006
 
SOBRE SANTIAGO SEGUNDO LÍTTIN



Cristaldices!
enviada em 14/12/2006


Mais um texto antológico do nosso poeta! Não, eu não vou visitar o Chile, vou me exilar lá! Não se deve esquecer, também, daqueles militantes de esquerda chilenos, tiranos, que, na década de 80, vieram para o Brasil botar suas patas, cortar as raízes das ingênuas brasileiras, seduzindo-as, casando-se com elas e as abandonando no dia seguinte. De posse da certidão de casamento, legalizaram sua situação de imigrantes e puderam viver e continuar planejando os seus golpes tranqüilamente, aqui no Brasil.


Mary A.

 
A EDUCAÇÃO DE VLADIMIR



Vladimir Ilitch Ulianov nasceu em 1870, em Simbirsk, Rússisa, e teve excelente educação para os padrões da época. A partir dos nove anos de idade, entrou em uma classe preparatória de vinte e duas horas semanais. Seis eram dedicadas à língua russa, seis à caligrafia, seis à matemática e ciências e quatro à religião. A partir daí, os alunos entravam em primeiro ano de ginásio, onde oito horas eram dedicadas ao latim, cinco à matemática e física, quatro ao russo, quatro ao francês, três à caligrafia, duas à geografia e duas à religião. O alemão era introduzido no segundo ano, história e grego antigo no terceiro. Latim e grego constituíam metade do calendário do sexto ao oitavo e último ano de ginásio.

A norma era capacitar os alunos de ginásio para traduzir as obras de Homero, Heródoto, Tucídides, Xenofonte, Lívio, Horácio e Cícero. Para passar da quarta para a quinta série de ginásio, Vladimir teve de aprender a recitar mais de cem poemas, incluindo 45 fábulas de Krylov e 31 poemas de Pushkin. Uma educação de sonho para os parâmetros de nossa época.

O que demonstra que uma excelente educação humanística em nada humaniza um assassino. Vladimir Ilitch Ulianov - que ficou conhecido para a posteridade como Lênin, um de seus 160 nomes de guerra - assassinou com gosto em seu curto período no período no poder (1917-1924) e é o patrono intelectual dos sinistros discípulos que o sucederam, Stalin, Mao, Pol Pot, Envers Hodja, Ceaucescu, Fidel Castro.

Estes dados biográficos constam do excelente ensaio Lenin, a biografia definitiva, de Roberte Service, Difel, 2006. Recomendo.

sexta-feira, dezembro 15, 2006
 
PAPISA JOANA

Na próxima segunda-feira, às 23h, o History Channel (canal 30) apresenta um interessante programa sobre a vida privada dos papas, entre eles a papisa Joana.

O erudito beneditino Jean Mabillon, autor do De Re Diplomatica, afirma ter visto com os próprios olhos, em fins do século XI, na Basílica de Siena, entre os bustos que compõem a galeria dos papas, um sobre cuja base havia a inscrição: "João VIII, mulher", que de lá teriam retirado, em fins do século XVI, por ordem de Clemente VIII.

Colho a informação no belo livro de Cláudio Araújo Lima, Sexo e Amor, Rio, Editora Civilização Brasileira, 1961. João VIII, após "dois anos, cinco meses e quatro dias", pariu o fruto de seu pecado amoroso com alguém de dentro mesmo do Vaticano. Após o que se instituiu, a cada eleição de um novo pontífice, o ritual do exame dos genitais do eleito, que para isso se sentava numa cadeira sem fundo, onde o camerlengo os palpava cuidadosamente.

 
IMPOSSÍVEL NÃO LEMBRAR FIERRO...



... quando se pensa no Congresso nacional:

Muchas cosas pierde el hombre
Que a veces las vuelve a hallar;
Pero les debo enseñar,
Y es güeno que lo recuerden:
Si la verguenza se pierde,
Jamás se vuelve a encontrar.

quinta-feira, dezembro 14, 2006
 
ONDE A SURPRESA?



Nossos deputados e senadores aumentaram seus salários em 91%. Não só os pobres mortais, mas até o governo está perplexo. Não vejo porque surpreender-se com isso. Cortado o mensalão, de alguma forma estes íntegros senhores teriam de recompor seus ganhos.

 
A TERRA VISTA DOS CÉUS



Comprei ontem um belo livro, na Fnac da avenida Paulista. Só por gula. Não é livro que vá ler tão cedo, talvez nem o leia nunca. Comprei pelas fotos. A Terra vista dos céus, de Yann Arthus-Bertrand, Forlaget Jorden, Copenhague, 2004. Já havia visto esta exposição no parque Luxembourg, em Paris. Também havia visto o livro nas livrarias do Bd. Saint Michel. Mas suas dimensões me afastaram de qualquer veleidade de comprá-lo.

Todos as fotos são feitas do alto. Se você quiser ter a mesma visão do fotógrafo, terá de estar voando. Caravanas percorrendo as curvas suaves das dunas no Sahara, vinhedos em Lanzarote, o coração de Voh na Nova Caledônia, a lavagem de roupa em uma lagoa na Costa do Marfim, um cemitério de bombardeiros no Arizona, um meteoro (monastério) encarapitado em um rochedo na Grécia, Veneza, Gamla Stan (em Estocolmo), um inusitado ângulo da pirâmide do Louvre, campos de papoula na Holanda, glaciares, crateras e vulcões, o fascinante traçado de Yellowstone, o templo de Abu-Simbel no vale do Nilo, um mercado de tapetes no Marrocos, Stonehenge e o Taj Mahal, o estranho minarete da grande mesquita de Agadez, no Niger, a fantástica cidade de Petra, na Jordânia, insólitas aldeias africanas, os desenhos das lavouras no planetinha, os rabiscos indecifráveis de antigas culturas nas montanhas. Ao passar os olhos por estas fotos belíssimas, o leitor mais chegado à literatura não consegue deixar de pensar no ponto Aleph, do Borges.

