¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, julho 31, 2010
 
ESTADÃO DENUNCIA E
FOLHA PROTEGE SEU
COLUNISTA CORRUPTO



Em 26 de junho do ano passado, escrevi nesta bitácora:

FOLHA SEGURA SENADOR LADRÃO

Hoje é sexta-feira. O senador ladrão continua assinando sua coluna na Folha de São Paulo. Olímpico, ignora o lamaçal em que afunda e lamenta a morte de uma menina em Teerã.

"E o símbolo desse protesto passa a ser Neda, uma mulher morta pela milícia fanática dos aiatolás, basiysí. Seu rosto ensanguentado foi mostrado em todo o mundo. Seu sangue sem dúvida vai motivar mais ainda a libertação da mulher iraniana. Isso mostra que nem as mais cruéis tiranias, mesmo as teocráticas, resistem às ideias de liberdade e igualdade".

Que o Senado proteja Sarney entende-se. Canalhas são sempre solidários entre si. Que a Folha o mantenha como colunista é mais difícil de entender. O jornal que denuncia suas corrupções lhe dá sustentação em página nobre. Ao que tudo indica, a Folha não tem o rabo preso com o leitor. Mas com o senador.


Voltei ao assunto em 31 de julho do mesmo ano:

FOLHA CONTINUA
DANDO ESPAÇO A
IMORTAL IMORAL


O Estadão de ontem revelava o acúmulo de salários com aposentadoria do qual se beneficia José Sarney, superando o limite constitucional de R$ 24,5 mil. E superando muito além do imaginável. Segundo o jornal, o senador imortal – e bota imortal nisso! – tem aposentadoria como ex-presidente da República, como ex-governador do Maranhão e ainda uma aposentadoria do Tribunal de Justiça do Maranhão, que poderiam somar algo em torno de R$ 45.000, além de receber mensalmente seu salário como senador, de R$ 16.512. O que dá um simpático salariozinho de 61.512 reais. Por mês. Não é de espantar que o senador sequer tenha notado os 3.800 reais que o Senado lhe pagava a título de auxílio-moradia, apesar de Sarney ter residência em Brasília.

Sessenta mil reais só de salários. Aqui não está computado o que o ilustre acadêmico recebe por fora, em decorrência de suas roubalheiras. Interrogado sobre porque político tão corrupto continua assinando coluna na Folha, o secretário de Redação sempre responde cinicamente que o jornal abriga toda gama de opiniões e que Sarney ainda não foi condenado em juízo por crime algum. Precisa?


Segundo a Secretaria da Redação, "interromper os seus artigos durante o tiroteio político mais intenso que sofria em 2009 poderia ser visto como uma forma de cercear um dos poucos espaços que Sarney tinha para expressar-se livremente".

Assim sendo, porque não dar uma coluna ao Paulo Maluf, ao Romeu Tuma Júnior e outras peças do mesmo jaez? A Folha está perdendo rapidamente credibilidade ao manter como colunista o senador. Isto leva o jornal a um constrangimento: como denunciar como corrupto um de seus colunistas? O Estadão de hoje que o diga. Manchete que encima a primeira página:

UM ANO DEPOIS, SARNEY BARRA INQUÉRITO DOS ATOS SECRETOS

BRASÍLIA - O presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), se nega a responder aos questionamentos da Procuradoria-Geral da República sobre os atos secretos e, com isso, paralisou as investigações abertas em 16 de junho de 2009, seis dias após o Estado revelar a existência dos boletins sigilosos.
Somente entre março e junho de 2010 dois ofícios de quatro páginas foram enviados pela Procuradoria - que representa o Ministério Público no diálogo com o Senado - diretamente ao próprio Sarney, mas nenhuma resposta foi dada pelo senador.
O primeiro, de número 169/2010, foi remetido ao presidente do Senado em 5 de março deste ano. Sem retorno, o Ministério Público insistiu no dia 8 de junho com o ofício 3286/2010, em que deu um prazo de 15 dias para Sarney.
Até ontem, não havia nos volumes do inquérito nenhuma resposta do parlamentar. Esses dois ofícios reúnem pedidos incluídos em outros três documentos endereçados em 2009, sem sucesso, à diretoria-geral.
O resultado dessa postura do Senado é a demora na conclusão do inquérito civil que apura as responsabilidades sobre as medidas ocultas que deram privilégios, gratificações, aumentaram salários e nomearam parentes e aliados de servidores e senadores, inclusive de José Sarney.


Na Folha de São Paulo, nem um pio. Com quem mesmo a Folha tem o rabo preso? Com o leitor é que não é.

 
KALOCAINA - XVIII

Karin Boye

Tradução do sueco de Janer Cristaldo




Meu desejo de aventura fora satisfeito. Minha vivência na capital fora múltipla e instrutiva o suficiente para que eu jamais a esquecesse: a prova de fogo da kalocaína diante de Tuareg, minha visita ao Sétimo Departamento e por fim a discussão psicológica dos filmes, para a qual eu não estava maduro. De fato, eu não estava realmente maduro para assisti-la. Persistia em mim e me devorava como um mau secreto. No entanto eu nada tinha a objetar contra afirmação alguma – as afirmações puramente psicológicas eu tinha de deixar para exame dos especialistas – e me envergonhava terrivelmente cada vez que pensava em meu ataque incompetente e idiota. Desde uma vez que percebia perfeitamente o equívoco, porque continuava então a torturar-me? Eu jamais ouvira ser conceituado tão clara e objetivamente o valor da contribuição dos cidadãos-soldados – e, no entanto, sentia-me como se o tormento de existir tivesse se tornado imenso e o sentido do conjunto infinitamente pequeno. Sabia ser esta uma visão falsa e malsã das coisas, e tentei convencer-me a mim mesmo com todos os argumentos possíveis. Mas para este vazio deserto que se alastrava em mim, não havia outro nome senão ausência de sentido.
Seria lindo, pensei aterrorizado, se algum policial brincalhão, ou mesmo Rissen, me tomasse a seringa das mãos e a cravasse em meu próprio braço. Não era difícil imaginar o que o Sétimo Departamento diria de meu estado de espírito. Bastava que Rissen tivesse autoridade para tanto, e provavelmente se dedicaria com prazer a desmascarar-me, e a buscar provas para sua afirmação: “nenhum cidadão-soldado acima dos quarenta tem a consciência limpa”. Não era isto o que ele desejava o tempo todo? Não fora ele quem me fizera chegar a este ponto, com suas insinuações pérfidas? O homem era um perigo para mim e para todos. O pior de tudo era imaginar até onde ele teria conduzido Linda à ruína, e se estavam aliados contra mim, os dois.
Tudo isto permanecia sob a superfície e fermentava. Exteriormente eu tinha muito a fazer para que pudesse dedicar meu tempo a elucubrações. Tuareg já havia dado ordens para que os procedimentos judiciais comuns fossem substituídos pelo exame com kalocaína, e gente de todo o Estado Mundial já fazia filas para participar de novos cursos que estávamos organizando. Fomos transferidos – até nova ordem, diziam – para o serviço policial e recebemos instalações na Casa de Polícia. Karrek enviou todos os prisioneiros diretamente a nossas salas de aula, para que fossem ao mesmo tempo interrogados a fundo e servissem como material de experiências; por isso sempre estavam presentes um alto policial ou militar como juiz, e o protocolo era redigido tanto pelos secretários de polícia como pelos secretários à disposição do curso.
Evidenciou-se logo que o trabalho crescia a ponto de sufocar-nos. Tínhamos de aceitar mais gente no curso do que seria conveniente, e mesmo assim muitos tinham ainda de esperar. Tampouco tínhamos tempo para examinar todos os prisioneiros que chegavam. Tivemos de apressar cada caso e inclusive de encurtar em meia hora a pausa para almoço.
O trabalho das cortes de justiça sempre foi – pelo que se pode lembrar – secreto; eu não dispunha por isso de elemento algum de comparação. Quase todos os interrogados fraquejavam, arrasados e destruídos – sem razão, podia-se quase pensar, após centenas de contradições de cidadãos-soldados mais ou menos estranhos – e, no entanto, suas revelações eram muitas vezes tão ridículas e insignificantes, do ponto de vista judicial, que se começou a duvidar se o sistema todo compensava seu custo. Surgiram ainda dificuldades com a kalocaína, que era fabricada em quantidades cada vez menores nos laboratórios.
Certa vez discutimos a questão durante o almoço. (Nós, isto é, Rissen, eu e todos os participantes do curso, tínhamos reservado uma longa mesa no grande refeitório, onde também comia o pessoal auxiliar da Casa de Polícia. Como sempre havíamos trabalhado a todo vapor pela manhã, o ar estava mais úmido e quente que o normal e, para cúmulo de tudo, dois dos ventiladores de nossa sala haviam feito greve. Alguém reclamou em voz alta das muitas denúncias ocasionadas por ninharias e mesmo por nada.
– As denúncias aumentaram ininterruptamente durante os últimos vinte anos – disse Rissen. – Sei isso do próprio chefe de polícia.
– Mas isto não significa necessariamente que a criminalidade tenha aumentado – disse eu. – Pode muito bem ser que a lealdade tenha aumentado, a sensibilidade para descobrir onde está a podridão...
– Isto significa que o terror aumentou – disse Rissen, com inusitada energia.
– Terror?
– Sim, o terror. Encaminhamo-nos para uma vigilância cada vez mais rígida, e isto não nos traz mais segurança como esperávamos, mas sim angústia. Quando uma fera se sente ameaçada e não vê senda por onde fugir, passa ao ataque. Quando o terror se espalha entre nós, nada há para fazer senão golpear primeiro. Isto é difícil, quando nem sabemos onde golpear... Melhor prevenir que remediar, não diz assim o velho ditado? Golpeie-se com suficiente profundidade e precisão, talvez seja possível salvar-se. Exista uma velha história de um espadachim tão preciso que conseguia manter seco sob a chuva: golpeava as gotas que caíam com sua espada, de forma que nenhuma o atingia. Devemos esgrimir mais ou menos assim, agora que chegamos ao grande Terror.
– O senhor fala como se todos tivessem algo a esconder – respondi, ao mesmo tempo em que ouvia quão falsas soavam minhas palavras, quão pouco convenciam.
Embora não quisesse acreditar nele, contra minha vontade vislumbrei algo que me aterrou. Se apesar de tudo ele tivesse razão, e se minha missão junto a Lavris surtisse efeito, se não apenas palavras e atos como também pensamentos e sentimentos fossem devassados e julgados – então, então... Como formigas rastejantes em um formigueiro, todos cidadãos-soldados se poriam em movimento, não como formigas para trabalhar em conjunto, mas sim para prevenir-se contra os demais. Eu os via formigar: colegas delatando colegas, maridos delatando esposas e esposas delatando maridos, subordinados delatando chefes e chefes delatando subordinados... Rissen não podia estar certo. Eu o odiava pelo seu poder de impor-me seus pensamentos. Mas tornei-me calmo ao pensar em quem seria o primeiro delatado, se a nova legislação se tornasse realidade.
Alguns dias mais tarde chegaram ordens de Karrek para que o curso fosse dividido. Os interrogatórios judiciais seguintes com as aulas paralelas seriam dirigidos por Rissen, com o auxílio dos mais avançados participantes do curso. Quanto a mim, passaria a dirigir um curso especial de química para que mais tarde pudesse iniciar a fabricação de kalocaína em grande escala.
Entendi logo tratar-se de um caso de necessidade. Além disso devia estar satisfeito em poder voltar a trabalhar em química. Mesmo assim a ordem deixou-me irritado e decepcionado.
Enfim, as coisas transcorreram deste modo:
Entre as pessoas por nós interrogadas tivemos tempo todo o mesmo homem velho da seita de loucos, do qual falei antes e que surgira antes de nossa viagem à capital. Por acidente, seu caso havia sido suspenso – ele adoecera e não melhorara senão agora – e constava da ordem do dia seguinte, exatamente quando eu começaria meu novo curso de química. Surpreendi-me e até quase me assustei, ao notar o quão decepcionado estava por não presenciar aquele interrogatório. Devo perguntar-me a mim mesmo se esperava algo ao estilo daquela mulher que me causara tão profunda impressão – se desejava expor-me novamente a semelhantes influências perigosas. Em verdade eu não necessitava prender-me a tão degradantes motivações. Meu interesse se referia certamente antes de mais nada à trama que Karrek ordenara que destrinchássemos – eu queria saber que espécie de cerne se ocultava sob todas aquelas loucuras. O aspecto inteligente do homem indicava que ele poderia estar mais profundamente iniciado nos íntimos segredos da reunião do que qualquer outro que havíamos encontrado antes. Eu desejava intensamente estar presente ao desmascaramento, principalmente por suspeitar que Rissen alimentava simpatias em relação à seita. Existe de fato um interesse negativo, disse a mim mesmo, que nada tem a ver com o positivo. E este era meu interesse para com os loucos, como também para com Rissen.
Embora fosse constrangido a obedecer ordens, não perderia de forma alguma o caso de vista, prometi a mim mesmo.
– Permita-me perguntar se aquele homem doente foi examinado hoje – perguntei, no dia seguinte, durante o almoço.
– Sim, foi interrogado hoje – respondeu Rissen com breviedade.
– E que surgiu à tona? Algo criminoso?
– Foi condenado a trabalhos forçados.
– Condenado por quê?
– Supõe-se que ele é subversivo.
Impossível extrair de meu chefe de controle algo sólido e tangível. Não vi nenhuma outra saída senão pedir para ver o protocolo.
– Quanto a isto não tenho instrução alguma que o permita ou proíba – disse Rissen. – Isso é com o chefe de polícia.
Karrek não pôs dificuldade alguma, quando lhe pedi permissão por telefone. Na primeira noite livre fui até a Casa da Polícia, onde Rissen me esperava para abrir o arquivo e entregar-me o documento. Era o protocolo do curso (o da polícia se encontrava em outro lugar, não sei onde), e bastante detalhado. Eu tinha de lê-lo no local, e inicialmente irritei-me com o fato de Rissen ter trabalhos a executar exatamente naquela noite. Compreendi que ele queria dar informações e esclarecimentos, e eu não os desejava.
Mal comecei minha leitura, mudei de idéia. Já que ele em todo caso se encontrava a mão, eu podia muito bem fazer-lhe algumas perguntas.
– Sobre isto eu gostaria de ter maiores detalhes – disse eu. “O interrogado começou a articular estranhas canções”. Que quer dizer isto? Por que estranhas?
Rissen sacudiu os ombros.
– Eles são assim, respondeu. Não se assemelham a nada que eu tenha ouvido falar antes. Palavras obscuras, apenas parábolas e imagens, acho eu, e melodias, e não consigo imaginar como algum soldado no mundo poderia marchar ao som delas... Mas me causaram uma tal impressão que dificilmente algo já me causou.

