¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, dezembro 28, 2010
 
CAPEANDO O TEMPORAL


Diz a imprensa que este eh o mais frio dos invernos dos ultimos 40 anos. Pode ser. Em todo caso, venho capeando o temporal. Consegui voar de Dublim a Berlim em plena crise dos aeroportos, verdade que com um atraso de umas dez horas. De Berlim a Paris, o atraso foi de uma hora e pouco. Temperatura amena as margens do Sena. Para quem vem de -10 graus, zero grau eh veranico.

De volta a casa, tenho curtido a sensacao de estar em Paris. Eh o que mais me agrada em Paris. Simplesmente sentir-me aqui. No primeiro dia, no inicio do mes, deixei a mala no hotel e fui direto para o Relais de l'Odeon, um de meus cafes prediletos. Senti-me como se jamais tivesse saido dali.

Eh o que me basta.

segunda-feira, dezembro 27, 2010
 
Recordar é viver:
O FIM DA GUERRA


Joinville, A Notícia, 11.03.90


Berlim, nestes dias de fevereiro, agita-se a cada ano em função do Festival Internacional de Cinema, hoje em sua 40ª edição e desenvolvido nas duas Berlins, se é que de duas Berlins ainda se pode falar. Mas estamos em fevereiro de 1990 e a grande vedete não é o cinema e sim o Muro, dia a dia picotado por berlinenses e turistas ávidos de uma lembrancinha do fim da barbárie. Um milionário americano chegou a oferecer às autoridades do Leste 40 milhões de dólares pelo Muro, valor que pretendia multiplicar por cem, vendendo-o aos pedaços. O negócio não foi feito, afinal o Muro pertence a todos e a ninguém.

“Todo muro no mundo” — escreve Peter Schneider, autor de Sauter le mur — “provoca a vontade instintiva de atravessá-lo. Nem uma criança, nem um gato, resiste à intenção de escalá-lo, para ver o que acontece do outro lado”. Para os alemães ocidentais, esta curiosidade sempre pode ser saciada. Um visto no passaporte, mais a troca compulsória de alguns marcos e o cidadão ou turista podia constatar in loco o horror ao qual havia escapado, voltando ao Oeste ainda em tempo de comer decentemente em um bom restaurante. Para os homens do Leste, até Nove de Novembro passado, a Berlim livre estava tão distante quanto a Austrália ou o Japão. Pular o Muro era gesto pago com a própria vida. Hoje, o Muro é apenas um muro e a vergonha parece pertencer a um passado distante.

Para os ex-presidiários, o choque é brutal. Pessoas que não mais lembravam a cor de bananas ou laranjas, sorriem incrédulas ante a profusão de frutas, carnes e bebidas no mercado. Uma grande loja de departamentos causa pânico. Depoimento de uma jovem universitária, hoje vivendo no lado ocidental:

“Descubro como se provoca a necessidade de comprar: os bunkers dos supermercados engolem as pessoas como imensos aspiradores, lá se encontra de tudo, e sobretudo uma quantidade considerável de bobagens; os animadores berram por todos os lados. Minha cabeça zumbe e eu me precipito rumo à saída”.

O mesmo choque ao inscrever-se na universidade:

“Entrego meu pedido de inscrição, recebo de volta minha carteira de estudante. Peço informações aos professores e os descubro desprovidos de arrogância, da autoridade e do patriarcalismo aos quais eu estava habituada; pelo contrário, eles dão provas de tolerância, às vezes de desenvoltura, muitos demonstram inclusive camaradagem ao tutear-me desde o início. Divirto-me lendo as inscrições nas paredes; cada um nelas exprime seus sentimentos, suas opiniões políticas. No Leste, foram retirados de circulação todos os sprays para impedir os grafitti”.

As máquinas de xerox, estes objetos rotineiros do mundo ocidental, constituem milagre para a recém-vinda do Leste:

“Em cada corredor da universidade vejo máquinas de xerox. Eis-me de novo desorientada. Na RDA, estas máquinas eram reservadas a certas pessoas: era preciso obter intermináveis autorizações, fornecer por escrito o interesse científico de sua requisição, antes que a pessoa responsável fotocopiasse seu documento. A única intenção era impedir a circulação de idéias hostis ao Estado. Eis-me agora diante de uma enorme máquina que me explica seus botões. Sinto-me como uma extraterrestre”.

Para melhor esta surpresa de extraterrestre da moça do Leste, nada melhor que evocar uma parábola proposta por Peter Schneider. Para o escritor, ao final de quarenta anos, pode-se considerar a divisão das Alemanhas como uma experiência social involuntária surgida das necessidades da guerra, os Aliados assumindo o papel de laboratoristas e os alemães de cobaias superdotadas. Dois gêmeos, com um passado comum, são dominados pelos Aliados e encerrados em internatos diferentes. O gêmeo criado no Oeste tem por nome RFA, cresce no clima estimulante dos valores ocidentais, aprende o que são a democracia, a economia de mercado, a propriedade privada e a liberdade individual e liga-se a seu experimentador ocidental.

O outro gêmeo tem por nome RDA, é seguidamente espancado, deve familiarizar-se com os valores rebarbativos e menos acessíveis da cultura comunista. Nele se incluem virtudes tais como a solidariedade internacional, o engajamento social, o desprezo da propriedade individual, o ódio de classes e, evidentemente, uma “amizade inquebrantável” pelos laboratoristas do Leste.

Doze anos depois, um muro é construído entre esses dois irmãos e um sistema bizarro de visitas é estabelecido. Enquanto o gêmeo do Oeste goza do Plano Marshall e dos progressos do sistema capitalista, seu irmão deve reembolsar as dívidas de guerra ao laboratório do Leste, bem mais pobre, do qual ele herdou o Estado de um só partido e um sistema econômico inoperante. As queixas não se farão esperar. Ouçamos o irmão do Leste:

— Meu caro irmão vive tão ocupado que aos poucos vai me esquecendo. Já não vem me ver quando eu lhe peço. Não vê o que me falta. Bastaria apenas que se mostrasse mais generoso, principalmente em sentimentos, pois ele tem mais sorte em ter ficado no Oeste. Aliás, diga-se de passagem, ele nada fez para merecê-lo. Ele simplesmente vivia no bom momento na boa margem do Elba. Mas agora seu sucesso subiu-lhe à cabeça. Em vez de dividir — pois não se trata de dar, mas sim de dividir — ele pretende trabalhar mais, ter mais talento. Honestamente, eu o conheço desde pequeno, ele não é mais nem menos preguiçoso do que eu. Ele apenas tornou-se arrogante, cheio de si. Em verdade — nossa propaganda não erra totalmente — ele continua a viver da exploração e da miséria dos outros. Mas ele não quer saber de nada. Ele poderia ao menos demonstrar um pouco mais de sentimento filial em relação a seu pobre irmão que teve menos sorte.