O livro traz a sugestão de uma viagem impossível. Haja grana para sobrevoar tantas paisagens. Além disso, o prazer é efêmero. E atenção: o volume, em papel couché, mede 30 cm x 38 cm, tem 460 páginas e pesa cerca de seis quilos. E custa 321 reais. Só compre se for guloso e não estiver com dinheiro contado.

quarta-feira, dezembro 13, 2006
 
AINDA A TRANSUBSTANCIAÇÃO



Prezado Janer,

Freqüentemente divirjo de seus escrito sobre temas religiosos, uma vez que sua postura religiosa anti-teísta é diferente de minha fé cristã. Entretanto, respeito-lhe bastante a erudição. Em particular, quero parabenizá-lo pela forma como abordou a questão da transubstanciação em "De Ratramno a Radberto". Quero, entretanto, corrigi-lo num aspecto onde errou. Quando diz que a Bíblia fala em três pessoas que subiram em corpo ao céu. De fato, são três os relatos de traslado ao céu na Bíblia, mas o de Maria não é um deles; de fato, não há mesmo a menor sugestão de que isso tenha ocorrido com ela. As três pessoas são, cronologicamente, Enoque (de que se diz que Deus o tomou para si, e não exatamente que subiu ao céu - Gênesis 5:24), Elias e Jesus. Ninguém mais. No mais, uma curiosidade. Sou protestante e, como você, acho estranhas algumas discussões e preocupações pré-reforma. O que haveria de problema com o prepúcio de Jesus (ou de Elias, que era israelita e também circuncidado) ter ficado? Ainda mais sem nexo me parece tal discussão diante do fato de que a Bíblia não diz que qualquer dos três, nem mesmo Jesus, ascendeu em corpo glorioso, mas no corpo da carne com que vieram ao mundo, com marcas de cravos da cruz, sem prepúcios, com cicatrizes e queimaduras, peludos, barbados ou pelados, dependendo do caso.
Cordiais saudações e bênçãos de Deus.

Paulo Alexandre


Meu caro Paulo Alexandre:

Grato pelas observações. A questão de Maria já foi corrigida em minha crônica. Foi um lapso meu. Quanto ao prepúcio de Cristo, não vejo problema algum. Problema é ver eruditos teólogos discutindo tais bobagens.

terça-feira, dezembro 12, 2006
 
SOBRE A TRANSUBSTANCIAÇÃO


Do leitor Humberto Araújo, recebi a mensagem infra. Agradeço sua observação sobre o fato de a assunção de Maria não estar relatada no Novo Testamento. Já corrigi meu texto nos jornais em que escrevo. Quanto a Nazaré, de fato ela não existe no Antigo Testamento. Só surge no Novo.


Prezado Sr. Janer,

Saudações,

Costumo ler seus textos na internet, e acompanhei a recente discussão sobre o dogma católico da transubstanciação. Mesmo sendo ateu, eu me interesso por tais assuntos, talvez porque convivo com uma família muito religiosa, ligada a uma igreja protestante tradicional.

Penso que o senhor tem razão quanto ao referido dogma. Desde quando eu era bem pequeno, minha mãe, que é protestante, tentava me explicar as diferenças doutrinárias entre a igreja romana e a religião dela. Uma das diferenças que ela enfatizava é o caráter simbólico da santa ceia para os protestantes, que afirmam que Jesus Cristo, quando determina a seus discípulos "fazei isto em memória de mim", queria apenas deixar claro que o ritual era somente uma forma de gravar a paixão na memória dos fiéis. Os católicos, entretanto, segundo minha mãe, acreditavam que a hóstia se tornava realmente o corpo de Cristo, devido à crença deles na transubstanciação.

A explicação de minha mãe fazia sentido para mim, pois eu já havia ouvido outras crianças dizendo que suas mães recomendavam que elas não mordessem a hóstia, porque poderia sair sangue. Até hoje ainda há pessoas mais velhas que dizem isto ("menimo, não morde a hóstia que sai sangue, uai!").

Há ainda a questão da condenação de Galileu. Não me lembro agora, mas li em algum lugar que Galileu foi condenado em 1633 não apenas pela defesa do heliocentrismo, mas também pela defesa do atomismo. Se não me engano, segundo o atomismo da época de Galileu, os corpos são formados por átomos imutáveis, e tal doutrina foi considerada heresia, pois impediria a transubstanciação do pão em carne.

Mas uma coisa que chamou minha atenção em seu texto foi a afirmação de que a ascensão da Virgem Maria aos céus é descrita no novo testamento. Posso estar enganado, pois não tenho uma bíblia aqui comigo, mas lembro-me que minha mãe também costumava dizer que a ascensão de Maria é uma invenção dos católicos, pois não está relatada na bíblia. Sei que a bíblia protestante tem alguns livros a menos que a católica, no velho testamento, e talvez minha afirmação de que a ascensão de Maria não está no texto bíblico seja fruto de minha ignorância acerca das escrituras utilizadas pela igreja romana. Há também na bíblia o relato de uma outra pessoa, além de Jesus e Elias, de quem se diz que foi levado aos céus por Deus antes de morrer: Enoque. Segundo o livro de Gênesis, 5:24, "Deus para si o tomou". Muitos religiosos afirmam que isto significa que ele foi levado para os céus.