sexta-feira, julho 30, 2010
 
KALOCAINA - XVII

Karin Boye

Tradução do sueco de Janer Cristaldo




A discussão começou. Alguém indicou a importância de se apresentarem heróis jovens em vários filmes para cativar a juventude. Não que fosse desejável contar-se com cobaias mais jovens. A estatística mostrava que uma cobaia suportava em média um determinado número de anos, independentemente da idade em que começara a ser utilizada, e podia-se inclusive afirmar ser indiscutivelmente mais vantajoso que o Estado primeiro o utilizasse durante alguns anos em outra profissão e depois (durante esse número estatístico de anos) no Serviço Voluntário, em vez de utilizá-lo apenas durante estes últimos anos. Mas uma razão pesava mais: os jovens eram mais facilmente influenciáveis. O casamento e o dia-a-dia tomado pelo trabalho influenciavam desfavoravelmente o número de inscrições. Evidentemente, existiam em todos os grupos e faixas etárias pessoas solitárias, que perambulavam famintas de algo, embora não soubessem precisamente de quê. Quando a assim chamada felicidade e a assim chamada vida as decepcionavam, estavam prontas para uma busca no sentido oposto, pois talvez então tivessem melhor sorte. Tais seres não deviam ser esquecidos. Mas a idade juvenil – antes de mais nada uma faixa etária cuidadosamente escolhida – era a idade da solidão e das decepções por excelência – ou talvez apenas a temerária idade da solidão e das decepções? – e consequentemente devia ser a idade mais visada pela campanha.

Um outro sublinhou as palavras do último orador e acrescentou que a idade jovem tinha mais vantagem em relação à madura: como tais volumes de inscrições afluíam dos acampamentos juvenis após cada campanha cuidadosamente preparada, tinha-se condições de fazer uma triagem. Não havia sentido algum em aceitar todo e qualquer inscrito. Muitos tinham tais dotes que o Estado tiraria o melhor proveito de seus cérebros que de seus tecidos e órgãos. Disto concluía-se que a idade mínima não deveria ser muito baixa. Antes dos quinze ou dezesseis anos era geralmente arriscado julgar-se suas possibilidades genéricas e especiais de utilização.

O orador seguinte apresentou objeções contra este último e afirmou que, já desde os oito anos, podia-se distinguir alguma capacidade especial que merecesse ser cultivada ou não, e que muito bem se podia baixar a idade mínima de inscrição para oito anos, e por que não, inclusive rodar alguns filmes especialmente elaborados para influenciar crianças nessa idade? Contra este objetou um outro que, por um lado, conheciam-se muitos exemplos de capacidades de grande proveito que não se manifestavam senão em idades posteriores; por outro lado, um tal apelo em relação à idade infantil não teria significação suficiente para justificar os custos de produções extras. Algo seria evidentemente economizado, uma vez que as crianças eventualmente inscritas não necessitariam de instrução especial, mas por outro lado, as tendências heróicas desta espécie não se manifestavam seriamente antes da puberdade.

Um outro afirmou a importância de não lançar filmes com intervalos por demais longos. Em verdade, não se necessitava exercer grande pressão para provocar estas inscrições. Um certo impacto era suficiente para produzir uma influência tão forte quanto violenta e significativamente menos perigosa a longo prazo. De preferência, forçar uma rápida decisão: agora ou nunca – tome-se a decisão em determinado tempo ou será tarde demais para decidir! A angústia que geralmente surge em definidas situações críticas da vida se intensifica diante da rápida opção e conduz à direção certa, se a propaganda foi bem dirigida.

Alguém agradeceu pelo último ponto de vista e acentuou que esta angústia que, por vezes, se intensifica em cada cidadão-soldado podia tornar-se uma riqueza incalculável para o Estado, desde que manipulada por psicólogos experientes. Ao ser usada, por assim dizer, como estímulo para uma decisão, não se constatou mal algum que a decisão fosse tomada um tanto precipitadamente. Esta decisão aumentava a sensação de alívio e alegria extasiante dos primeiros inscritos e conduzia novos a se inscreverem em maior quantidade ainda. Inscrições irrevogáveis ultrapassavam o objetivo que se pretendia; o orador julgava inclusive serem excessivos os dez anos obrigatórios. Alcançava-se o mesmo efeito com menores dificuldades, estabelecendo-se a validade da inscrição por cinco anos. Após este período, a cobaia quase não tinha mais juventude, força e possibilidades de seguir um novo rumo. Com uma propaganda bem elaborada podia-se evitar toda violência e consequentemente toda oposição.

Lembre-se de que eu estava doente. De outra forma não se explica que tenha me levantado e pedido a palavra. N° 135 não havia estranhamente cessado de assombrar meus pensamentos. Enquanto o tinha em mãos, fiz tudo para humilhá-lo, mas agora pareceu-me que devia defendê-lo.

– Quero fazer uma observação ao modo como os senhores tratam nossos cidadãos-soldados como mecanismos – disse eu lentamente, tateante. – Isto me parece ser uma falta de consideração... De respeito...

Faltou-me a voz, senti que a cabeça girava a ponto de não poder enunciar perfeitamente as palavras.

– De forma alguma! – gritou um dos oradores anteriores, ríspida e impacientemente. – Que insinuações são essas? Ninguém valoriza mais do que eu o tipo heróico. Como não iria saber o quão necessários são para o Estado – eu, que dediquei longos anos de minha vida a estudar exatamente esse tipo e suas condições! O senhor acha que talvez eu tenha feito isso por julgá-los inúteis? E o senhor ainda fala em falta de consideração!

– Bem, bem – respondi confuso –, consideração pelo resultado... Mas... Mas...

– Mas o quê? – perguntou meu oponente quando silenciei. – Para o que não tenho consideração?

– Nada – respondi abatido e sentei-me. – O senhor tem razão. Enganei-me e peço desculpas.

Constatei, suando frio, que havia me contido no momento exato. Que pretendia eu dizer? “Vocês não têm consideração para com o n° 135?” Belos pontos de vista! Tendências individualistas escondidas sob a superfície. Senti medo de mim mesmo.

Não, não de mim mesmo! Não era eu, este que eu repudiava e lutava contra. Não era eu. Era Rissen.

Durante um longo momento nada ouvi do que acontecia em torno de mim, tão nervoso estava pelo perigo que evitara. Quando finalmente consegui concentrar-me, Djin Kakumita estava na tribuna. Falava já há algum tempo, pelo que pude perceber.

– Este por assim dizer tipo heróico passivo torna-se cada vez mais solicitado pelo Estado nos dias que correm. São imprescindíveis não apenas no Serviço de Cobaias, mas também como recrutas, reprodutoras e fornecedoras de crianças para o Estado e em milhares de outros pontos. Especialmente aguda se torna esta necessidade nos tempos de guerra, quando cada cidadão-soldado deve integrar este grupo. Por outro lado, é claro para qualquer um, não ser desejável que ocupem posições de liderança, onde se exige olhar frio e objetivo, rápido espírito de iniciativa e energia sem escrúpulos. Podemos então situar assim o problema: como se pode, em caso de necessidade, aumentar a presença deste mais nobre de todos os tipos, desta alma solitária e desesperada de herói, decepcionada com a vida e inclinada para o sofrimento e a morte?...

Eu me sentia muito mal e decidi deixar a sala. Como era estranho ao meio e não pertencia a nenhum dos grupos de trabalho, isto a rigor não tinha importância alguma. Com passos lentos e silenciosos, tentando atrapalhar o menos possível, cheguei furtivamente até a porta, onde mostrei ao vigia meus papéis e expliquei, sussurrando, meu estado. Em meio às explicações fui interrompido por um homem alto e moreno, em uniforme policial-militar com patente bastante alta. Vinha de fora e queria entrar na sala nestas horas já tardias da noite. Mostrou um papel ao vigia, que não só lhe permitia a passagem como também o conduziu imediatamente até a sala, de forma que pudesse passar sem problemas para o corredor. Lá dentro ouviu-se uma voz baixa e firme, embora eu não pudesse ouvir o que dizia, e, ao calar-se um murmúrio cresceu no auditório.

O vigia voltou ao seu posto, e não pude deixar de perguntar do que se tratava.

– Ssssst – sussurrou, olhando em volta. – Já que o senhor participa da reunião, cidadão-soldado, posso contar-lhe. A produção de filmes publicitários para o Serviço Voluntário de Cobaias foi suspensa. Todas as forças são necessárias em outro ponto. O senhor compreende o que isto significa, e eu também compreendo, mas nenhum de nós tem o direito de compreendê-lo em voz alta...

Expressar-se assim já era compreender em voz alta, mas não me preocupei em censurá-lo, senão tratei de tomar logo o elevador, cansado como estava. Mas ele tinha razão. Eu entendera muito bem o que a interrupção significava. O Estado Mundial estava à sombra de uma nova guerra.

quinta-feira, julho 29, 2010
 
KALOCAINA - XVI

Karin Boye

Tradução do sueco de Janer Cristaldo




Eu tinha quase certeza de que ele cometera uma besteira. Só alguns dias mais tarde fui saber que legalmente eu jamais teria tido acesso ao Palácio dos Estúdios Cinematográficos. Era evidente ser necessária toda uma preparação, talvez uma educação totalmente diversa, para evitar o choque que eu recebi. Consequentemente, era também evidente que as autoridades competentes teriam resolutamente me negado a entrada. A impressão foi certamente um pouco destorcida em função de meu estado febril; mas tais distorções costumam passar rapidamente, e a comoção que experimentei à noite no Palácio dos Estúdios Cinematográficos deixou-me marcas por várias semanas.

Minha decidida permanência no mundo dos princípios teve fugaz existência. A frieza impecável de Lavris abalara minha confiança, talvez mais que tudo a fé em mim mesmo. Quem era eu para propor planos para salvar o Estado? Um homem doente e cansado, por demais doente e cansado para buscar refúgio em princípios éticos de impecável funcionamento, de surda e sonora voz. Lavris teria tido uma voz profunda, maternal, como aquela mulher da seita de loucos, teria consolado como Linda, teria sido uma mulher simples, comum... Neste ponto fui arrancado de minha semi-sonolência cansada e pulei do metrô. A apresentação do funcionário com o carimbo do Terceiro Departamento servira como licença, e sem saber exatamente como, lá estava eu diante da porta subterrânea que conduzia ao Palácio dos Estúdios Cinematográficos. Na capital, todos os edifícios de grande importância tinham portas subterrâneas e acabou acontecendo que em toda minha viagem jamais tive a sorte de subir ao ar livre.

Quando insisti em meu capricho e solicitei que me fosse permitido participar dos preparativos, pensei que assistiria à realização de um filme. Seria muito interessante, e para meu estado, repousante, sentar mais ou menos comodamente para assistir à criação do filme. Mas eu me enganara. A sala onde fui introduzido era uma sala comum de conferências, sem refletores nem bastidores. Uma centena de espectadores lotava as cadeiras, nada mais. Interrogaram-me minuciosamente sobre quem eu era, examinaram todos os meus papéis e por fim me colocaram numa das últimas filas.

Fez-se o discurso de saudação. Deduzi que a reunião trataria de examinar em linhas gerais uma série de roteiros, apanhar as linhas gerais mais importantes para um trabalho satisfatório e fazer uma primeira triagem. Uma série de instituições se fazia representar, entre outros diversos departamentos do Ministério de Propaganda, comissões diretivas das instituições artísticas e o Ministério da Saúde. O Serviço Voluntário de Cobaias não estava representado, o que ninguém entendia melhor do que eu. Inicialmente foi saudado com boas-vindas o conferencista da noite, um psicólogo especializado na matéria, ao que tudo indicava. Eu o engoli com os olhos quando subiu à tribuna. Nós mal conhecíamos psicólogos na Cidade Química, exceto alguns poucos conselheiros dos acampamentos infantis e juvenis e os psicotécnicos que realizavam as provas necessárias quando os jovens eram sorteados para as diferentes profissões. Djin Kakumita era pequeno e delgado, cabelos esbranquiçados e movimentos vivos e bem estudados de mãos. Quando tento reproduzir o preâmbulo de seu discurso, palavra por palavra, sei muito bem ser impossível fazê-lo, pois longos trechos ficaram perdidos na memória. No entanto, creio que o quadro é bastante claro para que possa dar uma idéia do conteúdo principal.

– Cidadãos-soldados – começou. – Frente a mim tenho um grosso volume, que tem sua origem em não menos de 372 roteiristas. É impensável discutir-se um a um dos 372 manuscritos, alguns escritores deverão perdoar-nos. (Risos entre os assistentes: naturalmente nenhum desses subescritores, que por assim dizer produziam matéria-prima, eram convidados para o trabalho qualificado posterior). Em vez disso farei rapidamente uma crítica em linhas gerais, que será ao mesmo tempo o fio condutor do trabalho.