Diz seu irmão ocidental:

— As coisas não vão bem para meu pobre irmão atrás de seu muro, é evidente. Mas ele me enerva com suas reprovações. E esta maneira que tem de esperar eternamente... Afinal de contas, não fui quem o construí, e não se pode dizer que ele tenha se oposto ao muro. Só Deus sabe como gosto de dar presentes mas, se não existe mais a surpresa, não é divertido. Ele acha que lado de cá, as televisões em cores, os aparelhos de vídeo e os relógios Rolex nascem das árvores. Mas ninguém recebe um Mercedes quando nasce, é preciso ganhá-lo. Dívida, crédito, leasing, são palavras que meu irmão não conhece senão por ouvir dizer. Gostaríamos de explicar-lhe mas ele não escuta, ele só fala. Naturalmente, não é por sua culpa que ele ainda deve fazer fila para comprar laranjas. Não o estamos criticando diretamente, é a economia dirigida que é um desastre.

Longo é o discurso do irmão ocidental, segundo Schneider, pois o oriental sequer aceita críticas.

— Quando a discussão se anima, ele acaba me tratando de conformista e consumidor idiota, cumprimento que tenho prazer em devolver-lhe, pois suas pretendidas virtudes sociais lhe foram todas inculcadas, sei disso. Ele se toma por um idealista que ainda não vendeu sua alma! Acontece-me às vezes sentir-me aliviado ao final das visitas. Entre nós instalou-se um ressentimento, um sentimento de decepção sobre o qual precisaríamos falar um dia. Quando chega o momento de partir, mal ouso olhar meu relógio, tenho pena de vexá-lo. Ele dispõe de tempo, muito tempo, e ignora que pessoas como eu trabalham também nos fins-de-semana, têm almoços de negócios aos domingos.

Com o fim da Segunda Guerra, que poderíamos datar, na necessidade de uma data precisa, de Nove de Novembro, chegou a vez dos gêmeos se entenderem. A aproximação será certamente dolorosa e a Europa a vê com apreensão. Os livros de História deverão ser reescritos. Heróis passarão para a ala dos vilões e vice-versa. E muito ainda há de se ver até o final do milênio.

Prosit!

domingo, dezembro 26, 2010
 
Recordar é viver:
A LONGA LINHAGEM


Joinville, A Notícia, 26.11.89


Pois andei perambulando pela última Feira do Livro de Porto Alegre, com a alegria de quem é um pouco partícipe do Nobel de Literatura, já que me coube a honra — e as peripécias — de traduzir ao brasileiro as duas únicas obras publicadas entre nós de Camilo José Cela, A Família de Pascual Duarte e Mazurca para dois Mortos. Quando um Nobel surpreende e sua obra é totalmente inédita no Brasil, não falta quem reclame de nossa indigência cultural, falta de sensibilidade editorial e resmungos do gênero. Bueno, agora o autor tem traduzidas duas de suas criações fundamentais que, diga-se de passagem, pouca atenção mereceram, tanto de parte da crítica como de parte dos leitores. E muito menos dos livreiros.

Na Feira do Livro, inaugurada quase junto com a premiação, não havia um só exemplar de Cela. Mais ainda: não o encontrei em livraria alguma de Porto Alegre. Encontrei, em compensação, livrinho dos mais significativos, particularmente nestes dias que correm. Falo de Berlim: Muro da Vergonha ou Muro da Paz?, edição da L&PM, com terna homenagem em suas primeiras páginas a Luiz Carlos Prestes, esta alma penada que parece ter perdido a noção da época em que vive, ainda hoje encaracolado em seu stalinismo obtuso, primário e criminoso.

Se viajar ilustra, como dizem as gentes, há pessoas que mesmo dando dez voltas ao mundo não se deixam impregnar do mínimo verniz cultural. É o caso de Antônio Pinheiro Machado Netto, autor desta sintomática ode à tirania. Terá o livro envelhecido tão cedo ou terá sido seu autor sempre senil? Senão, vejamos.

Tendo visitado por duas vezes a URSS, a convite do Comitê dos Partidários da Paz na União Soviética, e uma terceira vez a Tchecoeslováquia, pela Assembléia pela Paz e pela Vida, e sentindo-se na obrigação de pagar suas mordomias em alguma moeda — desde que não dólares — nosso turista apressado entoa loas ao muro que durante três décadas constituiu o mais sinistro e desumano erigido pelo comunismo russo. Pincemos, cá e lá, alguns trechos desta cretina defesa do totalitarismo. O livro, é bom lembrar, foi editado em 1985. Se ainda entendo de matemática, há apenas quatro anos. Vamos lá.

Hoje não se pode mais falar em reunificação da Alemanha, pura e simplesmente, com fundamento tão somente na língua e história comuns. (...) Não se pode, todavia, afastar a hipótese de, num futuro mais ou menos remoto, vir a ocorrer a unificação (como aconteceu no Vietnã). Esta hipótese, porém, só pode ser considerada se na chamada Alemanha Federal — RFA — passar a existir também um regime socialista.

Uma das maiores bobagens veiculadas no Brasil sobre o Muro de Berlim é que ele foi erguido para evitar as fugas de alemães da RDA para a parte oeste de Berlim. Esta asneira é veiculada até por pessoas que gozam de alguma credibilidade no Brasil, e por órgãos de comunicação, que se apresentam como veículos fiéis à verdade.

Todos os epítetos lançados contra o muro — afronta à liberdade, vergonha, etc., etc. — escondem apenas o ressentimento e a frustração dos fazedores de guerra que, naquela linha de fronteira, viam o começo da terceira guerra mundial por que tanto sonham, e para cujo deflagrar tudo fazem, com vistas a salvar o capitalismo da crise irreversível em que está mergulhado.

É natural que na RDA e nos demais países socialistas a tendência seja a diminuição do índice de criminalidade, de vez que as infrações penais que têm origem na miséria, numa vida difícil e atormentada, com dificuldades econômicas e financeiras, tendem a desaparecer por completo nos países socialistas, e muito particularmente na RDA.

Mas, decorridas quatro décadas, essa mesma Alemanha Ocidental — eis a grande verdade — não resolveu problemas vitais do povo alemão que vive na região ocidental. Mais do que isso. Hoje a República Federal da Alemanha — RFA- , como todo mundo capitalista, é um país atormentado por uma crise de vastas proporções, crise política, econômica, social e moral.