Outra coisa que me chamou a atenção em seu texto foi o trecho em que o senhor menciona as palavras de Ratramno, "a encarnação nascida em Belém", e acrescenta um "sic" após o nome da cidade. Acho que já li em outros textos seus a defesa da idéia de que Jesus nasceu em Nazaré, e que a lenda do nascimento em Belém é apenas uma tentativa de adequar a vida de Cristo à profecia de Isaías. Eu acho que esta discussão é também interessante, mas acho que a figura de Jesus é historicamente tão nebulosa, como aliás soem ser as vidas de fundadores de religiões, que é difícil saber até mesmo se houve na história o tal Jesus de Nazaré. Já li em algum lugar que a afirmação de que Jesus era de uma cidade chamada Nazaré foi fruto da ignorância do autor do evangelho acerca do termo nazireu, que significaria, se não me engano, "alguém consagrado a Deus", e não alguém proveniente de um local chamado Nazaré. Li também que nunca existiu a cidade de Nazaré nos primeiros séculos de nossa era, e os locais hoje apontados como sendo a lendária cidade de Jesus foram determinados pela igreja durante as cruzadas. Não pense que tenho desprezo pelas fontes, por não mencioná-las. Acontece que estou escrevendo apenas utilizando minha memória, e se eu encontrar novamente as fontes destas informações, eu informo.

Penso que seus textos sobre a igreja e suas doutrinas, e meu ato de redigir este e-mail sobre eles, revela como ateus que tiveram a infância marcada pela presença da religião costumam manter o interesse acerca dela. Ultimamente eu tenho lido algumas teorias interessantes na internet sobre a hipótese de que Jesus nunca existiu. Essas teorias em geral se baseiam na escassez de fontes sobre a vida de Jesus no século I, mesmo entre os cristãos. Um dos sites mais interessantes sobre esta teoria é o de Earl Doherty, http://jesuspuzzle.humanists.net.

Um abraço,

Humberto Araújo Quaglio de Souza

 
SANTIAGO SEGUNDO LITTÍN




Santiago do Chile - A cidade é feia, pobre e suja. Pelos buracos e lixo acumulado nas amplas avenidas, adivinha-se uma capital que um dia foi próspera e cujos habitantes desfrutaram, em passado pouco distante, um alto nível de vida. Cidadãos pobremente vestidos, em seus ternos ainda restam farrapos de dignidade - e nada mais triste do que ver um homem cheio de remendos, mas elegantemente vestido, estendendo a mão súplice para pedir alguns centavos. Lojas vazias, de vazias e tristes vitrines, restaurantes entregues às moscas, garçons olhando para nada. Mal o sol se põe sobre o Pacífico, a capital escurece e os raros privilegiados da tirania se escondem em suas tocas, temerosos da fome e da justa violência dos deserdados. Mesmo durante o dia, nota-se tensão e medo nos rostos e gestos, como se alguém que agora circula livremente pelas ruas, no momento seguinte, sabe Deus lá por que razões, pudesse estar algemado nos porões da ditadura. Um exército parece ter postos suas patas sobre a cidade. Estou em Santiago do Chile. Do Chile de Pinochet.

O poder do tirano é onipresente. Em um país privilegiado pelos deuses, que por sua geografia se permite quatro estações simultâneas, mar e montanha, deserto e neve, os tentáculos da ditadura envolvem o território todo, manifestando-se principalmente na capital. Raríssimas bancas de jornais exibem apenas a imprensa laudatória ao regime. Jornais de oposição, nem em sonhos. A imprensa internacional está banida do país e só pode ser adquirida em hotéis de luxo, onde o cidadão comum só pode entrar se estiver disposto a sérios interrogatórios pela polícia do regime ao sair, mesmo que saia sem jornal algum. As raríssimas livrarias, de paupérrimas estantes, exibem não mais que literatura técnica e alguma ficção de escritores coniventes com a ditadura.

Miséria, lixo, decadência, medo, opressão, silêncio, desconfiança: estes são os odores que todo visitante, isento de quaisquer preconceitos ideológicos, respira em um rápido giro por Santiago. Mas as cidades são como árvores, quem quiser destruí-las terá de cortar-lhes as raízes. Estão vivas as raízes de Santiago. Que um dia será Salvador. Salvador Allende.

Terminasse eu aqui esta crônica, sem ajuntar sequer uma linha a mais, conquistaria platéias e simpatias, sem falar em tribunas, lugar ao sol e quem sabe até mesmo uma sinecura num órgão público qualquer. Acontece que estaria mentindo, transmitindo, é verdade, uma mentira que todos gostam de ouvir. Como não gosto de mentir, renuncio a eventuais simpatias e passo a contar o que vi.

Para quem está acostumado a bater pernas pelas ruas de cidades como Porto Alegre ou São Paulo, Santiago exerce um poderoso impacto pela conservação e limpeza de suas ruas e passeios. Nas capitais brasileiras, há muito resignei-me a enfrentar ruas sujas e esburacadas, sem falar no lixo cotidiano nelas jogado por transeuntes sem noção alguma de cidadania, meros habitantes, nefastos usuários da cidade. Passear pelas margens do Mapocho - rio que atravessa um aglomerado de cinco milhões de almas - respirar milagre, suas águas preservam a limpidez com que descem da Cordilheira. Para quem sofre a Beira-Mar Norte de Florianópolis - já nem falo do riacho Ipiranga ou Tietê - o Mapocho mais parece miragem de viajante perturbado pela travessia dos Andes.