– Antes de mais nada, permiti-me dividir estas histórias em dois grandes grupos principais: as com final feliz e as com final infeliz. Como o objetivo é atrair e incitar, poderia se crer que as de final feliz seriam as mais adequadas. Não é este, no entanto, o caso, como provarei agora. Para quem o final feliz é atrativo? Para os apáticos, que no fundo, em suma, temem os sofrimentos e a morte, e não é a estes que nos dirigimos. Investigações psicológicas têm-nos levado a concluir que as cobaias recrutadas entre estes são em pequeno e cada vez menor número. Quando tais pessoas chegam à feliz conclusão, esquecem alegremente o próprio conteúdo do filme. Voltam para casa e dormem tranquilas, convencidas de que o herói e a heroína se saíram bem. Não se dirigem ao serviço de propaganda para se inscreverem. Sacrifícios com final feliz servem para os intervalos entre as campanhas, não para os períodos de campanha. Servem para acalmar e tranquilizar familiares e demais cidadãos-soldados quando estes se perguntam por filhos, irmãos, colegas que desapareceram no Serviço Voluntário. Tais filmes devem ser produzidos esporadicamente e sua influência deverá ser positiva; não devem apenas ter um final feliz, senão também um sólido enredo recheado de humor sadio, cenas cômicas, preferentemente com situações comoventes, mas não heróicas. Uma série de manuscritos apresenta uma feliz mistura de uma mentalidade desejável durante os intervalos e da que deve ser divulgada nos períodos de campanha mesmo.

– Os filmes que mais pessoas atraíram foram os com o assim chamado final infeliz. Digo o assim chamado, pois é sempre arbitrária a conceituação do que seja a mais alta felicidade para o indivíduo, arbitrária e eventualmente fria, pois a rigor nada deve ser considerado a partir do ponto de vista individual. Em todo caso, estou me referindo aos filmes em que o herói sucumbe. Em quaisquer circunstâncias podemos contar com uma certa porcentagem de cidadãos-soldados para os quais isto é, no fundo, a maior felicidade, principalmente se ocorre em holocausto ao Estado. É principalmente desta porcentagem que são recrutadas as cobaias voluntárias, e tenho razões para crer, razões que voltarei a comentar mais tarde, que esta porcentagem é bastante grande e nossos dias. Trata-se, pois, de despertar e excitar as tendências já existentes em cada um, e orientá-las no rumo certo.

– Em regra os heróis expostos ao ridículo são bastante difíceis de contentar quanto à escolha de suas ruínas. Deve-se apresentar um que fascine. Antes de mais nada deve-se evitar rigorosamente todas essas doenças e formas de morte que têm em si algo de ridículo. Estados nos quais a cobaia torna-se um trapo, sem condições de manter a dignidade, nem poder dominar-se, sem condições de auxiliar-se a si mesmo nas necessidades biológicas mais elementares; não condenáveis em filmes deste tipo. Para filmes de períodos intermediários – perfeitos! E neste caso, com final feliz e reforço no lado cômico. Mas os sofrimentos que atraem heróis devem ser

a) dignos de serem vistos, e

b) adequados.

– A aspiração de sentir-se como instrumento exclusivo de um objetivo mais alto é um instinto com que se pode contar ilimitadamente nos tipos de herói com que até agora mantive contato. Ninguém pode seriamente acreditar que sua vida tenha um valor em si mesma. Se falamos do valor de uma vida, este valor evidentemente será algo que está fora do indivíduo. Qual dia, qual momento de nossa vida, ousamos interpretar como estas noções sobre a insignificância da vida individual em si mesma tem sua correspondência em uma cada vez mais profunda consciência das insondáveis exigências do Mais Alto Objetivo, isto é, do alvorecer da consciência do Estado nos cérebros dos cidadãos-soldados. Este sofrimento que o filme apresenta deve conter um benefício supra-individual demonstrável como objetivo – não deve ser uma pessoa que se salva com a morte do herói, pois então ele podia perfeitamente ter salvo a si mesmo! – nem mesmo uma pequena quantidade, senão milhares, milhões, de preferência todos os cidadaõs-soldados do Estado Mundial.

Um subcapítulo desta adequação é:

c) o glorioso da morte que se apresenta. Com isto não quero afirmar que o herói deva colher a glória de seus atos; isto baixa o nível dos filmes e pouco influencia as naturezas verdadeiramente heróicas. Pelo contrário, ele deve ser salvo de uma profunda desonra íntima. Contra o herói contrapomos notadamente o vilão, associal e com motivações egoístas, o homem que não resiste às tentações e se esquiva da dor e da morte. Mortalmente feio ou antipaticamente descuidado na aparência, flácido e indisciplinado, ele deve percorrer o enredo todo como um paralelo de advertência, no entanto jamais tão exageradamente apresentado a ponto de picar como uma agulha as consciências mais sensíveis: você, espectador, não será assim, por acaso? O temor de ser covarde, desonrado, interiormente feio, é geralmente uma intensa força de atração nos tipos heróicos que descrevi, os quais devemos ter em vista antes de tudo em nossa campanha.

– Muito poucos são os manuscritos em meu poder que preenchem todas as rígidas exigências que acabei de apresentar. A continuação de nosso trabalho será bastante instrutiva: o material será dividido entre vários estúdios, triado e criticado segundo as linhas de orientação de que falei, e o que puder ser utilizado será remodelado, melhorado, polido, até que reste um número relativamente pequeno de proposições, mas totalmente satisfatório. Este trabalho deverá estar pronto em quatorze dias, quando nos reuniremos novamente para examinar juntos o resultado. Devo agora agradecer a palavra, esperando uma viva discussão.

Desceu da tribuna. Eu me sentia terrivelmente mal, embora não soubesse dizer exatamente por quê. Estava seguro de que todos viam o psicólogo como alguém que inspirava confiança ao falar dos cidadãos-soldados como um técnico meticuloso fala de mecanismos sofisticados, que todos eram transportados por sua superioridade e de que ele, pessoalmente, julgava-se acima da máquina, manipulando os controles. Mas, dependesse ou não da febre, eu conservava sempre viva a imagem de minha primeira cobaia, n° 135, e de seu único grande momento, que eu invejava. Podia desprezar n° 135 tanto quanto quisesse, podia maltratá-lo em pensamentos ou na realidade, mas enquanto o invejasse, não podia jamais concebê-lo como o engenheiro a sua máquina.

quarta-feira, julho 28, 2010
 
KALOCAINA - XV

Karin Boye

Tradução do sueco de Janer Cristaldo




Tivemos de esperar Tuareg. Quando se está acostumado a ter obrigações fixas a cada minuto, dia e noite, um tal espaço do tempo vago torna-se uma tortura incrível, mas tudo, inclusive o pior, tem sua compensação, e por fim nos encontrarmos face ao Ministro da Polícia, com a chance de mostrar-lhe para que servia a kalocaína. Nunca acreditaria ser necessário controlar-me tão violentamente para não tremer as mãos quando foram arregaçadas as mangas de um delinquente barbudo sentado na cadeira à minha frente, mas os pequenos olhos de urso de Tuareg me alfinetavam a nuca tão agudamente que eu quase me sentia sob a agulha da seringa. Enfim, tudo transcorreu bem. Em meio a uma série de circunstâncias difíceis, que fizeram o Ministro inclusive esboçar um sorriso com sua boca carnuda, o que tornou mais descontraído o ambiente, o interrogado confessou sem esquecer detalhes, não só o crime pelo qual fora acusado e ao qual até então se carecia de provas concludentes, como também uma série de outras transgressões, que cometera sozinho ou com outros. Informou nomes e circunstâncias sem vacilar. As narinas de Tuareg se dilatavam de satisfação.

Continuamos com outros. Rissen e eu aplicávamos alternadamente a droga, o próprio secretário do Ministro fazia o protocolo, e para testar-nos enviavam um ou outro cidadão-soldado inocente entre os demais – isto é, inocente quanto a transgressões à lei; em um sentido mais amplo, a palavra dificilmente conviria a qual quer que fosse, para evidente satisfação do Ministro de Polícia. Quando acabamos de examinar seis pessoas, em tempo excepcionalmente curto, Tuareg ergueu-se e declarou estar totalmente convencido. A kalocaína substituiria logo todos os outros métodos de investigação em todo o Estado Mundial, esclareceu ele. Esperava que reservássemos alguns dias para instruir alguns experts da capital; queria, além disso, antecipar que nossa missão, ao voltarmos para casa, seria a de ensinar a aplicação e o fabrico de kalocaína em grande escala nas Cidades Químicas. Deixou-nos com evidente bom-humor, e logo recebemos uma vintena de pessoas para serem instruídas. As cobaias permaneciam em uma longa fila ante a porta e esperavam, todos criminosos mantidos em prisão preventiva.

Já no dia seguinte fui chamado por Karrek e recebi ordens de deixar provisoriamente todo o trabalho para Rissen. Pôs-me na mão um considerável pacote de papéis, que consistia de licenças, recomendações e identificações diversas.

Esqueci de contar que a solicitação de uma nova campanha de recrutamento de cobaias voluntárias, que eu desfechara e expusera ante as diversas instituições da Cidade Química, fora totalmente subscrita em poucos dias. Trouxe comigo todas as assinaturas para entregá-las pessoalmente ao Ministro de Propaganda. Por uma questão de segurança, pedido conselhos a Karrek sobre como proceder, e ele deu-me ótimas indicações. Minhas excelentes recomendações certamente seriam também suficientes para o Terceiro Departamento, ao qual competiria uma tal campanha. Tomei então o metrô e saltei ante a monumental porta subterrânea do Ministério da Propaganda.

Já pela manhã eu me sentira atacado por um certo mal-estar, e o médico pessoal do Ministro da Polícia me prescrevera uma série de remédios, de modo que eu me encontrava num estado um pouco anormal. Provavelmente era esta a razão de minha inexplicável agitação ao solicitar audiência com Lavris, chefe do Sétimo Departamento. Em verdade, vindo da parte de Karrek, eu tinha maiores chances do que se agisse pessoalmente, visto que ele parecia especialmente interessado na promulgação da nova lei, por razões para mim desconhecidas. Mas mesmo em meu estado de excitação, senti que não agia por conta de Karrek, tampouco por conta própria. Minha ação era apenas um passo em direção ao desenvolvimento colossal do Estado, talvez um dos últimos passos antes que a perfeição total fosse atingida. Eu, uma insignificante célula do grande organismo estatal, por cima de tudo intoxicado, embora ocasionalmente, por diversas poções e drogas, estava em vias de desfechar um trabalho de limpeza que livraria o corpo estatal de todos os venenos inoculados pelos criminosos ideológicos. Quando, finalmente – após infindáveis formalidades, revistas de corpo, espera –, ergui-me para ser recebido no gabinete de Lavris, foi como se estivesse me dirigindo para minha própria purificação, de onde voltaria totalmente calmo e livre deste resquício associal, que eu não queria reconhecer nem tomar consciência, que não era meu, mas que repousava traiçoeiramente em meus recantos mais obscuros e que eu podia resumir em uma palavra: Rissen.

Nada distinguia o gabinete de Lavris de milhares de outras salas de trabalho, a não ser os vigias armados, dispostos aqui como junto ao Ministro da Polícia, que indicavam ser aquele que aqui trabalhava um dos valiosos e caros instrumentos do Estado. A mulher alta, de pescoço esguio, atrás da escrivaninha, com a pele repuxada na boca e um eterno sorriso irônico nas faces, era Kalipso Lavris.

Mesmo se sua idade não fosse indefinida e sua postura rígida como estátua de um deus antigo, em meu estado febril eu a veria apenas como semi-humana. Nem mesmo uma grande espinha que explodira no lado esquerdo de seu nariz e antingira sua madureza total não a desmerecia ante meus olhos. Não era ela a mais alta instância ética do Estado Mundial, ou pelo menos a força diretiva da mais alta instância ética, o Sétimo Departamento do Ministério da Propaganda? Não se podia ler em suas faces afeições pessoais como em Tuareg, sua imobilidade não continha impulsos ocultos como a de Karrek, ela parecia-me ser a própria cristalização da lógica, purificada de todos os azares da individualidade. Isto era uma alucinação febril, mas ao mesmo tempo uma imagem bastante exata de Lavris, acho.

Eu já sabia antecipadamente que a alusão a uma nova legislação não podia ser feita abertamente, pois oficialmente o Sétimo Departamento nada tinha a ver com o assunto. Os vigias, com suas armas embaladas, lembravam-me ainda mais isso, sem que, no entanto, me importunassem. Minha missão era por demais necessária para que o Estado ou eu fracassássemos.

Eu nem imaginava o quanto me enredara com a questão da reprimenda. Enquanto se buscava minha ficha policial, tive de esperar em uma pequena sala de recepção por mais de duas horas, suponho. Mas devemos aprender, pensei, devemos aprender a esperar. O tempo acabou passando. Devo, no entanto, admitir que a ficha foi prontamente expedida, considerando-se o espaço imenso que deve ocupar tal fichário de todos os cidadãos-soldados do Estado Mundial. Embora eu jamais o tivesse visto, podia muito bem imaginar ser necessário pelo menos uma hora apenas para atravessas as imensas salas até aquela onde estava a ficha – por outro lado, obviamente, tudo precisava estar minuciosamente sistematizado para que não se precisasse procurar muito ao chegar-se lá – e fazer o mesmo caminho de volta. Suponho-se ainda que o fichário dificilmente se encontraria no Ministério de Propaganda, mas sim no de Polícia, podia-se estar contente com duas horas de espera.

Quando fui novamente admitido. Lavris estudava minha ficha – ficha é modo de dizer, pois mais parecia um pequeno livro encadernado – junto à qual estava uma delgada pasta com papéis que provavelmente continham instruções e deliberações sobre a questão de minha reprimenda. Era perfeitamente compreensível que ela tivesse esquecido completamente o caso, sobrecarregado como devia estar o Sétimo Departamento com as mais importantes denúncias e problemas de todo o Estado.

– Temos aqui o seu caso – disse Lavris, com sua voz surda e ao mesmo tempo sonora. – Consta de sua ficha policial que o senhor já pediu para apresentar sua autocrítica no rádio, embora ainda não tenha tido a oportunidade. Que é que o senhor realmente quer?