A realidade alemã ocidental hoje reflete a crise que avassala o sistema capitalista. Na RFA a situação social também vem se agravando. Progressivamente aumenta a pobreza. Os sindicatos da RFA estão prevendo que até 1990 cerca de 100 mil pessoas perderão seus empregos, atualmente, por força da automação. Afora, evidentemente, o desemprego resultante da crise do capitalismo que existe na RFA e em todo o ocidente capitalista, e que vai continuar.

Os meios de comunicação de massa do Ocidente já “decretaram” que nos países socialistas não há liberdade para os cidadãos e que, especialmente, inexiste liberdade de imprensa. Também “decretaram” que os direitos humanos não são respeitados no mundo socialista.

Daqui cinco anos (ou seja, ano que vem, parêntese meu), na RDA, não haverá mais desconforto habitacional — todas as famílias terão sua casa.


Acho que chega. Visto destes dias, quando centenas de milhares de alemães orientais choram, riem, cantam e bebem comemorando a derrubada — política, por enquanto — do muro, o livro de Antônio Pinheiro Machado Netto nos sabe a sinistra e merencória estupidez. Curiosamente, vereador algum da dita Administração Popular apresenta moção declarando persona non grata a Porto Alegre este entusiasta advogado de gulags. Este senhor, defensor dos restos podres do stalinismo, é Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e dela ainda não foi expulso.

Que um jovem fanatizado, sem leituras nem viagens, profira tais despautérios, é compreensível. Mas tal atenuante não beneficia um homem de idade cujos olhos tiveram a oportunidade de constatar, in loco, o exercício da tirania. Enfim, a paranóia parece ser genética. Um outro Pinheiro Machado, o Luiz Carlos, durante décadas, pretendeu submeter os genes às leis da dialética, defendendo as experiências fajutas de Lyssenko, pupilo de Stalin que por seu dogmatismo quase arrasou com a agricultura russa, tornando-a dependente, até hoje, de grãos do Ocidente. Luiz Carlos teve certa sorte: não teve editores que publicassem suas asneiras. O mesmo não aconteceu com Antônio.

Desde os anos 30, Moscou aprendeu como conquistar intelectuais no Ocidente: basta oferecer-lhes viagens e mordomias, com a nonchalance de quem joga milho às galinhas. A longa linhagem de intelectuais vendidos alberga desde pinheiros natos a expressões mais altas, tipo Kazantzakis, Aragon, Neruda, Brecht, Lukács, Sartre, Simone, Jorge Amado, Graciliano Ramos e vou ficando por aqui, que a lista seria infinda. O stalinismo, dogma já superado na Europa, ainda vige na América Latina.

O muro de Berlim já caiu. Quando cairá o muro mental de imbecilidade que ainda determina o pensamento de intelectualóides de esquerda?

sábado, dezembro 25, 2010
 
NATAL EM BERLIM


Já não lembro quando estive pela primeira vez em Berlim. Terá sido no final dos 70. O Muro parecia uma fronteira erguida para a eternidade e ninguém sonhava, naqueles anos, que um dia pudesse ser demolido. Berlim Ocidental era uma ilha de prosperidade em pleno deserto socialista. Você embarcava em alguma cidade fronteiriça da Alemanha Ocidental e no trem já sentia o cheiro do socialismo. Trens vagabundos, policiais carrancudos acompanhados por cães também policiais, um tratamento hostil dos passageiros, mais ou menos do tipo “o que você veio fazer aqui?”

Ao desembarcar na Berlim Ocidental, a volta ao conforto e bem-estar. A cidade era rica e privilegiada. Funcionava como uma vitrine do capitalismo em meio ao inferno socialista. O Senado berlinense proporcionava uma série de subsídios a quem lá vivia, para manter habitada a vitrine. Era uma das cidades mais confortáveis e baratas da Europa. A amiga que me recebia vivia em um belo apartamento de quatro quartos, cujo aluguel era a metade do que eu pagava em Paris por um quarto-e-sala.

Berlim era a cidade preferida de aposentados e de jovens que preferiam não entrar de rijo na competição capitalista. Um pequeno paraíso incrustado no mundo soviético. A Kurfürstendamm, Kudamm para os íntimos, com suas lojas e restaurantes suntuosos, fazia um contraste escandaloso à miséria do outro lado do Muro. Minha amiga levou-me lá, para sentir o cheiro do socialismo. Não estou falando por metáforas. Socialismo cheira mal mesmo. Mal atravessei a fronteira, um odor desagradável de carvão vegetal inundou-me as narinas.

As diferenças começavam já na travessia do Muro. Do lado de cá, ao entrar no metrô, você punha o tíquete numa máquina eletrônica, que o devolvia do outro lado. Do lado de lá, você tinha de picotar o tíquete em uma alavanca enferrujada. Na fronteira, um policial com cara de buldogue olhava um minuto para sua foto no passaporte e mais outro minuto para seu rosto. Quem vive em Livramento ou Rivera, onde se passa de um pais a outro sem dar satisfação a autoridade alguma, ficaria perplexo ante a Berlim de então.

Minha cicerone queria mostrar-me como era um restaurante socialista. Primeiro, precisamos achá-lo, que no paraíso soviético restaurantes não têm placas. Após uma boa hora pela neve, interrogando pessoas na rua, achamos um. Ficava no primeiro andar de um prédio qualquer, sem qualquer indicação de restaurante. Na escadaria, sem calefação alguma, uma boa dezena de pessoas esperavam na fila. Mais de meia hora de espera. Lá dentro, de fato todas as mesas estavam lotadas. Mas as mesas eram imensas, a ponto de dificultar a conversação. E ficavam a meia légua uma da outra. Fossem menores e estivessem mais próximas, a sala teria seu espaço útil triplicado, sem desconforto algum.

Os garçons, nem te ligo. Não recebiam gorjeta, não havia então porque preocupar-se com o cliente. Lá pelas tantas, um deles dignou-se vir até minha mesa. Pedi o cardápio. Teria umas quinze opções de pratos. Fui pedindo, um a um, para ouvir sempre um invariável “não tem”. Cheguei ao último. Era o prato do dia, o único que serviam. O cardápio era de mentirinha, resquícios de uma Alemanha que ainda não era comunista. Do outro lado do Muro, na Berlim ocidental, os restaurantes regurgitavam de gente, sem fila alguma e com cardápios de verdade.

Berlim hoje é uma só. Não há mais distinção de tratamento entre ocidentais e orientais. A cidade não está dividida por uma fronteira. Se você quer ver as diferenças entre as antigas cidades, a Ocidental e capitalista, e a Oriental e comunista, procure o filme "Adeus, Lênin", de Wolfgang Becker, uma das mais belas sátiras sobre o socialismo que vi nos últimos anos. Uma senhora, comunista devota, entra em coma antes da queda do Muro E só sai do coma depois. O filho, que já havia se libertado das tralhas e hábitos socialistas, não quer chocá-la. Sai então a buscar no lixo os ícones socialistas. Entre eles, um poster de Che Guevara. O que é simbólico. Enquanto na América Latina ainda se cultua o celerado argentino, na Alemanha já o jogaram na famosa lata de lixo da História.