Pelo Paseo de la Ahumada, rua Estado, Huérfanos, uma fauna humana e bem vestida (insisto em dizê-la humana, pois os transeuntes das ruas centrais do Rio ou São Paulo, sem ir mais longe, mais parecem animais machucados na luta pela vida) que há muito não se vê nas metrópoles da América Latina. Antes de Santiago, estive em Buenos Aires e a outrora elegante Florida, hoje, proporções à parte, mais parece rua Direita ou Nossa Senhora de Copacabana. Deixada de lado a agressão idiota - mas não perigosa - de cambistas à cata de divisas fortes, senti no centro de Santiago sensação que brasileiro algum pode hoje sentir em nossas capitais: a sensação de segurança. As ruas da capital chilena têm um ar de praça; nela vi velhos, jovens e crianças sentados, degustando sorvetes e o espetáculo da rua em si, tanto à tarde como à noite, sem preocupação alguma com assaltos ou violência gratuita. Para mim, que já penso duas vezes quando em Porto Alegre ao atravessar a Borges e a Praça XV para freqüentar o Chalé à noite, Santiago me fez evocar a Praça da Alfândega dos anos 60, quando filosofávamos madrugada adentro preocupados com a enteléquia aristotélica ou o ser em Sartre, jamais com punhais ou revólveres.

Outra surpresa, e das melhores, os quiosques de jornais e revistas. Penso que tais quiosques são uma excelente amostragem da cultura e liberdade de expressão de um país, neles podemos auscultar que tipo de informação consomem os cidadãos e, ao mesmo tempo, que qualidade ou quantidade de informação não proíbe o Estado de ser consumida. Pois bem: nesta Santiago que imaginava cidade sitiada e sob censura, vi nas bancas uma profusão e diversidade de jornais que sequer encontrei em Paris ou Madri. Jornais em cirílico do Leste europeu, imprensa de toda Europa, Escandinávia, Alemanha, França, Itália, Espanha, Estados Unidos, América Latina, Brasil. Sabendo como esta imprensa toda é gentil a Pinochet, o espanto do turista vira perplexidade. E mais: jornais chilenos malhando, em primeira página, a ditadura. Ocorre-me evocar os quiosques tristes e monocórdios que vi em cidades do Leste europeu, mas nem preciso ir tão longe. Nenhuma banca do Rio ou São Paulo, neste Brasil 88, me oferece tal quantidade e diversidade de informação.

Livrarias imensas, bem sortidas, onde não faltam livros de Fidel Castro ou Garcia Márquez, o mais ferrenho adversário de Pinochet e, curiosamente, defensor incondicional do ditador cubano. Tampouco faltam nas prateleiras obras de José Donoso ou Isabel Allende, isso para citar apenas dois opositores do regime chileno já conhecidos do leitor brasileiro. O que é no mínimo insólito em uma ditadura.

Nas vitrines e gôndolas das mercearias, víveres e bebidas do mundo todo, desde arenques do Báltico a foie gras trufado, dos mais diversos uísques da Escócia a vinhos alemães, franceses, italianos, espanhóis. E chilenos, naturalmente. Preços? Abordáveis. Para se ter uma idéia, pode-se comprar um scotch - com a certeza de que não são da reserva Stroessner - a partir de dez dólares, ou seja, o preço de um Natu Nobilis hoje. Que mais não seja, qual intelectual de esquerda não gostaria de viver em uma sociedade onde uma dose de um bom escocês custa, em bares, um dólar? Conheço não poucos exilados traumatizados com a democrática França de Mitterrand, onde um gole de uísque só é viável a partir dos cinco dólares. Piadas à parte, a farta oferta de tais produtos evidencia uma sociedade habituada a comer bem e com requinte, afinal comerciante algum seria insano a ponto de importar iguarias para turista ver.

Contava eu estas e outra coisas a uma moça ilhoa e bem-nascida, cidadã da Santa e Bela Catarina, dessas que julgam ser todo empresário um canalha, mas que jamais recusam uma cobertura facilitada por um pai empresário, dessas que jamais subiram o morro do Mocotó mas estão preocupadas com a colheita do café na Nicarágua, em suma, falava eu com um espécime típico da raça que chamo de os Novos Cafeicultores, e a objeção - a primeira objeção - caiu como um raio:

- E a miséria? Aposto que não foste visitar os bairros pobres, a periferia de Santiago.

Tinha razão em parte a jovem cafeicultora. Não visitei os bairros pobres de Santiago, afinal se troco as margens do Atlântico pelas do Pacífico, não será para ver miséria que conto meus parcos dólares. Não tenho a psicologia do francês médio, por exemplo, que mal chega ao Brasil, quer visitar favelas. Este comportamento, a meu ver doentio, parece-me ser vício de europeu inculto e de consciência pesada, que insiste em ver a miséria do Terceiro Mundo que explora, para depois contribuir com avos de seu bem-estar para guerrilhas suicidas. Se junto meus trocados para visitar um país, quero receber o que de melhor esse país tem a me oferecer. Nos anos que vivi em Paris, descia certa vez de Montmartre e enveredei pelas ruelas da Goutte d'Or, encrave árabe e paupérrimo que se alastra na cidade como mancha de óleo. Senti-me, de repente, em um território miserável para o qual jamais teria pensado em viajar, que mais não seja não será minha indignação ou revolta que resolverá o problema árabe na França. Dei meia volta, enfurnei-me na primeira boca de metrô e só voltei à superfície na Rive Gauche, a margem que mais me fascina do Sena. Não, não vi a miséria de Santiago. Mas consolei a cafeicultora: podes estar certa de que miséria existe, pois miséria está presente em qualquer metrópole do mundo.

Ela sorriu por dentro, parecia dizer: que bom que existe miséria em Santiago. O que me deixou um tanto perplexo, eu sorriria intimamente se soubesse que não existe miséria em lugar algum do mundo, independentemente de regimes políticos ou ideológicos. Ela, por sua vez, admitia a veracidade de meu relato. Ajuntei que a inflação era de seis por cento. Quando digo isto a um brasileiro, a reação normal é: "seis por cento ao mês?" Acontece que é seis por cento ao ano. Isto é sonho que, brasileiros, já nem ousamos sonhar. Se eu passar a alguém os preços de um restaurante que visitei em Santiago no mês passado, e se este alguém visitar o Chile no ano que vem, é provável que os preços continuem os mesmos ou, no máximo, tenham variado em torno de uns dez por cento a mais. Cá entre nós, não conseguimos recomendar para amanhã um restaurante no qual comemos ontem. Caiu, então, fulminante, a segunda objeção:

- Sim. Mas que preço pagaram os chilenos por este bem-estar?