– Levei às suas últimas consequências as palavras: o desmascaramento dos últimos – os relutantes – é uma valiosa atitude para o bem do Estado. Descobri inclusive uma droga que torna possível desmascará-los mais minuciosa e sistematicamente que antes.

E falei da kalocaína tão entusiasticamente quanto pude.

– Agora – concluí –, basta apenas esperar-se por uma legislação da mais devastadora espécie até então conhecida pela história: a legislação contra idéias e pensamentos subversivos. Talvez demore ainda... Mas virá, certamente.

Ela pareceu não reagir à minha sondagem. Decidi experimentar a mesma isca que usara com Karrek.

– Qualquer um pode ser incurso nesta lei – insinuei, acrescentando após uma longa pausa: - Naturalmente, qualquer um que não seja leal até os ossos.

Lavris permaneceu silenciosa e pensativa. A pele pareceu repuxar-se um pouco sobre as saliências da face. Subitamente espichou uma mão longa e bem cuidada, apanhou delicadamente um lápis entre o indicador e o polegar e girou-o lentamente até a junta dos dedos ficarem brancas. Sem demonstrar concessões, levantou os olhos e perguntou:

– Era isto que o trazia aqui, cidadão-soldado?

– Sim, este era meu objetivo – respondi. – Chamar a atenção do Sétimo Departamento para uma descoberta que possibilita demonstrar a condenável relutância interna de cada um, embora esta ainda não se tenha tornado um crime perante a lei. Se tomei inutilmente o tempo deste Departamento, estou pronto para pedir excusas.

– O Sétimo Departamento lhe agradece por suas boas intenções – respondeu ela com uma impermeabilidade glacial.

Despedi-me e saí, cheio de dúvidas e sempre com febre.

Ao entrar cambaleante no Terceiro Departamento com minha lista de nomes, o relógio assinalou o fim da jornada e quase fui derrubado pelos funcionários que saíam precipitadamente. Um velho de ar azedo ainda permanecia sentado, concluindo alguns cálculos, e não vi outra solução senão dirigir-me a ele. Franziu o nariz, manteve seu mau-humor ante as recomendações, examinou as listas e disse:

– Mil e duzentos nomes, não? Todos com altos méritos científicos? Pena o senhor ter chegado tarde. Sua solicitação já foi atendida antes mesmo que o senhor pudesse apresentá-la. Não menos que sete outras Cidades Químicas nos enviaram o mesmo pedido, algumas há oito meses atrás. A campanha que o senhor deseja está sendo preparada intensamente para ser lançada.

– Nada me alegra mais que isso, disse eu um tanto decepcionado por não ter tomado parte pessoalmente nesta atitude meritória.

– Portanto o senhor nada mais tem a fazer aqui – disse o homem, e curvou-se sobre sua coluna de cifras.

– Mas não seria possível arranjar-me uma forma de participar dessa campanha – gritei, assaltado por uma súbita coragem causada talvez pela febre. Se estou comprovadamente interessado no assunto, por que não poderia participar dos preparativos? Tenho uma pilha de recomendações... Olhe aqui... E aqui... E aqui...

Olhou de lado, ora para meus importantes documentos, ora para suas colunas em branco; olhou depois com um suspiro para o último de seus colegas que desaparecia pela porta. Expulsar-me não ousava. Finalmente encontrou uma saída que lhe pareceu ser a mais rápida possível.

– Vou dar-lhe uma apresentação – disse, e escreveu algumas linhas a máquina, apanhou rapidamente um grande carimbo, o do Terceiro Departamento, calcou-o sobre o escrito e passou-me o papel

– Palácio dos Estúdios Cinematográficos às 20 horas hoje à noite. O que fazem lá não sei, mas sempre estão fazendo algo. Isto é suficiente. Ninguém me conhece lá, mas conhecem o carimbo. O senhor está satisfeito agora? Espero que não tenha feito nenhuma besteira...

terça-feira, julho 27, 2010
 
KALOCAINA - XIV

Karin Boye

Tradução do sueco de Janer Cristaldo




Rissen calou-se, sombrio e pensativo. Era-lhe muito difícil objetar algo à minha pouco original argumentação, mas eu tinha certeza – e nela me comprazia – de que sua alma civilista eriçava-se de fúria.

Karrek pulara da cadeira e ia e vinha pela sala. Dava-me a impressão de não escutar muito atentamente meus argumentos, e isto me magoava. Quando acabei, disse um pouco impaciente:

– Muito bem, ótimo. O fato é, no entanto, que até aqui, pelo que sei, jamais mantivemos lutas contra “espíritos”. Deixamos que assombrem o reino irreal ao qual pertencem. Quando as pessoas começam a cochichar ao pé do ouvido nas mesas dos refeitórios ou deixam de assistir às festas oficiais, isto pelo menos merece uma observação especial, mas “espíritos” – não, obrigado...

– Antes não tínhamos meios para este controle, objetei. A kalocaína nos dá a possibilidade de controlar tudo que se passa nos sentidos.

Mesmo ante este argumento, o que lhe entrava por uma orelha parecia sair pela outra.

– Qualquer um poderia ser condenado com isto – disse Karrek um tanto mal-humorado.

Parou subitamente, inquieto, abatido, ao que parece, pelo próprio peso de suas palavras.

– Qualquer um poderia ser condenado com isto – repetiu –, mas desta vez em voz suave, baixa, infinitamente lenta. Em todo caso, talvez você não esteja errado, pois lá no fundo... Lá... No fundo...

– Mas como o senhor próprio disse, meu chefe – gritou Rissen espantado –, qualquer um poderia...

Tampouco Rissen foi ouvido. Karrek continuou a caminhar com longas passadas e com sua estranha cabeça mongólica, os olhos saltados fechando-se aos poucos.

Eu queria ser-lhe útil, e lhe contei, embora um pouco envergonhado, a reprimenda que recebera do Sétimo Departamento do Ministério da Propaganda. Isto finalmente despertou-lhe a atenção.

– Sétimo Departamento do Ministério da Propaganda, é? – disse ele pensativo. – Interessante. Muito Interessante.

Passou-se um bom momento no qual só se ouvia o leve ranger de seus sapatos, além do rumor distante do metrô e murmúrio de vozes e outros ruídos das salas vizinhas. Finalmente apoiou-se na parede com as mãos, fechou os olhos e disse lentamente, como se pesasse cada palavra:

– Serei absolutamente sincero. Temos poder para institucionalizar uma lei sobre pensamentos criminosos, desde que tenhamos apoio suficiente do Sétimo Departamento.

Até então julgava não existir em mim lugar senão para a obediência, mas é possível que tivesse sido contagiado pelos sonhos de grandeza de Karrek, por planos e perspectivas dos quais nem estava consciente. Sustive a respiração quando ele continuou

– Enviarei um de vocês, de preferência o que fala melhor e mais convincentemente, até o Sétimo Departamento. Por certas razões, não posso ir pessoalmente... Como é, cidadão-soldado Leo Kall, você saberia apresentar bem o assunto? Ou melhor, pergunto ao seu chefe. Ele tem condições para isso?

Após um segundo de dúvida, Rissen respondeu quase involuntariamente:

– Tem, e no mais alto grau.

Pela primeira vez observei em Rissen um manifesto impulso de antipatia.

– Quero falar com você em particular, cidadão-soldado Leo Kall.

Fomos até minha cabine. Visivelmente irritado, Karrek cobriu o ouvido da polícia com uma almofada, e ao ver-me um tanto surpreso, riu:

– Eu sou, em todo caso, o chefe da polícia, e se isto, por azar, for descoberto, fico sabendo a posição de Tuareg...

Eu não podia deixar de admirá-lo por sua audácia, mas ficava intranquilo ao vê-lo orientar-se por caminhos individuais e não pelos coletivos.

– Então vejamos – disse ele. – Você deve encontrar uma forma de abordar o assunto com Lavris, no Sétimo Departamento. Eu sugeriria que você apanhasse aquela reprimenda e a associasse de alguma forma à sua descoberta. E depois, acidentalmente – não esqueça, acidentalmente, pois a legislação em si não é função do Sétimo Departamento – fale no significado que sua descoberta teria com as novas leis, introduzindo a mim e a você no caso... Devo lembrar-lhe que Lavris tem influência sobre o Ministro Tatjo, da Justiça...

– Mas não seria mais prático dirigir-se diretamente ao Ministro Tartjo?

– Totalmente ao contrário. Mesmo se você tivesse uma função definida, uma função sólida e importante em relação a este projeto de lei, transcorreriam semanas e semanas até que você chegasse a ele, e não podemos dispensá-lo por tanto tempo da Cidade Química n° 4. Se você apenas porta o projeto de lei, é bastante improvável que seja um dia recebido; quem é você, perguntariam, para sugerir leis? O particular obedece às leis, não as elabora. Mas se Lavris tem o assunto nas mãos... Mas é necessário despertar-lhe o interesse. Você acha que o conseguiria?

– O pior que me pode acontecer é fracassar. Não estou me expondo a perigo nenhum.

No fundo eu sabia que seria bem sucedido; empregaria toda a minha habilidade nesta incumbência. Certamente Karrek notou isso em mim, quando me testou com seu olhar insinuante.

– Vá então. A licença estará aqui amanhã, como também as recomendações. Agora você pode voltar a seu trabalho.

segunda-feira, julho 26, 2010
 
KALOCAINA - XIII

Karin Boye

Tradução do sueco de Janer Cristaldo




O desjejum da manhã seguinte foi-nos servido em um dos refeitórios. Não éramos os únicos hóspedes noturnos do Palácio da Polícia – na grande sala dezenas de cidadãos-soldados de ambos os sexos e das mais diversas idades – embora todos adultos – se acotovelavam em torno das mesas. Alguém acenou-nos de seu lugar. Era o próprio Karrek que se sentara com sua sopa de milho entre desconhecidos. Embora tivesse tomado lugar antes de nós, sentimo-nos contentes ao ver seu rosto conhecido, e ele tampouco parecia ter algo contra nossa companhia.

– Solicitei audiência para nós três ao Ministro da Polícia – disse ele – e tenho razões para crer que seremos recebidos logo. Apanhem as bugigangas tão rápido quanto possível.

Após o desjejum, corri para apanhar os aparelhos para administrar a kalocaína. Vi depois que minha pressa fora exagerada. Fomos os três conduzidos à sala de espera do Ministro, onde tivemos de esperar uma boa hora antes que se abrissem as portas do gabinete. Antes de nós já esperavam três pessoas, o que me fez supor que a demora seria longa.

Mas fomos os primeiros a serem recebidos. Um funcionário lépido e ágil abriu a porta, dirigiu-se a Karrek e sussurrou-lhe algo. Karrek apontou-nos e fomos conduzidos os três a uma nova sala de espera, onde fomos novamente revistados. As medidas de segurança eram muito mais rigorosas aqui que em nossa Cidade Química, naturalmente porque as vidas que aqui deviam ser protegidas eram mais raras e preciosas que as demais nas outras regiões do Estado Mundial. Já na sala de espera, em maior número que nesta ante-sala e no gabinete do ministro, estavam postados guardas com armas embaladas. Até que finalmente nos encontramos frente ao poderoso homem.

Uma larga figura girou na cadeira e levantou as espessas sobrancelhas em saudação. Era visível que a presença de Karrek o tornava satisfeito. Eu já conheci bem o Ministro Tuareg, do Álbum Fotográfico dos Cidadãos-Soldados, seus pequenos olhos pretos de urso, seu mento autoritário, seus lábios carnudos; e no entanto, sua presença produziu-me uma impressão bem mais forte do que a esperada. Talvez fosse a sensação de estar frente ao Poder concentrado que me fazia tremer. Tuareg era o cérebro dos milhões de olhos e ouvidos que vigiavam dia e noite as conversas e os atos mais íntimos dos cidadãos-soldados, era a vontade os milhões de braços que continuamente, ou em certos momentos do dia, protegiam a segurança interna do Estado – a vontade inclusive de meus braços, quando eu dedicava minhas noites ao serviço policial. Eu, no entanto, tremia, como se não fosse minha mais alta aspiração vê-lo face a face – como se eu fosse um dos criminosos que eu próprio perseguia. Mas eu nada fizera de errado! De onde provinha então esta maldita insegurança em meu espírito? A resposta estava sob meu nariz: tudo dependia de uma ilusão sugerida que podia ser expressa nestas palavras: “Nenhum cidadão-soldado acima dos quarenta tem a consciência limpa”. E quem dissera isto fora Rissen.

– Muito bem, temos aqui nossos novos aliados – disse o Ministro a Karrek. – Os senhores estão preparados para algumas experiências rápidas daqui a duas horas? No terceiro andar uma sala foi disposta para servir de laboratório, um pouco rudimentar talvez, mas acho que lá tem tudo que os senhores precisam. Se faltar algo, é só avisar o pessoal. E as cobaias já estão à disposição.

Dissemos estar prontos e entusiasmados. Terminada a audiência, fomos conduzidos por um outro caminho ao laboratório improvisado do qual o Ministro falara. As instalações eram perfeitamente satisfatórias, desde que não se pretendesse produzir kalocaína em grandes quantidades.

Karrek subiu conosco. Sentou-se em uma mesa numa posição tão relaxada que seria considerada por qualquer pessoa como desleixada e repulsiva

– Então cidadão-soldado – disse ele –, depois de verificarmos as possibilidades de trabalho do local, o que surgiu daquela reunião secreta lá na Cidade Química n° 4?

Rissen era meu chefe e tinha, pois, direito e obrigação de responder primeiro. O que ele fez, depois de um longo silêncio.

– De minha parte, não me parece que seja algo diretamente criminoso. Ligeiramente loucos me parecem todos, mas criminosos... Não.