Em meio a isso, espanta constatar que muito universitário brasileiro, e mesmo professores universitários, 21 anos após a queda do Muro, ainda não sabem o que aconteceu no dia Nove de Novembro de 1989, uma das duas datas mais significativas do século passado.

Neste Natal, Berlim está soterrada pelas neves e não convida ao passeio. Melhor enfurnar-se nos Stuben e curtir o bom vinho ou a boa cerveja, rematando com uma kirschwasser ou akvavit. Até a Kurfürstendamm, sempre gloriosa, está agora feia, manchada pelo barro que a neve produz.

Segunda-feira, volto para Paris, onde o clima é mais ameno.


PS - Att tänka fritt är stor, att tänka rät är större.

sexta-feira, dezembro 24, 2010
 
MELHORES IMAGENS
DO CAFE EN SEINE



Mais algumas imagens do Cafe en Seine, de Dublim, onde perdi prazerosamente um vôo. Alguem já viu algo igual?

http://cpqs3.blogspot.com/2010/01/cafe-en-seine-dublin.html

 
SOBRE A CULINARIA FRANCESA


Me escreve o Filipe Liepkan Maranhao:

Olá Janer,

Tenho de discordar. Não é questão de gosto, mas de aceitabilidade de algo que, ao gênero, é repugnante. De parentes alemães a primos que residem na França a constatação é a mesma: prefere-se, antes, um restaurante de fora. É como se a comida francesa fosse um álibi a todo e qualquer degustador que quer se convencer acerca de uma culinária que há anos está estagnada.

Lembro-me bem de comparações entre a culinária francesa e a espanhola. Franceses preferindo a comida espanhola, espanhóis preferindo a comida espanhola, e brasileiro elogiando a comida francesa fazendo biquinho ao proferir "chic", sob os risos de europeus natos que veladamente faziam piada de constatações literalmente supérfluas.

Não seria essa tara pela culinária francesa coisa de latino-americano?

abçs

filipe


Bom, Filipe, eu gosto tanto da cozinha francesa, como da alema, espanhola ou italiana. Hah quem nao goste de rans ou escargots. Eu gosto. Mas tambem conheco quem nao consegue nem olhar para uma ostra. Se visses um percebes, irias te enausear. Meus parentes do campo nao conseguem sequer encarar um camarao. Judeus e muculmanos nao comem algo tao delicioso como a carne suina. Em Lyon, um amigo gaucho preparou um porco e disse a um colega de curso arabe que era cordeiro. Ele adorou. Quando soube que era porco, vomitou.

Os franceses cultivam entre outras coisas a "cuisine pourrie", isto eh, a cozinha podre. O camembert, sem ir mais longe, tem um odor escatologico. Mas como sabe bem ao palato! Acho que se exige uma educacao especial para degustar certos pratos. Emocoes fortes nao sao para amadores.

Mas se um camembert ou as andouilletes exigem certa coragem intelectual, hah pratos singelos e agradaveis a qualquer paladar, como o fileh a Chateaubriand, o boeuf bourguignon, o fileh au poivre, coq au vin, jarret de porc, bavettes, os mais diversos peixes e frutos do mar e mesmo o cassouleh, o precursor da feijoada, que no Brasil eh tida como criacao tupiniquim. Gostos sao relativos. (Tem gente que adora McDonalds). Consta que o Villa Lobos ofereceu uma feijoada a um frances e este reagiu automaticamente: "Mais c'est de la merde!". O boudin, que adoro, eh uma versao mais suave de nossa morcilha. Outro prato que sempre procuro eh uma entrada, o hareng aux pommes, um arenque do Baltico cru com batatas.

Em materia de cozinha de rua, adoro o merguez au chili, que nao eh exatamente frances, mas arabe. Eh uma linguicinha com cara de inocente, mas... haja agua por perto. A primeira dentada eh deliciosa, a segunda e a terceira picantes. As seguintes queimam.

Tambem gosto do que chamas de cozinha hah anos estagnada. Mais ainda: prefiro cozinhas hah seculos estagnadas. Nao gosto das nouvelles cuisines. Nao frequento restaurantes geridos por chefs da moda.

quinta-feira, dezembro 23, 2010
 
REUNIRAM-SE ENTAO AS
NEVES EM ASSEMBLEIA



Estou em Berlim. O bom deus dos ateus abencoa quem bebe. Na terca-feira, dirigi-me tranquilamente ao Cafe en Seine, em Dublin. Degustei um vinho australiano, um exotico aperitivo de vodka com pimenta, pera e manga e mais um irish coffee - em Dublin, como os dublinenses. Passamos o resto da tarde bebendo Guiness e irish coffees, e inclusive frequentando antros de rock e country - na Irlanda como os irlandeses. E acabamos a noite derrubando mais alguns dos 179 uisques do Temple Bar.

Dia seguinte, olhei minha agenda e descobri que haviamos perdido meu voo. Nao se chora sobre leite derramado. Fui tomar cafeh e pensei em como correr atras do prejuizo. Ao ler os jornais, vi que naquele dia, em funcao da neve, nenhum aviao havia decolado de Dublin. Enquanto passageiros se estressavam no aeroporto, eu tranquilamente degustava minha vodca com pimenta, peras e mangas no Cafe en Seine.

Reuniram-se entao as neves em assembleia e decidiram, vamos poupar o dia daquele ateu, embora tenhamos de punir aqueles milhares de certinhos que preferem nao se entregar ao melhor da vida e vao ao aeroportos nos horarios. Em suma, sem o estresse de um dia inutil no aeroporto, curti Dublin ateh seus ultimos minutos.

Sofri ontem, soh consegui chegar a meia-noite em Berlim. Acabo de sair da magnifica Literatur-Haus, onde jah degustei um bom Rioja e arrematei com uma kirschwasser - em Berlim, como os berlinenses. Jah estou na Kurfürstendamm, toda suja de um barro de neve. Os bons deuses inclusive me prepararam uma boa recepcao na cidade. De -12, a temperatura subiu agradavelmente para zero grau.

Prosit!

segunda-feira, dezembro 20, 2010
 
CAFE EN SEINE


Neva com gosto em Dublin. Fui hoje ao Trinity College, visitar a Old Library. Lah encontrei uma das mais antigas biblias do mundo, o livro de Kell. Rendi minhas homenagens a Swift e tambem a Wilde.