Houve, no Chile, um assalto marxista e armado ao Estado e negá-lo é paranóia. Deste confronto resultaram, segundo alguns, dez mil mortes. Segundo outros, quarenta mil*. De qualquer forma, um preço infinitamente inferior ao preço pago pelos russos a Josiph Vissarionovitch Djugatchivili - que oscila entre vinte e sessenta milhões de cadáveres - para dar no que deu: uma confederação forçada de países pobres, alguns vivendo a nível de fome, como a Romênia e a Albânia. Bem mais barato que o preço pago pelos cambojanos a Pol Pot: dois milhões e meio de mortos, em um país de cinco milhões de habitantes, e disto não mais se fala. Sem falar que os que ficaram se jogam ao mar em jangadas, enfrentando tempestades, tubarões e piratas, ou já esquecemos os boatpeople? Sem falar nos que matou Castro - número que nenhum Garcia Márquez aventa - para instalar no Caribe seu gulag tropical. Em Cuba também há farta escolha de bebidas e gêneros alimentícios. Mas só o turista pode comprá-los, e com dólar. O cidadão cubano fica chupando no dedo. Nas praias, cheias de peixe, não há atividade pesqueira alguma, pois quem tem barco vai pra Miami.

- Justificas então tais mortes? - quis saber a moça - referindo-se, é claro, aos mortos do Chile, já que tornou-se tácito, para os fanáticos contemporâneos, que é lícito fazer correr sangue de certas pessoas e criminoso o de outras. Em suma, para usar dois conceitos que não me agradam, porque multívocos, é perfeitamente permissível fazer jorrar sangue da assim chamada direita e constitui sacrilégio, quase tabu, sangrar a assim chamada esquerda. Não justifico morte alguma, a humanidade tem pelo menos uns três mil anos de experiência histórica, milênios suficiente, parece-me, para concluirmos que não é matando que se chega a erigir a cidade humana.

- Cristaldices! - jogou-me na cara minha cafeicultora, digo, interlocutora. Pode ser. Chamo então um cineasta exilado que voltou clandestinamente ao Chile, em depoimento tomado por Gabriel Garcia Márquez, intitulado A Aventura de Miguel Littín Clandestino no Chile, já traduzido ao brasileiro por Eric Nepomuceno e encontradiço em qualquer livraria. No capítulo significativamente intitulado "Primeira desilusão: o esplendor da cidade", depõe Littín:

- Eu atravessei o salão quase deserto seguindo o carregador que recebeu minha bagagem na saída, e ali sofri o primeiro impacto do regresso. Não notava em nenhuma parte a militarização que esperava, nem o menor traço de miséria. (...) Não encontrava em nenhuma parte o aparato armado que eu tinha imaginado, sobretudo naquela época, com o estado de sítio. Tudo no aeroporto era limpo e luminoso, com anúncios em cores alegres e lojas grandes e bem sortidas de artigos importados, e não havia à vista nenhum guarda para dar informação a um viajante extraviado. Os táxis que esperavam lá fora não eram os decrépitos de antes, e sim modelos japoneses recentes, todos iguais e ordenados.

Mais adiante:

- Na medida em que chegávamos perto da cidade, o júbilo com lágrimas que eu tinha previsto para o regresso ia sendo substituído por um sentimento de incerteza. Na verdade o acesso ao antigo aeroporto de Los Cerrillos era uma estrada antiga, através de cortiços operários e quarteirões pobres, que sofreram uma repressão sangrenta durante o golpe militar. O acesso ao atual aeroporto internacional, em compensação, é uma auto-estrada iluminada como nos países mais desenvolvidos do mundo, e isto era um mau princípio para alguém como eu, que não só estava convencido da maldade da ditadura, como necessitava ver seus fracassos na rua, na vida diária, nos hábitos das pessoas, para filmá-los e divulgá-los pelo mundo. Mas a cada metro que avançávamos, o desassossego original ia se transformando numa franca desilusão. Elena (militante da esquerda chilena que acompanha Littín) me confessou mais tarde que ela também, ainda que estivesse estado no Chile várias vezes em épocas recentes, tinha padecido o mesmo desconcerto.

Coragem, leitor de esquerda. Adelante! Leiamos Littín, só mais um pouquinho:

- Não era para menos. Santiago, ao contrário do que contavam no exílio, aparecia como uma cidade radiante, com seus veneráveis monumentos iluminados e muita ordem e limpeza nas ruas. Os instrumentos de repressão eram menos visíveis do que em Paris ou Nova York. A interminável Alameda Bernardo O'Higgins abria-se frente a nossos olhos como uma corrente de luz, vinda lá da histórica Estação Central, construída pelo mesmo Gustavo Eiffel que fez a torre de Paris. Até as putinhas sonolentas na calçada oposta eram menos indigentes e tristes do que em outros tempos. De repente, do mesmo lado em que eu viajava, apareceu o Palácio de La Moneda, como um fantasma indesejado. Na última vez que eu o tinha visto, era uma carcaça coberta de cinzas. Agora, restaurado e outra vez em uso, parecia uma mansão de sonho ao fundo de um jardim francês.

Fico por aqui. Se o leitor ainda alimenta dúvidas, que visite o Chile, preferentemente após ter deambulado por Havana. O homem só conhece comparando. Para finalizar, apenas mais uma observação, não minha, mas de Littín, que talvez elucide a prosperidade atual de seu país.