– Pelo menos até agora – prosseguiu após nova pausa –, não encontramos em nenhum deles um ato contrário à lei, pelo menos nenhum que lhes tenha ocupado suficientemente os pensamentos para que o revelassem durante o efeito da kalocaína. Deixo de lado aquele homem que deixou de denunciar sua esposa por subversão, pois conforme sua vontade, meu chefe, havíamos concordado em não tomar a lei ao pé da letra, pois se trata de recrutamento de cobaias voluntárias. O que eles descrevem, me parece ser uma seita de loucos, mas não uma associação política. Talvez nem se possa dizer que constituem uma seita. Não tem organização alguma, não têm chefes, pelo menos que pudemos entender, não têm lista de membros, nem mesmo nomes, e mal infringem a lei contra associações fora do controle estatal.

– Você é excessivamente formalista, cidadão-soldado Rissen – disse Karrek ironicamente. – Você fala em “constar no regulamento” e “infringir a lei”, como se tinta impressa fosse um obstáculo instransponível. No fundo, você não pensa assim, não?

– Leis e regulamentos existem para nossa proteção... – objetou Rissen, amargo.

– Para proteção de quem? – reagiu Karrek. – Não para a do Estado, em todo caso. O Estado tem mais benefícios com cabeças arejadas, que em caso de necessidade cospem na tinta impressa...

Rissen calou-se a contragosto, mas revidou logo:

– Seja como for, eles parecem inofensivos ao Estado. Podemos tranquilamente soltar os que estão presos e deixá-los todos entregues a seus destinos. E ainda assim a polícia terá muito trabalho com assassinos, ladrões, perjuros...

Chegara minha vez. Precisava lançar meu primeiro ataque sério a Rissen.

– Chefe Karrek – comecei lenta e acentuadamente. – Permita-me fazer algumas objeções, embora, seja, um subordinado. Parece-me que esta associação misteriosa não é nada inocente.

– Estou interessado também em sua opinião – disse Karrek. – Você pensa tratar-se de uma associação comum?

– Dou aos parágrafos seu justo valor – disse eu. – O que quero dizer é que todos aqueles homens, tanto isolados como reunidos, constituem um perigo ao Estado. Antes de mais nada, pergunto: o senhor julga que nosso Estado Mundial necessita de atitude completamente nova, uma filosofia de vida totalmente distinta? Não me entenda mal, estou consciente de que aqui e ali o povo deveria ser estimulado a um senso de responsabilidade mais intenso e maiores esforços, mas uma nova filosofia de vida, diferente da que antes tínhamos? Não é isto em si mesmo uma ofensa ao Estado e a seus cidadãos-soldados? E era exatamente este o conteúdo manifestado pelos prisioneiros: Queremos invocar um novo espírito. Primeiro tomamos a expressão como uma manifestação supersticiosa, e isto já seria condenável, mas o fato em si era ainda pior.

– Você exagera um pouco a situação – disse Karrek. – Minha experiência ensinou-me que quanto mais abstrato algo é, menos perigosos são seus efeitos. Conceitos genéricos podem ser empregados conforme são manipulados, ora num sentido ora em sentido contrário.

– Mas uma filosofia de vida não é algo abstrato – objetei energicamente. – Eu diria que, pelo contrário, é a única coisa que seguramente não é abstrata. E a filosofia de vida desses loucos é contrária ao Estado. Isto se evidencia melhor com o mito do tal de Reor, diante do qual os demais não lhe chegam aos pés em matéria de loucura, e que por isso tornou-se o seu herói e por excelência. Indulgência com transgressores, imprudência com a própria segurança (pois somos um instrumento valioso e caro, isto não deve ser esquecido), relações pessoais mais sólidas que as relações normais com o Estado, é a isto que eles querem nos conduzir! À primeira vista seus rituais parecem asneiras. Num segundo momento se evidenciam como absolutamente repulsivos. São amostras de uma confiança exagerada entre as pessoas, pelo menos entre algumas. E isto, já considero perigoso ao Estado. Os mais crédulos acabam – mais cedo ou mais tarde como seu herói Reor – assassinados por ladrões. E não é este o fundamento do Estado? Existissem bases e razões para a confiança entre os homens, jamais o Estado teria sido erigido. O fundamento sólido e necessário da existência do Estado é a desconfiança mútua e profunda entre os homens. Quem nega este fundamento, nega o Estado.

– Ora – disse Rissen com certa impetuosidade – você esquece que o Estado ainda precisa ser erigido, como centro econômico e cultural.

– Não, não esqueço. E não creia de modo algum que parto de alguma espécie de superstição civilista, de que o Estado existiria em razão de nós e não nós em razão do Estado, como de fato acontece. Quero dizer apenas que o cerne da relação das células privadas para com o Estado reside na fome de segurança. Se um dia notássemos – não estou afirmando que notamos, mas se – que nossa sopa de ervilhas se tornou mais rala, que nosso sabão não presta, que nossas residências estão em ruínas sem que alguém se preocupe com isso, iríamos protestar então? Não, pois sabemos que o bem-estar não é um valor em si mesmo, que nossas renúncias servem a um objetivo maior. E se descobrimos barreiras de arame farpado em nossos caminhos, não nos resignamos a estas limitações da liberdade de movimento sem protestar? Claro que sim. Sabemos que tudo isto acontece para a preservação do Estado, para evitar sabotagens. E se um dia chegássemos a achar que todas as ocupações do tempo de lazer devem ser sacrificadas ao indispensável treinamento militar, que os incontáveis luxos supérfluos que faziam parte da nossa educação devem agora ser deixados de lado em prol de uma imprescindível formação de cada um como trabalhador especializado nos setores absolutamente fundamentais da indústria, teríamos então razões para protestar? Não, não e não! Nós reconhecemos e aplaudimos o fato de que o Estado é tudo; o indivíduo, nada. Admitimos e aceitamos que a maior parte da assim chamada “cultura” – excluo aqui os conhecimentos técnicos – constitui um luxo para tempos em que nenhum perigo ameaça o Estado (tempos que talvez jamais voltem). Resta então a pura subsistência e a cada vez mais desenvolvida organização policial e militar. Este é o cerne da vida do Estado. O resto é secundário.

domingo, julho 25, 2010
 
KALOCAINA - XII

Karin Boye

Tradução do sueco de Janer Cristaldo



O gabinete de Muili não se encontrava no prédio de nosso laboratório, mas não se precisava subir até a superfície terrestre para chegar até lá: através de um subterrâneo três andares abaixo se chegava diretamente a seu prédio, onde funcionavam os escritórios do laboratório. Depois de mostrarmos a carteira de identidade e de um secretário certificar-se por telefone de que éramos esperados, fomos logo recebidos. Em vinte e cinco minutos estávamos frente a Muili, homem grisalho e muito magro, de feições doentias. Mal nos olhou. Sua voz era baixa, como se quase não pudesse falar e, no entanto, nela não existia entonação alguma que não fosse de ordem. O homem não estava habituado a ouvir ninguém enquanto não se tratasse de respostas a perguntas diretas.

– Cidadãos-soldados Edo Rissen e Leo Kall, os senhores foram chamados a uma outra localidade. Deixem de lado o trabalho de que se ocupam agora. Em uma hora um policial os estará esperando para conduzi-los ao local de partida. Tudo está arranjado quanto a suas dispensas temporárias do serviço policial-militar. Entendido?

– Sim, meu chefe – respondemos eu e Rissen ao mesmo tempo.

Voltamos em silêncio ao laboratório para nos preparamos, tomar banho e vestir o uniforme de lazer. Tínhamos prontas nossas sacolas de viagem e mais uma caixa com a kalocaína e aparelhos, como Karrek ordenara. Na hora fixada fomos apanhados por dois policiais taciturnos e conduzidos por metrô até a localidade determinada.

Minha admiração por Karrek aumentava sempre. Tudo marchava perfeitamente. Nem um dia havia ainda transcorrido após sua partida e ele já obtivera o que queria. O homem era uma potência, e não apenas na Cidade Química n° 4, ao que tudo indicava.

Ao sairmos do metrô, vimos que nosso objetivo era um hangar. Um delirante desejo de aventura percorreu-me os membros. Até onde iríamos? Até a capital? Eu, que jamais saíra da Cidade Química n° 4, fui tomado por uma selvagem excitação.

Com uma multidão de outros passageiros entramos no bem iluminado avião. Os policiais fecharam e lacraram a porta, e pelo ruído dos motores soubemos que estávamos ganhando altura. Apanhei em minha sacola o último número da Revista Química, Rissen fez o mesmo, mas observei que tanto ele como eu nos recostávamos e deixávamos o pensamento girar em torno de outras coisas que não os artigos e comunicações da revista. Eu pelo menos tentava dominar minha curiosidade tão logo esta me comichava. Naturalmente eu já vira em filmes campos dourados, verdes pradarias, ovelhas e vacas pastando, vistas aéreas inclusive, de forma que não tinha grandes razões para estar curioso e, no entanto, tinha de lutar contra um desejo ridículo e infantil de que o avião tivesse pelo menos uma pequena fresta através da qual se pudesse olhar em segredo – não que eu pretendesse fazer espionagem, mas por pura e infantil curiosidade. Mas ao mesmo tempo eu sabia ser isto uma perigosa tendência. Seguramente não teria ido tão longe no campo científico se uma certa curiosidade não me conduzisse aos segredos da matéria – por outro lado, era um impulso para o bem e para o mal e podia arrastar-me ao perigo e ao crime. Eu me perguntava se Rissen tinha de lutar contra as mesmas inclinações e desejos – se é que ele ainda lutava! Não era exatamente uma pessoa que luta, com toda aquela falta de disciplina. Eu o via sentado ali, sem bandeira ou escrúpulos, desejando que o avião fosse inteiramente de vidro... Uma imagem muito justa, pensei, pois assim era o homem. Pudesse eu utilizar a kalocaína para satisfação pessoal...

Cochilava quando senti um ligeiro toque em meu braço. O condutor servia-me a janta – e isto era significativo. Olhei meu relógio: já havíamos viajado cinco horas e faltava um outro tanto até o destino, pois não podíamos esperar até a chegada para jantar. Eu calculara certo: tínhamos ainda três horas. Se se soubesse não apenas o tempo, como também a velocidade do avião, podia-se facilmente calcular a distância entre a Cidade Química n° 4 e o lugar onde éramos conduzidos. Felizmente a velocidade do avião era mantida em sigilo absoluto, de forma que espião algum poderia chegar a conclusões geográficas. A única coisa que se podia perceber era que a velocidade era muito alta e a distância, portanto, enorme. Naturalmente nem podíamos imaginar a direção; o fato de sentir-se uma temperatura baixa, fria inclusive segundo os conceitos da Cidade Química n° 4, nada significava senão que estávamos muito alto.

Quando finalmente baixamos e o motor parou, as portas foram descerradas por uma pequena tropa policial, que logo se dividiu e tomou conta dos diversos passageiros. (Provavelmente todos estavam ali em importantes missões, esperados e anunciados, talvez até mesmo chamados como nós). Rissen e eu fomos conduzidos no metrô policial-militar, e nosso vagão, com uma incrível velocidade, projetou-se até uma estação denominada Palácio da Polícia. Descobrimos que estávamos na capital. Por uma porta subterrânea fomos conduzidos até uma ante-sala, onde fomos revistados e nossa bagagem revisada, e depois levados a uma espécie de cabine simples, porém bastante prática, onde devíamos dormir.

sábado, julho 24, 2010
 
KALOCAINA - XI

Karin Boye

Tradução de Janer Cristaldo



Justamente aquela semana foi excepcionalmente favorável à experiência. Não menos que três dos dez homens do grupo não constavam entre os denunciados, e felizmente a polícia efetuara prontamente as prisões; tínhamos, portanto, três pessoas alheias ao assunto à nossa disposição. O chefe de polícia compareceu pessoalmente ao interrogatório. Sentou-se, longo e magro na cadeira, espichou as pernas à sua frente, junto as mãos sobre o tronco estreito e esperou com um ardor misterioso nos olhos. O chefe de polícia era uma pessoa notável, dessas que parecem ter nascido para ir longe. Sua postura podia ser relaxada, e mesmo mais relaxada que a de Rissen, mas mesmo assim jamais deixava de parecer militar. Enquanto Rissen se deixava levar pelos próprios impulsos e parecia mais puxar que conduzir, o repouso imóvel de Karrek era o gesto antes do salto, e em seu rosto duro e fechado, no brilho sob os olhos semicerrados, podia-se ver o bote de uma fera que não deixaria escapar sua caça. Eu não só sentia respeito por sua força, como também colocava minhas esperanças em seu poder. E logo constataria estar certo.

Os três prisioneiros foram trazidos um a um e interrogados. Dois eram de uma espécie com a qual nada tínhamos no momento a fazer, eram criminosos comuns, que simplesmente haviam sido atraídos pelas somas que o espião prometera. Um deles, uma mulher, nos divertiu com suas confidências íntimas sobre a natureza e hábitos do marido. Uma mulher viva e inteligente, mas nada aceitável como cidadã-soldado, com o mais compacto e acirrado egoísmo.

O terceiro, porém, deu-nos algo em que pensar.

Por que não denunciara sua mulher ficou totalmente obscuro, mesmo para ele mesmo. Por um lado não mostrou nenhuma gratidão extasiada pela confiança de sua esposa como a mulher pálida que interrogávamos antes; por outro lado não tinha interesse algum pelas somas prometidas. Embora não negasse diretamente a possibilidade de que a mulher fosse espiã, demonstrava visivelmente não estar certo de que tudo realmente ocorrera como a mulher contara. Tudo o que se podia dizer era que uma certa apatia o impedira – uma apatia que talvez pudesse vencer alguns dias depois, mas isto era impossível de se saber. Tivesse Karrek se decidido a tomar a lei ao pé da letra, esta apatia o teria qualificado como perigoso ao Estado. Enquanto um homem assim apático se decidia a agir, a subversão já poderia ter completado sua obra. E como se isso não bastasse, sua hesitação testemunhava uma ligação extremamente frágil ao Estado. Não foi, pois, surpresa para mim, quando ele deixou escapar.