De volta para casa, tropecei num bar divino, o Cafe en Seine. Noooossa! Conheco os melhores cafes de Madri, Paris, Viena, Roma e nunca vi algo igual. Amanha, vou almocar lah. Para dar uma espiadela: http://www.cafeenseine.ie/

 
QUESTOES DE GOSTO


Do Roberto Veiga, recebo:


Hehehehe... rende um bom debate. Claro que é questão de gosto pessoal, e cada um sabe porque gosta disso ou daquilo. Vivo na França ha cerca de dois anos e penso, apos fazer um pos-doutorado, até mesmo em voltar pra ca. Gosto de muita coisa aqui, mas... não gosto da comida. Minto, adoro as sobremesas, que são realmente de sonho. Não sei se tu sabes, mas li em algum lugar que a França é o segundo pais do mundo em consumo per capita de McDonalds, atras apenas dos EUA. E, aqui em Lyon, que eles dizem ser a capital gastronomica francesa, os restaurantes mais comuns são os kebabs :-) Ou seja, até os franceses parecem ter uma certa reserva quanto à sua propria culinaria, preferindo o que vem de fora.


Ha certas comidas aqui que são simplesmente nojentas. Tem até, me disseram, um "queijo que anda" la na Corsega, por causa dos vermes que crescem dentro dele. Ja provei muita coisa bizarra aqui, de estomago de pato até um tipo de pudim em forma de linguiça feito de sangue de porco sem uma gota de sal (o estomago ja revoltou aqui, so de lembrar do tal de boudin). Confesso que meu estomago é fraco pra esse tipo de coisa. Mil vezes uma picanha no alho, bem simples e saborosa.


Roberto


Questao de gosto, meu caro Roberto. O boudin eh o primeiro prato que busco em Paris. Depois, as andouilletes, uma tripa recheada de tripas. Dei um tequinho a uma amiga para provar, ela quase vomitou.

Quanto aos queijos que andam, sao meus prediletos. Cada vez que levo um camembert para o Brasil, minha assessora de assuntos domesticos reclama: "Seu Janer, tem algo podre na geladeira". Nao eh podre, Cristina, eh assim mesmo.

domingo, dezembro 19, 2010
 
PARIS X LONDRES



De Andre Pineli, recebo:

Caro Janer (não sei se posso te chamar assim, mas vou chamar pois me sinto íntimo após anos acompanhando seus blogs e colunas)

É engraçado que penso exatamente o contrário de você em relação a Londres x Paris.
Estou em Paris neste exato momento, pela primeira vez. Em Londres já estive duas vezes, sendo que na primeira delas passei um mês e meio.

Embora tenha achado Paris muito bonita, provavelmente mais bela que Londres, acho que falta algo na cidade. Esse algo é um sentimento de urgência, uma sensação de que algo está para acontecer na cidade. Em Paris e seus cafés, fiquei com a impressão de que as pessoas estão apenas esperando a vida passar, parece que não há algo no ar. Em Londres, ao contrário, basta uma volta de metrô para ter uma sensação de que daquela fauna em algum momento brotará algo. Certamente é uma questão de gosto, mas escrevo apenas para (talvez), confirmar a sua tese a respeito da Europa Latina versus a anglo-saxônica. Na semana anterior, estive em Berlim, e lá também tive a sensação de que há algo no ar, menos do que em Londres, mas com certeza muito mais do que em Paris.

Aproveito também para lhe informar que segui sua dica a respeito da Brasserie Bofinger e, infelizmente, fiquei profundamente decepcionado. O atendimento foi entre péssimo e horrível. Quase tive que ir ao bar buscar a minha cerveja após repetir o pedido por três vezes sem sucesso. As mesas são próximas demais, o que torna qualquer conversa bastante complicada pois você escuta mais os seus vizinhos do que a sua companhia sentada à sua frente. E a comida tem um custo-benefício muito baixo. Ficou entre fraca e razoável, a um preço relativamente alto, além de ter demorado uma eternidade. Em suma, foi péssimo. Na realidade, minha esperiência gastronômica na França tem sido bastante frustante. Fui a vários restaurantes indicados em sites/blogs (embora nenhum estrelado pela Michelin) e ainda estou esperando comer algo realmente saboroso. Comi muito melhor em Berlin e, especialmente, em Copenhagen.

Resumindo, a França é muito bonita, é bastante agradável de passear, caminhar etc. Mas para mim parece que falta algo no ar. Aqui parece que as pessoas estão apenas observando o mundo passar, obviamente aproveitando bastante o momento, mas me parece que dessa terra não brota mais nada, ficou tudo no passado.

Um abraço,

André Pineli


Meu caro Pineli,

certamente nao estiveste no Bofinger. Brasserie Bofinger deve ser outra coisa. O Bofinger eh um restaurante do qual nada tenho a queixar-me. O atendimento lah eh otimo, nada tem de pessimo e horrivel. Nem as mesas estao proximas demais. Voce foi em algum outro endereco. De qualquer forma, as mesas sao em geral apertadas em Paris.

Voce pode achar que come melhor em Berlim ou Copenhague. Ok! Lah se come bem. Mas nao melhor que em Paris. Pelo jeito, voce pouco explorou a cidade. Visite o vrai Bofinger, Aux Charpentiers, Julien, Zimmer, Relais de l`Odeon, La Perigourdine, Les Temps de Cerises, Le Tire-Bouchon, e tantos outros, e terah uma melhor ideia de Paris.

 
CRISE CORROI DUBLIM



A cidade eh simpatica, viva e alegre. Os dublinenses, a primeira vista, amistosos. Na rua, uma senhora me abordou: I love your hat. Eh manifestacao espontanea agradavel de ouvir. Thanks! Em um pub, uma mulher linda e carinhosa nos abordou, nos desejou tudo de bom na Irlanda, ofereceu-me a mao, beijei-a. Ao sair, nos despedimos aos beijos e abracos. Nao eh em qualquer pais que isto acontece.

Dito isto, me consta que aih no Brasil, segundo os jornais, a crise assola a Irlanda. De fato. Ruas repletas de gente, comprando para o Natal. Restaurantes com uma hora ou mais de espera. Nos pubs, depois das cinco da tarde, eh preciso lutar ombro a ombro para conseguir um espacinho onde colocar os pes.

O sinal mais grave da crise, encontrei-o no Temple Bar, boteco do bairro Temple Bar. Pedi um uisque. O bar tinha uma lista com 180 uisques. Pedi o Old Dublin. Nao existia mais. Soh tem 179 uisques.