- Uma das primeiras medidas que ele (Allende) tomou no governo foi a nacionalização das minas. Uma das primeiras medidas de Pinochet foi privatizá-las outra vez, como fez com todos os cemitérios, os trens, os portos e até o recolhimento do lixo.

O que esclarece, a meu ver, o fascínio das ruas de Santiago.

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* Este artigo foi publicado em Joinville, em A Notícia, 27.11.88. E em Porto Alegre, no RS, 10.12.88. Os números de mortes citados eram as estimativas de então. Hoje considera-se que o total de mortes ao longo da ditadura de Pinochet foi em torno de três mil.

 
SOBRE MEU INTENSO DESEJO DE ENCONTRAR DEUS


Escreve o leitor André Silva:

Li seu artigo De Ratramno a Radberto, e vejo com felicidade o rigor científico que devotas ao estudo da teologia, malgrado o desrespeito tão vergonhoso. Fosse o sr. um verdadeiro apóstata, não quereria mais saber de teologia católica.Se ainda te embrenhas nos caminhos teológicos é porque buscas a Deus. E a alma que busca a Deus já o encontrou de alguma forma. Nos teus próximos estudos, o sr. poderia usar a Prima Pars da Summa Teologiae, de Santo Tomás; ao menos as questões de 1 a 17. Quem sabe, ao procurar pedras para atirar na Igreja acabes encontrando os motivos por que tantos a amam.

De fato, tenho buscado Deus ultimamente, meu caro André. Vontade é o que não me falta de encontrar este cavalheiro. Para denunciá-lo, no Tribunal de Haia, por crimes contra a humanidade.

segunda-feira, dezembro 11, 2006
 
O ÚLTIMO DITADOR



No início dos 80, quando o Diário Catarinense era ainda um projeto em Florianópolis, fui convidado para escrever uma crônica para o nº 0. Era uma espécie de teste para a escolha de um cronista para o jornal. Escrevi sobre Fidel Castro. Lá pelas tantas, eu dizia que as esquerdas deveriam rezar pela boa saúde e longa vida de Alfredo Stroessner e Augusto Pinochet. Não que eu tivesse um maior apreço por estes senhores. Mas ocorre que, uma vez mortos, Fidel Castro seria o último tirano do continente.

Minha crônica rolou de tela em tela na redação, para indignação dos jovens que estavam montando o DC. Uma redatora chegou a abordar-me na rua, furiosa: "Cara, tu não podes escrever aquilo. Nós sabemos que é verdade, mas isso não pode ser escrito". Claro que não fui escolhido como cronista. O editor até que simpatizava com meu nome, mas não resistiu à pressão da redação. Antes mesmo de ser admitido, fui demitido... por Fidel.

2006 foi o ano da morte dos dois ditadores. Fidel, se sobreviveu, está mais morto do que vivo e talvez parta também neste ano. Na verdade, nem terá a dúbia honra de ser o último ditador. A América Latina, sempre a reboque da História, criou mais dois filhotes de tirano nos últimos anos, Chávez e Morales. Ao que tudo indica, não será tão cedo que teremos o último ditador neste continente.

Quantos milhões de pessoas uma pessoa precisa matar para morrer em odor de santidade? Talvez o problema de Pinochet seja ter matado tão poucos. Stalin matou 20 milhões e morreu como herói. Mao matou 70 milhões e até hoje é cultuado no Ocidente. Entre nós, é o guia dos sem-terra.

As pessoas que hoje condenam os 17 anos de ditadura e os três mil mortos de Pinochet, será que condenarão amanhã o quase meio de século de ditadura e os 17 mil mortos de Castro?

Há muita gente vibrando com a morte do ditador chileno que, bem ou mal, levou o Chile à condição de país mais próspero do continente. Veremos se vibrarão com a morte já próxima do ditador cubano, que levou sua ilha à miséria.

Veremos em breve.

domingo, dezembro 10, 2006
 
DE RATRAMNO A RADBERTO



Nunca imaginei que teologia pudesse suscitar maiores discussões nos dias que correm. No entanto, meu artigo sobre o filioque rendeu-me não poucos mails. Como me dizia uma leitora, nada como uma querela teológica para esquentar os tamborins. O que mais preocupou os leitores não foi a questão do Espírito Santo proceder do Pai ou do Pai e do Filho, e sim o fato de o comungante comer carne e não pão, beber sangue e não vinho, durante o sacramento da Eucaristia. O leitor Douglas Ferreira Gonçalves não aceita a definição de dogma da transubstanciação da carne, mas sim da transubstanciação do pão e do vinho. Bom, depende do ponto de vista. Olhando de aquém, o pão se transubstancia em carne. Olhando de além, a carne se transubstancia em pão. Dá no mesmo. Bonnet blanc, blanc bonnet, como dizem os franceses.

Mas não vamos nos perder em bizantinices. Ok! Aceito a definição do leitor. O que não dá para aceitar é o que segue: "Transubstanciação não significa 'a conversão literal do pão e do vinho na carne e no sangue de Cristo', mas sim a conversão da substância (transubstanciação) do pão e do vinho no próprio Cristo, que está presente de forma real sob as espécies do pão e do vinho, que continuam a mesma. Mudança de substância, e não de espécie. Portanto não faz sentido em falar em 'ato de canibalismo', pois o que o fiel recebe é pão e vinho em espécie, e não carne. Como pode ver, nós Católicos não só aceitamos o Dogma da Transubstanciação como o compreendemos, ao contrário do senhor que não o aceita e nem o compreende".