– Em verdade, tudo isto é muito menos importante que nosso objetivo.

Agucei os ouvidos e vi que o chefe de polícia fazia o mesmo.

– O objetivo de vocês? Perguntei. Mas quem são vocês?

Ele sacudiu a cabeça com um sorriso ingênuo e rápido.

– Não pergunte. Não temos nome, nem organização. Nós apenas existimos.

– Existem como? Como se chamam nós, se não têm nome nem organização? Quantos são vocês?

– Muitos, muitos. Mas eu não conheço muitos. Já vi muitos, mas nem sei como se chamam. E por que precisaríamos sabê-lo? Sabemos que somos nós.

Como já mostrava sinais de despertar, olhei interrogativamente, primeiro para Rissen, depois para o chefe de polícia.

– Por tudo o que existe no mundo, continue – murmurou Karrek entre dentes. Rissen também dez um gesto afirmativo. Dei, então, ao homem mais uma injeção.

– E agora, o nome dos que você conhece.

Alegre e inocentemente, sem a mínima hesitação, deu cinco nomes. Era tudo, declarou. Não conhecia outros. Karrek fez sinal para que Rissen os anotasse.

– E qual é a revolução que vocês planejam?

Apesar da dose, não deu resposta alguma. Contorceu-se ante a pergunta e fez um visível esforço, mas nada saiu dele. Por um momento pensei novamente que talvez sob certas circunstâncias a kalocaína pudesse ser ineficaz, e comecei a suar frio. Mas talvez a pergunta tivesse sido mal formulada – embora a mim me parecesse suficientemente clara – de forma que a cobaia nem mesmo desperta pudesse respondê-la.

– Vocês querem algo, não é verdade? – perguntei cuidadosamente.

– Claro, claro que queremos algo...

– O que então?

Silêncio novamente. Depois, com hesitação e esforço:

– Queremos se... Queremos tornar-nos... Uma outra coisa...

– Sim? E vocês querem se tornar o quê?

Silêncio. Um suspiro profundo.

– Querem ocupar determinados postos?

– Não, não. Isso não.

– Querem ser outra coisa que não cidadãos-soldados do Estado Mundial?

– N-n-não... Quero dizer... Não, isso não...

Eu estava estupefato. Karrek cruzou as pernas com um movimento silencioso, espichou as mãos ainda cruzadas, piscou com o olho e disse em voz baixa, perscrutante.

– Onde você encontrou os outros?

– Na casa de um deles, que eu não conheço.

– Onde? E quando?

– Distrito RQ... Quarta-feira, há duas semanas...

– Quantos estavam lá?

– Quinze... Vinte.

– Então não será difícil de descobrir onde era – disse Karrek para mim e Rissen. – O porteiro deve saber disso.

E continuou o interrogatório.

– Vocês têm licença, naturalmente. Sob nome falso?

– Sob nome falso não. A minha pelo menos era verdadeira.

– Então é bem mais fácil. Adiante. Do que trataram?

Mas aí, mesmo Karrek fracassou. As respostas do interrogado se tornaram confusas e inseguras.

Deixamos em paz o perturbado homem, ainda mais que a segunda dose já começava a perder seus efeitos. Acordou com forte mal-estar. Não parecia ter sofrido muito moralmente, estava nervoso, mas não desesperado; surpreso, mais que confuso.

Quando desapareceu pela porta, o chefe de polícia pulou da cadeira com todo seu comprimento elástico, respirou fundo e disse:

– Temos trabalho aqui. O homem não sabia de nada, isto é certo. Os companheiros devem saber mais. Podemos catá-los, nome a nome, até os mais secretos círculos. Quem sabe, chegaremos a uma imensa conspiração, quem sabe?

Fechou os olhos, e um ar de satisfação descontraiu os traços nodosos. Adivinhei seu pensamento: Isto levará minha fama a todos os recantos do Estado Mundial. Talvez eu pensasse errado. O chefe de polícia e eu tínhamos naturezas diferentes.

– Quanto ao resto – continuou lentamente, olhando perscrutadoramente pra um e outro. – Quanto ao resto, terei que viajar por curto tempo. É possível que vocês sejam logo chamados para um outro lugar. Estejam de malas prontas. O chamado poderá ocorrer em casa ou no trabalho. Por uma questão de segurança, tenham uma mala pronta no laboratório, assim não precisarão atrasar-se para apanhá-la, uma pequena mala com o mais necessário, para ficar fora alguns dias. E tenha os aparelhos em ordem, para levá-los consigo e mostrar como sua kalocaína funciona.

– E o serviço militar? – perguntou Rissen.

– No caso de algum problema, é evidente que arranjo tudo. Se não o consigo, então nada é feito. Não prometo nada. Que farão vocês nos próximos dias?

– Continuaremos com experiências e mais experiências.

– Então não há empecilhos para que sigam este fio. Falo no que descobrimos com o último interrogado. Em vez de empregar cobaias do Serviço Voluntário, desenrolem polegada a polegada o novelo de nomes que lhes deu, registrem tudo o que emergir e esperem pelas providências. Que acham disto?

Rissen hesitou.

– Não há nada sobre tais casos no regulamento do laboratório.

O chefe de polícia riu desdenhosamente.

– Não sejam burocratas – disse. – Se lhe chegar uma ordem do chefe do Laboratório Central – é Muili, não? – imagino que você não se prenderá tão rigidamente ao regulamento. Falarei diretamente com Muili. Depois é só deixar todos os nomes na Casa da Polícia. Disto talvez dependa o bem ou mal do Estado – e você fala em regulamento!

Ele se foi e ficamos olhando um para o outro. Penso que minha fisionomia era vitoriosa e ao mesmo tempo de admiração. Nas mãos de um homem como Karrek, eu podia tranquilamente confiar minha sorte. Ele era feito de vontade pura, para ele não existiam dificuldades.

Mas Rissen franziu a testa, resignado.

– Acabaremos nos tornando uma subseção da polícia. Adeus, ciência.

Isto me tocou. Gostava de meu trabalho científico e sentiria muito sua falta, se não pudesse executá-lo. Mas Rissen era pessimista por natureza, tentei persuadir-me. De minha parte, eu vi apenas a Escada diante de mim e a primeira e única pergunta era se ela conduzia ao alto. O resto cabia ao tempo mostrar.

Uma hora depois chegou a ordem do chefe do Laboratório Central, de que devíamos dedicar-nos a nosso trabalho segundo a linha indicada pelo chefe de polícia. Na Casa da Polícia estavam todos já instruídos, bastava que déssemos por telefone o nome dos que queríamos ter presos, e as pessoas em questão estariam em nossas mãos em vinte e quatro horas.

O primeiro a ser enviado era um jovem com um período relativamente curto de acampamento juvenil, e com uma curiosa mistura de insegurança e orgulha da hostilidade à vida social, à qual ainda não se sentia totalmente adaptado. Sob a influência da kalocaína, seu amor-próprio pôde expandir-se de uma forma que parecia cômica a nós adultos, e ele começou a relatar-nos vastos e vagos planos futuros. Ao mesmo tempo admitia sentir-se muitas vezes profundamente irritado com os seres à sua volta. Estes lhe queriam mal, disse. De fato, eu havia sugerido que deixássemos as cobaias falarem por si tanto quanto possível, pois o último fora interrogado bastante asperamente; mas este caso revelava uma psicologia juvenil um tanto exacerbada para que Karrek pudesse sentir-se satisfeito de modo que por fim passei ao ataque e perguntei-lhe se não conheci nosso último prisioneiro.

– Sim. Somos companheiros de trabalho.

– Você o encontrou alguma vez fora do trabalho?

– Sim, ele convidou-me para um encontro...

– No distrito RQ? Na quarta-feira, há quatorze dias atrás?

O rapaz sorriu ligeiramente e pareceu bastante interessado.

– Sim. Um encontro estranho. Mas eu gosto muito deles. De certa forma eu gosto deles...

– Você pode nos contar o que lembra?^

– Claro. Foi estranho. Entrei, e só vi gente que não conhecia. Nada havia de especial. Quando sacrificamos uma noite livre para a vida comunitária, quase sempre o fazemos para discutir algo referente ao trabalho ou coisa parecida, uma festa planejada ou uma declaração às autoridades, e é perfeitamente compreensível que não conheçamos todos os participantes. Mas não se tratava disso! Eles não discutiam coisa alguma. Eles se sentavam e falavam sobre tudo, ou simplesmente se calavam. Calavam-se de uma forma tal que me deixava o coração opresso. E, além disso, a forma como se cumprimentavam! Apertavam-se as mãos. Inacreditável! Algo necessariamente anti-higiênico e, além disso, tão íntimo que nos dá vergonha. Tocar no corpo de um outro, intencionalmente! Eles afirmavam tratar-se de uma antiquíssima saudação que haviam retomado, mas não precisava utilizá-la, caso não se quisesse, não se era obrigado a nada. Mas no início eu tinha medo deles. Nada é tão horrível como sentar e ficar calado. Tem-se um sentimento de que todos penetram a gente. Como se estivesse nu, ou pior ainda. Espiritualmente nu. Principalmente na presença de pessoas mais velhas, pois estas aprenderam a ver através da gente e, além disso, quando falam, falam superficialmente, permanecendo alertas sob a superfície. Já me aconteceu de conseguir falar superficialmente e manter-me alerta sob a superfície e após isto me senti alegre, como se houvesse escapado de um perigo. Mas lá eu não conseguia isto. Nenhum deles se deixaria enganar. Quando não falavam, falavam baixinho, e parecia que não pensavam em mais nada naquele instante. Penso ser melhor falar alto, assim se consegue captar a atenção dos outros, fala-se alto e se mantêm os pensamentos em outro lugar. Mas eles eram tão estranhos! Por fim, acabei achando aquilo agradável e pensei gostar deles. Tudo era de certa forma tranquilo.

Tudo isto pouco esclareci. O garoto era noviço no movimento, e ainda não fora introduzido em seus segredos. No entanto, perguntei, por via das dúvidas.

– Você viu algum chefe do grupo? Alguma distinção de graus?

– Não... Não que eu visse. Tampouco ouvi alguém falar sobre isso.

– E o que mais fizeram? Falaram sobre algo que fizeram ou pretendem fazer?

– Não que eu saiba. Se bem que tive de sair mais cedo, eu e mais alguns que também não tinham estado lá antes, creio. Depois não sei o que fizeram. Mas ao sairmos, alguém disse: quando nos encontrarmos lá fora, nos reconhecemos. Não consigo explicar isto, mas era algo realmente solene, e eu acho que os reconheceria; não precisamente os que encontrei lá, mas qualquer um deles. Existia algo especial neles, que não consigo descrever. Quando cheguei aqui, sabia perfeitamente que o senhor (indicou a mim) não pertencia ao grupo. Mas quanto a ele (dirigiu vagamente o olhar a Rissen), quanto ele não estou certo. Talvez pertença ao grupo, talvez não. Só sei que me senti mais calmo entre eles do que entre quaisquer outros. Lá eu não experimentava essa sensação tão palpável de que eles me quisessem mal.

Olhei friamente para Rissen. Parecia tão espantado que logo percebi ser inocente, se por inocente entendemos que jamais participou de tais encontros secretos que o jovem descrevera. Mas algo permanecia nebuloso. Também em Rissem existiam os mesmos veios associais, um certo parentesco com toupeiras cegas.

O garoto despertou com remorsos desproporcionais aos fatos relativamente inofensivos que contara. Pelo que entendi, sua angústia não se devia ao relato da reunião, senão às confidências de ordem pessoal que havíamos interrompido com bocejos.

– Acho que devo esclarecer algumas coisas, murmurou ele já de pé, um pouco trêmulo. Aquilo que eu disse, que era inseguro em relação aos outros, não é exatamente verdade. Apenas me pergunto o que pensam de mim. Não quis dizer que necessariamente me queiram mal E tudo que disse desejar ser ou fazer era pura fantasia, sem um pingo de verdade. Também fui um pouco exagerado ao dizer que me sentia melhor com aquela gente estranha do que com as pessoas comuns. Claro que me sinto melhor com gente comum, quando reflito um pouco...

– Também estamos convencidos disto – disse Rissen gentilmente. – No futuro você deve manter-se junto aos outros, os comuns. Suspeitamos fortemente que aquele grupo em que você caiu por acaso é perigoso ao Estado. É evidente que você não foi ainda contaminado, mas tome cuidado! Quando você menos espera, eles o envolvem em suas redes.

O garoto parecia aterrorizado ao sumir pela porta.

Não sei que terríveis planos esperávamos de fato descobrir da reunião que se seguiu após o garoto e dos demais serem enviados a suas casas. Algum dos prisioneiros, no entanto, deviam ter permanecido enquanto eles conspiravam. Interrogamos minuciosa e sistematicamente os quatro que ainda restavam, anotamos meticulosamente suas declarações, mas demorou algum tempo até que pudéssemos ter uma idéia aproximada da liga secreta. Muitas vezes olhamos um para o outro e sacudimos a cabeça. Estaríamos lidando com um grupo de débeis mentais? Eu jamais ouvira falar de algo assim fantástico.

Antes de mais nada, estávamos no ar quanto à própria organização, nomes dos chefes, ramificações. Ao poucos íamos descobrindo que não existiam chefes nem organização alguma. Acontece muitas vezes em conspirações secretas que os membros da graduação inferior não têm acesso aos segredos mais importantes; tudo o que sabem é o nome de dois ou três membros, tão sem importância quanto eles próprios. Concluímos que este é o tipo de membro que tínhamos em mãos. No entanto, certamente chegaríamos às mais altas esferas, onde se sabia mais, através dos prisioneiros. Bastava apenas continuar.

Que acontece, depois que os noviços deixam a casa? – perguntamo-nos antes de mais nada. Uma mulher fez-nos uma descrição fantástica.