Sem duvida alguma, eh a crise.

quinta-feira, dezembro 16, 2010
 
REVISITANDO A PERFIDA ALBION


Faz 29 anos que vim pela ultima vez a Londres. Em verdade, soh estive aqui duas vezes, em 71 e 81. Nunca me senti bem na cidade. Nao me entendo com as culturas anglofonas. Nao gosto dos Estados Unidos, fui lah soh para confirmar isto. Comeca pela gastronomia e habitos de beber. Voce jah ouviu falar em cozinha inglesa ou americana? Eu, nunca. Alias, dizem que os britanicos construiram um imperio tao grande porque buscavam uma boa cozinha.

Nao gosto de pubs. Isso de beber em peh e ter de pagar na hora cada consumacao me desagrada. Gosto de ter onde apoiar os cotovelos. Ok, hah pubs com mesas. Mas me faz falta um garcom me caitituando. Gracas aos bons oficios da Primeira-Namorada, encontrei nesta viagem pubs simpaticos, solenes. Mas ainda falta o garcom. Outra coisa que me desagrada profundamente eh ver pessoas bebendo no bico da garrafa. Imaginava que isto fosse pratica dos barbaros ianques. Mas a encontrei aqui tambem.

Me reconciliei um pouco com a cidade. Gostei de passear pelas margens do Tamisa. Mas ainda prefiro as do Sena. Edificios publicos e comerciais em excesso. Lah em Paris, cafeh e restaurantes. Fizemos um giro na London Eye, jah a noite. Valeu. Proporciona uma inusitada visao da cidade. A Primeira, que hah muito sabe do que gosto, me levou ao mais antigo restaurante de Londres, o Rules, de 1798. Fora a decoracao natalina, perfeitamente dispensavel em um restaurante de luxo, gostei. Ontem fomos no segundo restaurante mais antigo de Londres, o Simpsons, de 1828. Bem mais solene e sem frescura nenhuma natalina. Ousei ateh degustar one british wine, o Tyranossaurus Red. Apesar do trocadilho, aprovei.

Mas nao consigo entender-me com a cidade. Eh preciso deslocar-se para diferentes bairros para bem capta-la. Em Paris ou Madri, em uma pequena geografia, tenho a cidade toda. Detalhe a levar em conta: nos onibus e metros, degenerados fissurados em Ipods, como criancas que tivessem recebido um presentinho de Natal.

O Big Ben e o Parlamento sempre solenes, o parque Saint James sempre charmoso, com seus esquilos, patos e pelicanos. Foi um reencontro agradavel. Mas Londres nao eh meu chao. Ao longo da vida, conclui que quem gosta do lado latino da Europa, nao se adapta muito bem ao lado anglo-saxao. E vice-versa.

Decididamente, sou mais Paris, Roma, Madri.

quarta-feira, dezembro 15, 2010
 
TAIMUR ABDULWAHAB AL ABADALY,
TERRORISTA SUECO



Quando um imigrante arabe assume a nacionalidade sueca, passa imediatamente a ser chamado, pela midia internacional, de cidadao sueco. Taimur Abdulwahab al Abadaly, o terrorista de origem iraquiana que se explodiu em Estocolmo, tem cidadania sueca. Serah que a midia vai considerar Taimur Abdulwahab al Abadaly um terrorista sueco?

sábado, dezembro 11, 2010
 
ASCO


Falei em cronica passada que nem todo mundo tem direito a Paris. Houve quem reclamasse. Que ninguem tem mais ou menos direitos a Paris. Nao concordo. Voce sabe o que eh voar com uma chusma de colorados, com aquele uniforme do Banrisul, alguns enrolados na bandeira? Sabe o que eh entrar no Charles de Gaulle com aquela canalha gritando em unissono: "atirei um pau no Gremio e mandei tomar no cu..."?

E por aih afora. Mas que tem na cabeca esta gente que sauda Paris insultando o Gremio? Sao animais que iam para Abu Dabi. Nao eh que devam ser proibidos de entrar na Franca. Deveriam ser proibidos de entrar na Europa. Que direito tem a Paris esta canalha? Interessante observar que constituem uma elite economica, de alto poder aquisitivo. Nao eh qualquer brasileiro que banca uma viagem a Abu Dabi. Se esta elite se comporta assim, que sobra para o povao?

Eh quando me dah nojo ser brasileiro. Vontade de declarar ao guardinha que sou paraguaio, haitiano, ugandense.

Nos proximos dias, me dedico ao insano trabalho de curtir Paris, Londres, Dublim e Berlim. Espero que o leitor entenda porque me ausento do blog. Quando me sobrar algum tempo, farei uma rapida intervencao.

sexta-feira, dezembro 10, 2010
 
ANARQUISTAS DE TODO
MUNDO, ANIMAI-VOS!



Paris é cidade que reúne muita inteligência por metro quadrado. Ocorre que a estupidez é universal. Prova disto são as declarações do ex-jogador francês de futebol Eric Cantona, um ídolo na França e na Inglaterra, onde fez carreira. Pois não é que o ídolo destruir o sistema bancário francês, nada menos que isso? Em outubro passado, Cantona sugeriu em um vídeo que as pessoas retirassem todo o dinheiro que mantêm nos bancos. Na semana passada o ex-craque prometeu, em entrevista ao jornal Libération, que faria a sua parte nesta última terça-feira.

"A revolução é muito simples de ser feita hoje. Ao invés de ir às ruas fazer quilômetros de manifestações, você vai ao banco da sua cidade e retira todo o teu dinheiro", conclamou o ex-atacante da seleção francesa e ídolo do Manchester United, argumentando que se 20 milhões de pessoas decidem fazer o mesmo, o sistema bancário desmoronaria. "É uma revolução sem armas, nem sangue. Estou constatando essa estranha solidariedade que está nascendo, então, sim, no dia 7 de dezembro, eu irei ao banco", disse o animal.

O espantoso é que a imprensa francesa tenha feito uma polemica em torno a tais sandices. A criação do sistema bancário representou uma revolução extraordinária na organização da sociedade e da vida pessoal de cada cidadão. Ninguém precisou mais guardar dinheiro em cofres ou colchões, muito menos carregar um saco de moedas ou cédulas ao fazer uma transação importante. Leio nos jornais que os meios de comunicação franceses repercutiram a declaração e em poucas horas os internautas começaram a se manifestar em sites e em redes sociais, afirmando que fariam o mesmo.

"O dinheiro dos bancos é o nosso dinheiro e nós o ganhamos com muito suor. Temos o direito de fazermos o que bem entendermos com ele", disse Jean-Jacques Saliou, uma das pessoas que promete acompanhar Cantona na "revolução". "Não podemos continuar pagando os salários milionários dos grandões das finanças sem dizer nada", afirmou Evelyne Maller.