O leitor incorreu em heresia e não está sabendo disso. Vamos às origens do dogma. Recorro a meus dicionários de teologia e de heresias. Desde a antiguidade, os crentes mantinham que Cristo estava presente na eucaristia mas poucos haviam tentado definir exatamente o que significava a "presença de Cristo'. Muitos se conformavam com crer que de alguma forma comungavam com o Salvador. Em meados do século IX, um abade de Corbie (norte da França), Radberto, sentiu a necessidade de entender com maior exatidão o sacramento em questão. Radberto decidiu que a tradicional referência ao pão e ao vinho da comunhão como "carne e sangue" de Cristo não era meramente simbólica, e que na missa os comungantes consumiam realmente a carne humana e o sangue de Jesus. O pão e o vinho, embora não mudassem em aparência, convertiam-se milagrosamente em substância e tornavam-se os elementos materiais do corpo do filho de Maria. Os cristãos somente receberiam os benefícios espirituais de sua participação no sacramento se acreditavam que esta transformação invisível se havia operado durante a cerimônia.

Quando Radberto publicou esta interpretação canibalística da missa houve um clamor de protestos entre os teólogos de toda Europa. O rei Carlos, o Calvo, solicitou ao monge Ratramno um exame da doutrina de Radberto e um comentário da mesma. Ratramno rechaçou a doutrina do abade sobre a missa. Como todos os cristãos de sua época, não via inconveniente em admitir que Cristo estivesse presente na eucaristia, mas acreditava que a natureza desta presença era um mistério divino que não podia reduzir-se à transformação literal do pão e do vinho. Além disso, continuava a argumentação, o Cristo presente na eucaristia é seu corpo divino, não a encarnação nascida em Belém (sic!) muitos séculos antes. No entanto, foi a noção de Radberto que se converteu no dogma da Igreja católica romana. O vago "mistério" da presença de Cristo que Ratramno ensinava era mais difícil de entender, para as massas populares que a idéia chocante, mas simples, de que "presença de Cristo" significava presença corporal.

Ratramno, que expôs sua doutrina no livro De Corpore et Sanguinis Domini, não foi condenado por herege em vida. Pelo contrário, continuou sendo um teólogo respeitado e até sua morte, em 868, participou de outras controvérsias da época. No entanto, quando se reacendeu o debate sobre a eucaristia no século XI, a maioria se inclinou em favor das proposições de Radberto. A obra de Ratramno foi condenada e queimada no Sínodo de Vercelli (1050). Na época, sua autoria já fora esquecida e os conciliares a atribuíram a João Escoto Erígena, um contemporâneo de Ratramno.

Ou seja: na missa come-se a carne de Cristo e não um símbolo da carne de Cristo. Bebe-se o sangue de Cristo e não um símbolo do sangue de Cristo. E quem nisto não crer é herege. A hipótese que o leitor aventa, a de que "o que o fiel recebe é pão e vinho em espécie, e não carne", é herética. Mais precisamente, provém de Lutero, que rejeitava explicitamente a transubstanciação, ao afirmar que o pão e o vinho continuavam sendo plenamente pão e vinho, sendo ao mesmo tempo plenamente carne e sangue de Jesus. Se, para Lutero, os fiéis participam verdadeira e literalmente do corpo de Cristo durante a comunhão, isto não quer dizer que o pão se converta em corpo, e o vinho em sangue. O pão continua sendo pão, e o vinho, vinho - esta é a tese do leitor - mas agora estão também neles o corpo e o sangue do Senhor, e o crente se alimenta deles ao tomar o pão e o vinho. A esta tese deu-se o nome de consubstanciação.

Vamos aos textos do magistério da Santa Madre. O dogma da transubstanciação, se foi aventado no concílio de Latrão (1215), só toma corpo no concílio de Trento (1551). Na encíclica Ecclesia de Eucharistia, no capítulo 1 § 15, lemos: "Pela consagração do pão e do vinho se opera a transformação de toda substância do pão na substância do corpo do Cristo nosso Senhor e de toda a substância do vinho na substância de seu sangue; esta transformação, a Igreja católica a chamou justa e exatamente de transubstanciação".

Que mais não seja, o cânon 1° da 13ª sessão do concílio assim proclama:

"Se alguém nega que o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, com sua Alma, e a Divindade, e conseqüentemente Jesus Cristo todo inteiro, estão contidos verdadeiramente, realmente, e substancialmente no Sacramento da Muito Santa Eucaristia; mas diz que eles lá estão somente como em símbolo, ou ainda em forma, ou em virtude: seja anátema".

O leitor que se pretende católico está assumindo uma doutrina luterana. Vamos ao significado da palavra anátema. No Novo Testamento, o anátema é uma sentença de maldição em relação a uma doutrina ou pessoa, especialmente no quadro de uma heresia. O anátema é suprimido da comunidade dos fiéis. Para os católicos e ortodoxos, o anátema se traduz pela excomunhão dita "maior", ou seja, a de maior força e solenidade que os outros tipos de excomunhão.

O leitor está confundindo consubstanciação com transubstanciação. Ocorre que, para o católico, o problema tem apenas duas faces: canibalismo ou heresia. Tertius non datur. Houvesse ainda algum rigor no magistério da Santa Madre, Douglas já estaria excomungado. O que me espanta nisto tudo, é que caiba a um apóstata ministrar lições de boa teologia a quem se diz católico.

Há outros dogmas divertidos na mitologia cristã. Segundo a Igreja, só três personagens bíblicos subiram aos céus. Elias, no Antigo Testamento, e Cristo e Maria no Novo. A ascensão de Elias, em um carro de fogo, não gerou dogma. Dogmas foram a Assunção de Maria, curiosamente só oficializado em 1950, pelo papa Pio XII. A virgem, toda gloriosa, sobe aos céus, e a Igreja só reconhece o fato dois mil anos depois. Um outro dogma mais complicado é a Ascensão de Cristo, que "ressuscitou dentre os mortos e subiu ao céu em Corpo e Alma". Os teólogos, especialistas em filigranas, tiveram de discutir um grave problema. Cristo era judeu. Como todo judeu, havia sido circuncidado. Ao subir aos céus, teria deixado o prepúcio na terra?