– Apanha-se uma faca. Um de nós a entrega a um outro, deita-se numa cama e se finge que dorme.

– Muito bem. E depois?

– Depois? Nada mais. Se alguém mais quer participar, tem lugar para ele também fingir que dorme. Pode-se também sentar e apoiar a cabeça na cama. Ou na mesa ou em qualquer outra coisa.

Quase sufoquei-me com uma gargalhada. A cena era impagável. Alguém senta-se, sério, com uma grande faca de mesa na mão (obviamente se tratava de uma faca de mesa, era a mais fácil de obter, bastava apenas esquecer de deixá-la junto ao prato do almoço), em meio as outras pessoas também sérias. Um espicha-se na cama com as mãos sobre a barriga, cerra fortemente os olhos, quem sabe tenta inclusive roncar. Um após o outro apanham uma almofada e a colocam por perto e encenam seu papel na peça. Alguém sentado escorrega de sua posição contra a beirada da cama, apóia a nuca na pata, boceja... Fora isso, silêncio e morte.

– Nem mesmo Rissen pôde impedir um sorriso.

– E qual é o sentido disto? – perguntou.

– Um sentido simbólico. Através da faca ele se entrega à violência do outro. E, no entanto, nada lhe acontece.

(E, no entanto, nada lhe acontece! Com um monte de gente em torno. Pessoas que roncam acordadas e podem a qualquer momento olhar de revés. Não lhe acontece nada quando um de seus hóspedes – registrado legalmente pelo porteiro – fecha a mão em torno de uma faca que não corta nem água e escuta quão confiantemente ele ronca...)

– E para que serve tudo isso?

– Queremos invocar um novo espírito – respondeu a mulher, muito séria.

Rissen apoiava o queixo, pensativo. Em conferências sobre história eu ouvira falar, e com certeza também Rissen, que os selvagens da antiguidade costumavam invocar certas divindades e executar certas práticas, ditas mágicas, para chamar seres imaginários, ditos espíritos. Persistiria isso ainda em nossos dias?

Da mesma mulher extraímos certas alusões a um louco total que desempenhava um certo papel dentro de seus círculos. Em verdade, não se precisava muito para servir de herói para essa gente.

O senhor conhece Reor? – perguntou ela – Não, ele não vive mais, ele vivia há mais ou menos quinze anos, segundo alguns, em alguma das Cidades Hidráulicas, segundo outros em alguma das Cidades Têxteis. Imagine não ter ouvido falar em Reor. Eu quis fazer uma conferência sobre Reor certa vez. Embora tudo seja verdade, só os iniciados podem compreender. Se se quer falar de Reor, é preciso dirigir-se aos iniciados. Ele andava por aqui e por ali, pois naquele tempo não existia o problema de licenças, alguns o acolhiam por medo, pois pensavam que pertencesse à polícia; outros o expulsavam, pois pensavam que fosse um criminoso. Mas os que o receberam – claro, nem todos observaram como ele era – julgaram-no apenas estranho; já outros descobriram que podiam sentir-se calmos e tranquilos com ele, como um bebê nos braços da mãe. Alguns o esqueceram, mas outros jamais o esquecerão e contam dele tudo o que lembram. Mas só os iniciados entendem isto. Ele jamais trancava sua porta. Jamais se importava com testemunhas ou provas do que fazia ou dizia. Nem mesmo se protegia contra ladrões e assassinos, e por isso acabou sendo assassinado por um ladrão que pensou que Reor tivesse um pedaço de pão em sua mochila. Mas ele não o tinha mais, já o havia comido com alguns outros que encontrara pelo caminho... Mas este pensou que ele o carregava. E espancou-o até a morte.

– E com tudo isso vocês o julgam um grande homem? – perguntei.

– Ele era um grande homem. Reor era um grande homem. Era um dos nossos. Existem ainda alguns que o conheceram.

Rissen olhou expressivamente para mim e sacudiu a cabeça.

– A lógica mais engraçada que já vi em minha vida – disse eu. – Sejamos como ele, que foi assassinado por um ladrão! Não entendo nada.

– Você falou em iniciação – disse Rissen à mulher, sem importar-se comigo. – Como alguém se inicia?

– Não sei. Nos iniciamos, simplesmente. Acontece. Os outros notam isto, os que também são iniciados.

– Então qualquer um pode chegar a dizer que é iniciado? Deve existir algum procedimento, alguma cerimônia; segredos que não se divulgam...

– Não, nada disso. Nota-se, eu disse. Nos tornamos iniciados, compreende, ou não nos tornamos; alguns jamais o conseguem.

– Como se nota isso então?

– Bem... Nota-se por tudo... Aquilo da faca e do sono torna-se então sagrado e claro para nós... E muito mais...

Estávamos tão bem informados quanto antes.

Se a mulher era pessoalmente louca ou se dividia sua loucura com toda aquela gente, era impossível saber. Só podíamos estar certos dos ritos mágicos com a faca e a simulação do sono, isto foi confirmado pelos outros; em compensação não ficou claro se ocorriam sempre ou se eram ocasionais. Tampouco conseguimos encontrar rastros do mito de Reor em todos, embora subsistisse em alguns. O que existia realmente de comum naquele círculo, além de todos, sem exceção, se comportarem de maneira estranha?

Um outro, também uma mulher, tinha alguns nomes para dar-nos. Achamos então conveniente interrogá-la persistentemente quanto à organização. Sua resposta foi tão espantosa como a dos outros.

– Organização? Não buscamos organização alguma. O que é orgânico não precisa ser organizado. Vocês constroem de fora para dentro, nós construímos de dentro para fora. Vocês constroem utilizando a vocês mesmos como pedras, e ruem por dentro e por fora. Nós nos construímos desde dentro como árvores, e crescem pontes entre nós que não são de matéria morta ou força bruta. De nós emerge o vivo. Em vocês submerge o inanimado.

Tudo isto me pareceu um jogo de palavras sem sentido e, no entanto, impressionou-me. Talvez fosse a própria intensidade de sua voz profunda que me fez vibrar. Não era impossível que Linda me tivesse vindo à lembrança, sua voz profunda e intensa, em especial certas vezes, quando parecia não estar tão cansada. Pensei então em como reagiria se agora, em lugar da mulher desconhecida, estivesse Linda entregando-me seu íntimo, com um tom de voz tão penetrante e chamativo. Ocultei por muito tempo na memória as palavras isoladas que repetia para mim mesmo, e julgava fazê-lo por achar que soavam bem em toda a sua falta de sentido. Muito, muito tempo depois, comecei a entrever um sentido nelas. Mas já então me haviam tocado, dando-me um primeiro vislumbre do que queria dizer com “nós”, com reconhecer-se lá fora e com um círculo de iniciados sem organização, sem sinais exteriores nem grandes ensinamentos ou doutrinas visíveis.

Quando ela foi liberada, dirigi-me a Rissen:

– Ocorreu-me algo. Talvez tenhamos interpretado mal essa história de “espírito”. Quem sabe isso não quer dizer uma forma interior, uma filosofia de vida. Ou o senhor acredita que está é uma interpretação por demais sutil para surgir de um tal círculo de loucos?

Quando ele olhou para mim, senti medo. Que me entendeu perfeitamente, isto pude ver, mas também algo mais. Vi que também ele se sentira influenciado pela natureza intensa e quente da mulher. Vi que ele era ainda mais receptivo do que eu. E também vi que seu próprio olhar, seu próprio silêncio me empurravam em uma direção, que todo o meu senso de dever, todo o meu sentimento de honra me proibiam de tomar. Ele estava preso nas malhas da rede daqueles loucos, e inclusive eu senti em certo momento a suave e poderosa atração.

Não havia o primeiro garoto dito que Rissen bem poderia pertencer ao grupo de loucos, à seita secreta? Não tivera eu o pressentimento de que em Rissen se escondia uma ameaça e um perigo? Desde agora eu sabia que nutríamos uma inimizade profunda.

Restava-nos ainda um dos prisioneiros, um homem já velho com feições inteligentes, e eu o temia – quem sabe não teria a mesma força sugestiva que a mulher de há pouco –, e ao mesmo tempo esperava grandes revelações dele. Ele, mais que ninguém, devia estar por dentro dos círculos mais secretos, e, com alguma sorte, encontraríamos nele provas definitivas de que toda aquela seita de loucos deveria se condenada e exterminada, para alívio e salvação de mim mesmo e de muitos outros. Mas quando ele já havia sido introduzido e mal o havíamos feito sentar, o telefone tocou e eu e Rissen fomos chamados por Muili, o chefe do Laboratório Central.

sexta-feira, julho 23, 2010
 
KALOCAINA - X

Karin Boye

Tradução de Janer Cristaldo




Quando cheguei em casa após o trabalho, o porteiro contou-me que alguém solicitara uma licença de superfície provisória no distrito para poder encontrar-me pessoalmente. Olhei atentamente o nome. Kadidja Kappori. Desconhecido. Pelo menos não lembrava tê-lo ouvido antes. O porteiro não havia entendido muito bem o assunto ao telefone, acreditava tratar-se de algo em torno de um divórcio. Mas estranho ainda. Por fim eu estava tão curioso que descuidei de todas as preocupações e escrevi no papel que estava disposto a recebê-la e quando poderia fazê-lo. Tomei o cuidado de fazer o porteiro subscrever, para que participasse do convite e controlasse o tempo de visita; depois bastaria enviar tudo ao controle distrital, que remeteria mais tarde a licença de visita ao interessado.

Eu e Linda comemos algo rápido e nos dirigimos ao serviço militar, cada um para seu lado. O serviço havia aumentado, não só quantitativa como qualitativamente. Durante os dias seguintes passei a considerar o período de trabalho como a parte menos exigente da jornada, enquanto minha mais pesada tarefa era o serviço noturno, muitas vezes preenchido pelas armas. Eu estava contente que minha descoberta estivesse concluída. Tivesse sido um pouco mais lento, talvez ela nunca se concretizasse, se minhas tardes continuassem sendo ocupadas como agora. Com horas tão fatigantes nas costas, teria tentado inutilmente reunir idéias com nitidez total. Felizmente, tratava-se agora da última aplicação prática, e as coisas se marchavam por si mesmas, especialmente porque a presença de Rissen me mantinha alerta. Via-se que ele também estava bastante cansado, mas como era nitidamente mais velho, não funcionava exatamente a todo vapor, e em todo caso, eu jamais cometia enganos diante dele.

Enquanto isso a experiência parecia ter caído em águas mortas, devida às muitas denúncias. Tivemos de recomeçá-la grupo por grupo e durante todo esse tempo continuar com a mesmo experiência do primeiro dia.

Quando as recomeçamos pela terceira vez, sem que um único marido ou mulher tardasse o suficiente com sua denúncia para que pudesse ser preso – e que o trabalho tinha-se para reunir cobaias casadas, na última vez tivemos de esperar três dias antes que fosse reunido um número suficiente –, minha noite livre caiu finalmente em meio à semana, e gozo algum poderia me tentar mais que a idéia de ir para cama algumas horas antes do que geralmente se entende por hora de deitar. As crianças já haviam dormido, a criada já fora embora, eu me espreguiçara uma última vez antes de começar a despir-me, quando soou a campainha.

Kadidja Kappori! – pensei imediatamente e maldisse minha afabilidade, que me fez subscrever aquela solicitação desnecessária de visita. E o pior era que, para cúmulo de tudo, eu estava só. Linda tivera de dedicar sua noite livre a uma reunião de um comitê que preparava uma festa em honra da chefe recém-aponsentada do conjunto das fábricas de produtos alimentícios da cidade como também do novo, que a substituiria no posto.

Quando abri a porta, deparei-me com uma mulher idosa, grande e maciça e com um rosto não muito inteligente.

– Cidadão-soldado Leo Kall? – perguntou. – Sou Kadidja Kappori, e o senhor teve a gentileza de conceder-me um encontro.

– Lamento muito, mas acontece que estou sozinho em casa, e por isso não posso atendê-la. Sinto-me desolado, talvez a senhora tenha feito uma longa viagem até, aqui, mas como a senhora sabe, têm ocorrido várias provocações, onde não tendo sido fácil para o acusado provar sua inocência, pois não havia testemunhas e a polícia não estava vigiando justamente naquele quarto...

– Mas não é esta a questão – disse ela suplicante. – Asseguro-lhe que venho com a melhor das intenções.

– Não desconfio pessoalmente da senhora, mas a senhora há de convir que qualquer um pode dizer isso. O mais seguro para mim é não recebê-la. Não a conheço, sabe-se lá o que a senhora dirá de mim mais tarde.

Eu falara bastante alto o tempo todo para acentuar minha inocência ante os vizinhos. Foi exatamente isto que lhe deu uma idéia.

– O senhor não podia talvez convidar algum dos vizinhos como testemunha? Embora eu deva confessar que de fato prefiro conversar a sós com o senhor.

Inegavelmente, era uma solução. Apertei a campainha da porta mais próxima. Ali morava um médico do pessoal dos refeitórios do Laboratório de Experiências: dele eu não conhecia mais que sua aparência e ouvia às vezes sua mulher discutir em voz excessivamente alta para as finas paredes internas do edifício. Quando apertei a campainha, atendeu-me com o cenho franzido, e eu declinei meu objetivo. Seu semblante descontraiu-se e começou a interessar-se, concordando finalmente. Também ele estava só em casa. Por um momento arrependi-me e me perguntei se tudo fora bem pensado. Em verdade, não existia motivo algum para crer que ele estivesse comprometido em alguma espécie de complô com Kadidja Kappori.

Introduzi ambos no quarto e arrumei rapidamente a cama já feita para dar mais lugar e fazê-lo parecer um pouco mais uma sala de estar.

– Evidentemente o senhor não sabe quem sou – começou ela. – O fato é que sou casada com Togo Bahara do Serviço Voluntário de Cobaias.