Curiosamente, jornalista algum perguntou a Cantona se ele se disporia a ir buscar na sede de seu clube seus salários, que certamente farão bom volume nos bolsos. Se toparia ir até os PTT com euros em punho pagar sua conta de telefone, até a EDF pagar sua conta de luz. Ou portar uma mala de papel-moeda para pagar um carro ou um apartamento. A proposta do ex-jogador. que pode até fascinar anarquistas saudosos,é de uma precariedade total. O que espanta em tudo isto é que até altas autoridades tenham se preocupado com tais bobagens.

Christine Lagarde, a ministra da Economia, comentou o assunto, dizendo que "existem pessoas que jogam magnificamente futebol, mas eu não me arriscaria. Acho que cada um tem de se concentrar nas suas competências". O ministro do Orçamento, François Baroin, por sua vez, foi mais duro nos comentários, chamando a iniciativa de "grotesca e irresponsável". "Cantona como conselheiro financeiro não pode ser levado a sério. Cada um na sua área", disse Baroin.

Espanta ainda mais que esta idéia estapafúrdia esteja fazendo fortuna além-fronteiras. Segundo o Libé, na Bélgica, a cenarista Géraldine Feullien abriu um site, Bankrun2010.com, através do qual espera conquistar seguidores no mundo inteiro. O endereço tem tradução em oito línguas. "Com ou sem a nossa contribuição, esse sistema bancário atual irresponsável vai explodir mais cedo ou mais tarde. O melhor é nos prevenirmos e agirmos desde já, guardando o nosso dinheiro em casa ou em bens", defendeu Feuillien. "Independente dos resultados desta ação, as pessoas terão a ocasião de pensar sobre o imenso golpe que representa o sistema monetário de hoje. É o momento de se exigir que se construa um outro que seja verdadeiramente a serviço do cidadão."

Bem que Cantona podia ser mais radical em sua proposta. Que tal voltar ao escambo. Eu jogo futebol sem receber um vintém e meu time ergue minha casa. Vou a padaria e troco as laranjas de meu pomar por pães. Vou à Fnac e troco À la recherche du temps perdu por uma caixa de CDs do Jacques Brel.

Mas ainda mais espantoso é ver economistas preocupados com a idéia estúpida. Segundo Jézabel Couppey-Soubeyran, da Universidade Paris 1 - Panthéon-Sorbonne, se 20 milhões de pessoas decidissem retirar o seu dinheiro ao longo de alguns dias, essa atitude colocaria os bancos em risco. "Não é o mais adequado a se fazer para se rebelar, porque, por mais descontentes que estejamos, o nossos sistema todo ainda depende dos bancos." Sem liquidez, os bancos cessariam os pagamentos e as poupanças dos correntistas seriam as primeiras prejudicadas. Os juros explodiriam e provocariam a alta das taxas de inflação, levando a economia inteira de um país ao desequilíbrio, já que os financiamentos - e consequentemente, os investimentos - ficariam suspensos. A revolução prejudicaria, sim, os bancos, que seriam obrigados a decretar falência. Mas a medida extremista também afetaria gravemente todo o restante da sociedade.

Anarquistas de todo mundo, animai-vos! A estupidez, além de universal, é eterna.

quinta-feira, dezembro 09, 2010
 
CHEZ MOI!


Estou au bord’elle, la Seine. Daí bordel, segundo alguns filólogos. A Paris sempre é bom voltar. Nas últimas quatro décadas, tenho voltado quase todos os anos. Lembro que, após minhas primeiras viagens, escrevi artigo na Zero Hora, de Porto Alegre, intitulado “O Direito a Paris”.

Eu defendia então que visitar Paris era item que devia constar da Declaração dos Direitos Humanos. Jovem sempre escreve bobagens, é inevitável. Hoje, penso que Paris devia proibir a entrada de boa parte da humanidade. Paris é para quem a merece. Para quem consegue entendê-la, em sua cultura, arquitetura, história, artes, gastronomia, enologia. Quem não curte a bona-xira e não bebe, não come carne de porco nem frutos do mar, deveria passar ao largo.

Acabo de inaugurar a cidade no La Périgourdine, simpático bistrô colado a meu hotel, especializado na cozinha do Périgord, onde costumo degustar um foie gras divino. O restaurantinho está em uma das últimas ficções de Vargas Llosa, Travessuras da Menina Má. Pensei começar praticando meu esporte dileto, tomar uma cerveja na terrasse, sob um sol morno de inverno.

É minha concepção de paraíso. Frio, sol, cerveja, jornais e livros. E a vida passando à minha frente. Mas neva forte e a temperatura é de 0ºC, melhor ficar dentro do bar. Espero que no paraíso tenha boas livrarias e fartos quiosques ao lado dos botecos. Disse um escritor, já não lembro qual, que os americanos bons, quando morrem, vão para Paris. Sou brasileiro, ainda não morri, mas estou aqui.

É cidade que faz parte de minha vida, ao mesmo título que aquela em que vivi minha adolescência. Tenho cinco anos de Dom Pedrito. Quatro de Paris. Quase empata. Se juntar os demais períodos em que passei aqui, tenho muito mais anos de Paris que de Dom Pedrito. Estive aqui pela primeira vez aos 24 anos e vim morar aos 30.

Costumo afirmar que Paris se deve conhecer quando se é jovem. Um dos encantos desta cidade são suas mulheres e não falo apenas das parisienses. Paris atrai mulheres lindas de todos os quadrantes. É preciso chegar aqui em idade útil. Se você chega em idade avançada vai sofrer muito. Se lamentará o tempo todo: por que não conheci Paris antes?

Difícil dizer qual a cidade mais linda do mundo, isto depende de critérios. Se o critério for geográfico, eu diria Estocolmo e suas ilhas. Se for arquitetônico, diria Paris. Há quem fale em Praga. Estive lá em 90. De fato, é linda. Mas Paris é mais. Sem falar que não foi contaminada pelo comunismo, peste que tornou a vida desconfortável, mesmo em cidades belíssimas como Praga, Budapeste ou São Petersburgo.

Já contei que tenho um grave problema em viajar. Quero conhecer outros lugares do mundo, mas nunca resisto ao charme de Paris e Madri. Penso ir ao Norte, ao México, Canadá. Na hora de fazer a mala, acabo rumando para o Leste. Em Paris, tenho outro problema. Não consigo descobrir restaurantes ou cafés novos. Os que conheço e adoro tomam todo meu tempo. Desde há duas décadas, não consigo escapar do Julien, Chez Lipp, Bofinger, Aux Charpentiers, Procope, Tire-Bouchon, Au Pied de Couchon, Les Temps des Cerises e aqui já vai uma semana. Amanhã, já caio na rotina.