Volto a meus tratados históricos. Não foi decretado dogma algum em torno ao prepúcio de Cristo, mas o assunto foi muito discutido na Idade Média. Em 1351, argumentava-se que o sangue versado pelo Cristo durante a Paixão havia perdido toda divindade, havia se separado do Verbo e restado sobre a terra. Clemente VI ouviu com horror esta assertiva. Reunindo uma assembléia de teólogos, combateu esta doutrina e conseguiu que ela fosse condenada. Os inquisidores receberam em toda parte a ordem de abrir procedimentos contra aqueles que tivessem a audácia de sustentar esta heresia.

Ocorre que os franciscanos discordavam do papa e diziam que o sangue de Cristo podia muito bem ter ficado na terra, pois o prepúcio extirpado por ocasião da circuncisão fora conservado na igreja de Latrão e era venerado como relíquia, sobre os próprios olhos do papa e dos cardeais e mesmo as gotas de sangue e água que corriam sobre a cruz estavam expostas aos fiéis em Mantova, Bruges e em outros lugares.

Mais de um século depois, em 1448, o franciscano Jean Bretonelle, professor de teologia na Universidade de Paris, submeteu a affaire à faculdade, declarando que esta questão provocava discussões em La Rochelle e em outros lugares. Uma comissão de teólogos foi nomeada e, após graves debates, tomaram uma solene decisão, declarando que não era contrário à fé crer que o sangue versado durante a Paixão tivesse ficado sobre a terra. Por analogia, o prepúcio também. Ou seja, se Cristo foi aos céus, o Sagrado Prepúcio ficou entre nós.

Mas isto já é outro assunto.

sexta-feira, dezembro 08, 2006
 
A VAIDADE E O VINHO DE VERONA



Há uma tendência na Europa de hoje de redução de custos em todos os setores da economia. No El País de ontem, Vicente Verdú escrevia: "um vôo (de Madri) a Londres 25 euros, uma semana de cruzeiro pela Costa azul por 500, um relógio três euros, 200 gramas de salmão criado na Noruega e defumado com madeiras de carvalho a 2,39 euros, um rádio de carro com MP3 e USD, 69 euros. Que temível conspiração capitalista se esconde sob este aparente reino de Jauja (país mítico de fabulosas riquezas que teria sido encontrado por Francisco Pizarro) nascido da noite para a manhã, desde o barato ao preço ínfimo, desde a tarifa acessível ao low cost?"

Leio na Vejinha os preços de certos objetos do desejo dos paulistanos, encontráveis nas vitrines da Haddock Lobo: uma bolsa Damier Azur, 5.400 reais. Ora, para mim esta bolsa significa duas idas-e-voltas a Paris. Um relógio Bulgari, pulseira e caixa de aço, 15.450 reais. Seis idas-e-voltas a Paris. Claro que para quem compra tais luxos ir e voltar a Paris é o de menos. Mesmo assim, é curioso observar esta mania de ostentação em um país no qual exibir um relógio ou uma bolsa dessas é um convite ao assalto ou seqüestro.

Os europeus não são infensos a tais luxos, é verdade. Mas na Europa pode-se andar com um relógio caro na rua sem o risco de perdê-lo. Chez nous, você pode perder até mesmo a vida.

Michel Bettane, um sommelier francês que esteve em maio passado em São Paulo, teve a infeliz idéia de degustar um expresso na cafeteria Santo Grão, na rua Oscar Freire. Gostou do café e pediu ao garçom para moer dois pacotes, para levar para a França. Com os pacotes, de 250 gramas cada, a surpresa: cada um custava 200 reais. Bettane acabou negociando, levou um pacote e outro ficou na casa. "É muito bom - disse o sommelier - fiz como expresso e extração francesa. Mas não vale tanto. Recomendo só para esnobes".

E esnobes é o que não falta em São Paulo. Há restaurantes oferecendo pratos com trufas brancas por 640 reais. Dois gramas de trufa a 180 reais. Há mesas de cinco ou seis pessoas cuja conta gira em torno de 50 ou 60 mil reais. E mais: os comensais brigam para pagar a conta toda. É o que chamo de restaurantes para pessoas jurídicas. Os custos são contabilizados como verba de representação. Quem acaba pagando a conta somos nós, contribuintes.

O que me lembra um pequeno restaurante em Verona, a mítica cidade italiana onde Shakespeare situou o meloso drama de Romeu e Julieta. O restaurante era simpático, sem maiores luxos e preços humanos. Mas, em meio a seus muitos vinhos, oferecia um de nada menos que onze mil dólares. Ora, mesmo se eu fosse um Bill Gates não pediria tal vinho. Vinho de onze mil dólares é vigarice. Que insumos, que custos de cultivo justificam onze mil dólares? Não me dei ao trabalho de medir, mas suponhamos que uma garrafa se consuma em 110 goles. Estarei bebendo 100 dólares a cada gole?

Só uma vaidade sem limites justifica tais preços. A minha não chega a tanto. Nunca chegou nem mesmo a 100 dólares. Já degustei excelentes sicilianos, riojanos, franceses, portugueses e vinhos aqui da Cordilheira, sem nunca ter pago nada além de 50 dólares. Não consigo entender que grau excelso de satisfação palatal possa justificar mais 10.950 dólares.

Mês que vem, estou viajando rumo ao low cost. Mandarei notícias.