Perdi o fôlego, embora tentasse não manifestar desagrado. Então ela era uma dos leais cidadãos-soldados que arruinavam minha experiência. Certamente viera aqui para denunciar seu marido. Por que dirigia-se a mim em vez de fazê-lo diretamente à polícia, isto eu absolutamente não entendia. Teria ela pressentido existir dente de coelho no assunto? Ou talvez pensasse ser a forma menos brutal de denunciar o marido a seu chefe. Fosse como fosse, era impossível interrompê-la agora, pois já a havia recebido e o médico estava ali como testemunha.

– Aconteceu algo deplorável lá em casa – continuou, com os olhos abaixados. – Outro dia ao chegar em casa, meu marido contou-me algo abominável, o mais abominável de tudo, conspiração contra o Estado. Eu não conseguia acreditar em meus ouvidos. Estivemos juntos por mais de vinte anos, pusemos várias crianças no mundo, de modo que eu pensava conhecê-lo bem. Ele tinha seus períodos de irritação nervosa e depressão, é claro, mas isto não cavacos do ofício. Sou lavadeira na Lavanderia Central do distrito, e temos nossa residência lá. Mas isto não vem exatamente ao caso. Mas entenda-me, eu pensava que o conhecia. Não pelo fato de que nunca tenhamos conversado muito, pois quando se está casado há anos, sabe-se muito bem o que se tem a dizer, de forma que nem se precisa dizê-lo. Mas é como se um sentisse em si o que o outro quer e deseja, quando se vive assim juntos e se aceito isso por mais de vinte anos. Um não pensa exatamente pelo outro, mas por si próprio, mas seria muito estranho se subitamente as mãos virassem pés ou saíssem a caminhar por si mesmas... E aconteceu! Primeiro pensei: besteira! Togo não poderia ter agido assim. Mas mais tarde disse para mim mesma: ninguém pode estar totalmente seguro. Afinal, ouvimos diariamente pelo rádio e em palestras, está nos cartazes do metrô e das ruas: NINGUÉM PODE ESTAR SEGURO! QUEM ESTÁ AO TEU LADO PODE SER UM SUBVERSIVO! Eu não prestava atenção a isso antes, nunca pensei que se dirigisse a mim. Mas o que experimentei numa noite, mal consigo contar. Se meus cabelos já não fossem grisalhos, teriam se tornado naquela noite. Não conseguia imaginar que Togo, o meu Togo, fosse um subversivo. Mas qual é a aparência de um subversivo? Não aparentam ser pessoas comuns? É apenas lá dentro que eles são diferentes. Do contrário, não haveria mistério algum. E o fato de fingirem ser como os outros, isto apenas evidencia o quanto são pérfidos. Quando me deitei, Togo morrera para mim. Pela manhã, ao acordar-me ele não era mais um ser humano aos meus olhos. NINGUÉM PODE ESTAR SEGURO! QUEM ESTÁ A TEU LADO PODE SER UM SUBVERSIVO! Ele não era mais um ser humano, era pior que um animal selvagem. Por um momento pensei ser tudo um pesadelo – lá estava ele fazendo a barba, como sempre – e pensei que se pudesse trazê-lo ao bom caminho, tudo voltaria a ser como antes. Mas depois pensei que não se consegue isto com subversivos, pois eles jamais se tornam melhores, e apenas ouvi-los já é bastante perigoso. Ele está podre por dentro. Telefonei para polícia logo que cheguei ao trabalho, eu só podia agir assim ao descobrir o que ele era. Achei que o prenderiam imediatamente, e quando voltou para casa à noite, como sempre, esperei pela chegada da polícia a qualquer momento. Ele notou e me disse: Tu me denunciaste à polícia. Não devias ter feito isso. Era uma experiência e agora destruíste tudo. – Mas diga-me o senhor, como eu poderia acreditar nele? Como podia acreditar que ele era um ser humano novamente? Quando finalmente compreendi que era verdade – aí sim, tinha vontade de estrangulá-lo de tão contente, mas aí ele estava furioso. E queria divorciar-se.

– Isto é extraordinário, foi tudo o que pude dizer.

Ela engolia os soluços, com vergonha de chorar.

– Quero que ele fique comigo – continuou. – Acho injusto que ele queira o divórcio, quando não fiz nada de mal.

De fato, ela tinha razão. Não podia ser punida por ter-se comportado como uma boa e leal cidadã-soldado. Ela devia ser recompensada. Precisava ficar com seu Togo.

– Ele acha que não pode confiar mais em mim – continuou entre soluços. – É claro que ele pode confiar em mim, agora que é um ser humano novamente. E também á claro que um subversivo não pode confiar em mim, Kadidja Kappori.

A imagem da face transfigurada da sofrida mulher ficou-me na memória associada a uma melancólica desesperança. Que exigência imatura e insensata querer ter para si um ser humano em que acreditar, simplesmente acreditar, independente do que ele é! Tive de admitir para mim mesmo existir nisso um fascínio adormecido. Talvez a criança de colo e o selvagem na Idade da Pedra não viviam apenas em alguns, pensei, senão em todos nós, mais em uns, menos em outros, e isto é a diferença fundamental. E assim como me senti obrigado a destruir o sonho da mulher pálida, achei também ser necessário destruir a mesma ilusão de Kadidja Kappori, embora para isso tivesse que sacrificar mais uma de minhas noites livres.

– Voltem os dois aqui num destes horários – disse e escrevi minhas horas livres em um papel. – Se ele não mudar de idéia, acabará me conhecendo melhor.

Despediu-se com muitos agradecimentos, e eu os conduzi a ela e ao médico, até a porta. O médico parecia ter tomado tudo como uma brincadeira, permanecera sentado e rira baixinho o tempo todo, o que era de fato importuno, e continuou rindo até desaparecer em sua casa. Eu não via a situação assim. Eu captara o significado essencial do fato de forma por demais clara para que pudesse nutrir algum interesse pelas ridículas pessoas implicadas no caso.

Não pude deixar de contar a história para Rissen durante o trabalho. Evidentemente, isto não fazia parte do trabalho, mas tinha, em todo caso, uma significação genérica. Mas também tenho fortes suspeitas de ter sido tomado por um certo desejo de mostrar-me interessante e independente, um homem que outros procuram em suas dificuldades, e que fácil e amavelmente os conduz ao caminho certo. De fato, evidenciou-se que assim como eu o criticara e desconfiara profundamente dele, ao mesmo tempo julgava importante seu juízo a meu respeito. Cada vez que percebi estar tentando me impor a ele, envergonhei-me e abafei esta fraqueza. Mas depois de algum tempo, lá voltava ela e eu fazia o que podia para extorquir alguma espécie de atenção deste homem estranho, pelo qual ninguém podia nutrir respeito. Quando sentia ter fracassado, tentava pelo menos irritá-lo e dizia para mim mesmo existir um plano consciente sob minhas alfinetadas: se eu o tinha devidamente irritado, pelo menos sabia onde o tinha.

Entre outras coisas, falamos das palavras de Kadidja Kappori: “Ele não era mais um ser humano”.

– Ser Humano! – disse eu. – Um povo místico elaborou conceitos em torno desta palavra! Como se houvesse algum valor em ser humano! Ser Humano! Isto é apenas uma concepção biológica. Eis algo que precisamos abolir tão rapidamente quanto possível.

Rissen apenas olhou-me com um ar enigmático.

– Kadidja Kappori, por exemplo – continuei. – Para agir corretamente, precisou primeiro se desembaraçar das inibições que jaziam sob a concepção supersticiosa de que seu marido era um “ser humano”, entre aspas, pois do ponto de vista estritamente “biológico”, ele jamais poderia transformar-se em outra coisa no transcurso dos tempos. Esta crise ela superou em uma noite, mas quantos conseguem isso? Tivesse demorado um pouco nas providências, estaria agora entre os subversivos, sem mesmo saber como, tudo devido a uma superstição... Penso ser necessário começar tudo desde o início e ensinar o povo a ver o “ser humano”, entre aspas, no cidadão-soldado.

– Não creio que sejam muitas as vítimas desta espécie de mística – disse Rissen lentamente, enquanto não tirava os olhos de um tubo graduado, que acabara de encher.

Isto não fora dito de forma especial e tampouco tinha algo de notável. Mas ele tinha uma forma de filtrar as palavras nos ouvidos da gente, como se existissem mais significados sob cada uma. Isto fazia com que eu sempre ficasse intrigado com o que havia dito, e suas palavras, voz e entonação voltavam e me inquietavam.

Mas a semana fora tão cheia de acontecimentos surpreendentes que nos esquecíamos de tudo em função deles. Tão importantes que inclusive compreendiam o início da marcha vitoriosa da kalocaína pelo Estado Mundial. Mas eu os suprimo para concluir a história do casal Bahara-Kappori.

Visitaram-me exatamente uma semana após a primeira visita de Kadidja Kappori. Linda estava novamente ocupada com o comitê de preparativos, mas como agora eu estava ciente de suas intenções e sabia que pelo menos podia colocar o homem em xeque, não me importei de convocar testemunhas. Ambos pareciam amargurados e deprimidos e era evidente que conciliação alguma tivera lugar.

– Muito bem – disse eu para estimulá-los (era melhor encarar a situação com bom humor) –, muito bem, parece que a indenização extra foi calculada por baixo desta vez, cidadão-soldado Bahara. Um divórcio pode de fato quase ser chamado de um dano permanente. A propósito, essa bengala foi consequência de seu trabalho ou – hummm – expressa sua situação matrimonial?

Ele não respondeu, continuava imóvel e amargo. A mulher cutucou-o

– Deves pelo menos responder a teu chefe, Toguinho! Imagine, estamos casados por mais de vinte anos e agora ele larga tudo e quer divorciar-se por isto! É injusto, ele chega em casa, engana a gente com uma experiência e depois fica furioso porque se age corretamente!

– Se querias pôr-me na prisão, ficarás livre de mim; mesmo eu estando solto – respondeu o homem acremente.

– Mas não é a mesma coisa – objetou ela. – Se tu fosses aquele que me fizeste acreditar se, pobre de mim se te conservasse em casa. Mas agora que não és aquele, agora que és quem eu conheci durante vinte anos, é claro que quero ficar contigo! Não fiz nada de mal para merecer que me abandones.

– Responda-me, cidadão-soldado Bahara – disse eu em tom menos brincalhão. – Você pensa realmente que sua esposa agiu erradamente ao denunciá-lo?

– Não sei se precisamente errado…

– Como você agiria se alguém lhe confessasse ser espião?... Você não precisa hesitar muito sobre o assunto, espero. Devo dizer-lhe o que deveria fazer? Ir direto à caixa postal mais próxima, ou apanhar o telefone mais à mão e denunciá-lo tão rápido quanto possível. Ou não? Você não faria isso?

– Sim, sim, claro; mas não é exatamente a mesma coisa.

– Alegro-me ao saber que você agiria assim, do contrário seria um criminoso. Foi exatamente o que sua mulher fez. O que você quer dizer quando afirma não ser exatamente a mesma coisa?

Não foi lhe fácil esclarecer. Acabou tentando explicações vacilantes:

– Que ela possa subitamente pensar em qualquer coisa sobre mim... Depois de vinte anos! Dia a dia! E, além disso, imagine se algum dia eu tivesse cometido alguma besteira e lhe pedisse um conselho...

– Então seria tarde para arrependimentos. E quanto ao fato de pensar qualquer coisa, você não sabe que é nosso dever suspeitarmos de todos? O Estado exige isto. Vinte anos é bastante tempo, é verdade, mas uma pessoa pode se enganar durante anos. Você não tem absolutamente motivo algum para queixar-se.

– Não... Mas se ela agora... Eu não poderia...

– Cuidado com a língua cidadão-soldado, você pode facilmente destruir o bom conceito que tenho de seu valor. Sua mulher denunciou um espião. Certo ou errado?

– Sim, claro, está certo.

– Pois bem, está certo. Ela denunciou um espião, mas esse espião não era você. E agora você quer divorciar-se dela porque ela agiu corretamente em relação a uma pessoa que não era você. Não é isso?

– Mas... Sinto... Insegurança, digamos... Quando olho para ela não sei o que pensa de mim.

– Se eu fosse você, trataria de não me divorciar de minha mulher pelo fato de que ela agiu corretamente. Independentemente do fato de que sua profissão não fascina as mulheres, e tampouco o seu estado, nenhuma mulher digna cogitará de você ao conhecer esta história; e de sua divulgação, esteja certo de que eu me encarregaria, pois então você carregará uma mancha, da qual todos falarão.

– Mesmo assim não gosto disto – murmurou o homem cada vez mais confuso. – Não quero que tudo fique assim.

– Você me surpreende – disse eu com a voz cada vez mais fria. – Devo crer que você é um tipo associal? Você sabe qual a imagem que teremos de você no laboratório. E não deve ser nada agradável carregar um tal estigma.

Isto o atingiu. Seu embaraço misturava-se agora ao medo. Sem amparo voltou os olhos, antes imóveis, de sua mulher para mim, de mim para ela. Após uma pausa rápida, voltei ao ataque:

– Mas estou seguro de que você não tinha más intenções. Você queria apenas certificar-se de que sua esposa levara suas suspeitas a sério. Como de fato levou, como você viu. Então não existe mais motivo algum para divórcio. Não tenho razão?

– Sim – concordou ele, mais tranquilo com minha afabilidade, embora não conseguisse seguir muito bem o raciocínio. – Naturalmente. Não existe motivo algum para o divórcio... Então.

A mulher percebeu logo que o perigo fora desviado e tudo voltava a ser como antes, e suspirou aliviada. Sua gratidão foi minha única compensação pelas duas noites sacrificadas. A frieza mal-humorada de Togo Bahara realmente me irritara, mas isso desapareceria com o passar do tempo. Para dar-lhes uma mão gritei-lhes:

– Você pode voltar outra vez e me informar se seu marido realmente pensava o que disse, ou se afinal se trata de um tipo associal!

Bahara sabia que eu era seu chefe. O matrimônio de Kadidja Kappori estava salvo.