Paris vale bem uma missa, disse Henrique IV, quando se converteu pela segunda vez ao catolicismo, ao entender que a maior parte do povo não o aceitaria como rei se fosse protestante. Paris vale bem um casamento, diria eu. Casei em função desta cidade. Nunca dei importância a papéis e casamento era algo que eu jamais cogitara em minha vida. Foi quando ganhei uma bolsa para cá. Queria trazer minha companheira, com quem vivia já há doze anos. E a fórmula para trazê-la era casar. Mal o cônsul me comunicou a bolsa, telefonei para seu trabalho. Queres casar? Perplexidade do outro lado da linha.

Não que eu quisesse casar. Queria trazê-la para cá. Casei meio às escondidas, num cartório ao lado de meu bar. Às onze da manhã, eu bebia com o Carlos Coelho, excelente amigo e colunista da Zero Hora, na Rotisserie Pelotense. Deixei minha caipirinha pela metade e disse ao Coelho: “segura aí que vou comprar um jornal”. Entrei no cartório, onde já me esperavam familiares e testemunhas. Aí o juiz me fez uma pergunta idiota: você quer casar com esta mulher? Claro que queria, senão não estaria lá, ora bolas. Disse então aos circundantes: “vou comprar um jornal, me esperem na churrascaria aqui na frente”.

Voltei à Pelotense, terminei minha caipira com o Coelho, ele sequer imaginava que naqueles poucos minutos eu mudara de estado civil. Ocorre que Coelho, jornalista futriqueiro, tinha o detestável hábito de ler o Diário Oficial. Viu os proclamas e largou a história na imprensa. Dia seguinte, tive de dar longa entrevista na Folha da Manhã, tentando convencer minhas demais amadas que continuava sendo o mesmo homem solteiro de sempre. Não convenci muito.

Paris hoje me é um pouco dolorosa. Se vou a lugares onde fui feliz com a Baixinha, sinto falta dela. Se vou a lugares onde não estivemos, lamento não ter estado com ela. Como dizia Fierro,

solo queda al desgraciao,

lamentar el bien perdido.


Mas a vida continua, cruel e generosa ao mesmo tempo, sempre insensível ao que possam sentir os mortais. Amanhã, chega de Londres a Primeira-Namorada. Já a iniciei nesta cidade e não precisaremos fazer o percurso dos marinheiros de primeira viagem. De repente, nem saímos do Quartier Latin. No máximo, uma esticada à Rive Droite, para revisitar o Julien, um dos mais antigos e charmosos restaurantes desta generosa urbe..

Depois Londres, cidade que não encontra lugar entre minhas prediletas. Não gosto da ambiência dos pubs, daquela mania de beber em pé e, pior que tudo, de ter de buscar a bebida no balcão e pagar a cada consumação. Prefiro garçons me caitituando. A Primeira, que há muito me entende, já reservou mesa no restaurante mais antigo de Londres, o Rules, de 1798: http://www.rules.co.uk/. E também em outro mais moderninho, o Simpsons, de 1828: http://www.simpsonsinthestrand.co.uk/. Pelo jeito, vou me reconciliar com a cidade.

Após Londres, Dublim, cidade que ainda não conheço. Quem conhece a mim e Dublim, garante que vou adorá-la. Reservei hotel no Temple Bar, a região de mais alta concentração de bares, onde as Guinness me esperam. Outro de meus prazeres diletos na Europa é tomar uma cerveja gelada, no útero quentinho de um bar, contemplando a neve que cai lá fora.

Depois, Berlim. Faz exatamente 20 anos que não percorro sua Trinkerinnengeographie. Estive lá em 90, quando fui arrancar cacos do Muro. Se a Berlim Ocidental era então esplendorosa, a cidade reunificada deve hoje ser uma festa para os olhos. Já está fazendo 10ºC por aquelas plagas.Mas isso do outro lado da janela do bar.

De Berlim, volto au bord’elle, que ninguém é de ferro.

quarta-feira, dezembro 08, 2010
 
SE AINDA SOU GAÚCHO


O bom da Internet é que as crônicas não morrem. Sobre a crônica publicada no 20 de setembro, me pergunta um leitor: ainda és gaúcho? É uma boa pergunta.

Minha definição de gaúcho não é a que vige no Brasil, a de gentílico de quem nasceu no Rio Grande do Sul. Entendo como gaúcho o homem que nasce no campo, entre vacas, ovelhas e cavalos. Não concebo como gaúcho gente nascida no asfalto. Quanto aos cetegistas, recorro à definição dos catarinenses. Qual é o menor circo do mundo? São as bombachas. Só cabe um palhaço dentro.

Nasci na pampa, entre vacas, ovelhas e cavalos. Sei o que é o gaúcho. É homem que geralmente nasceu pobre, vive afastado do mundo contemporâneo e tem uma visão peculiar de mundo, que nada tem a ver com a do homem urbano. Para começar, um gaúcho sabe o que é horizonte, noção cada vez mais rara nas cidades. Em minha infância, tive 360º graus de horizonte, que se situava a mais de légua de distância. Isso mexe com a psicologia de qualquer um.

Nasci em um deserto verde, salpicado de capões de árvores e umbus solitários. Quando fui para a cidade, meu primeiro espanto foi ver que nossa casa terminava no pátio. Lá no Upamaruty, terminava no horizonte. Meu espanto só foi maior quando passei a morar em apartamento. Meu espaço terminava na janela.

Meu pai, quando foi para o "povoado" – em função de minha educação – sentiu-se como peixe fora d’água. Cheguei em Dom Pedrito numa época em que botas e bombachas eram sinônimo de “grosso lá de fora”. Mesmo assim, Canário enfrentava a cidade com suas pilchas. Que não eram para bailes, mas seus trajes costumeiros lá no campo. Quanto a mim, larguei as botas, por uma questão de conforto. Mas mantive as bombachas. Com sapatos. O que me valeu muitas piadas no colégio. Acabei traindo os meus. Optei pela calça corrida. Meu pai morreu amargurado, longe dos pagos. Jamais se adaptou à vida urbana. Sentia falta das lides do campo, das vacas e dos cavalos.

A tapera ficou lá fora. Por muitos anos a visitei, meus tios e primos ainda viviam lá. Um belo dia, um fazendeiro da região procurou-me em Porto Alegre. Precisava de uma saída para o Uruguai e me perguntou se eu não queria vender meu “campinho”. Pensei um pouco e considerei que aquele rancho fazia parte do passado, eu jamais voltaria para lá. Virei bicho da cidade e não tinha mais vocação para fazendeiro. Com dor na alma, passei-lhe a escritura. Naquele dia, morri um pouco. Mas que fazer? Não havia porque manter um pedaço de terra ao qual eu jamais voltaria.

Em 77, antes de ir para Paris, levei até lá minha companheira, para mostrar-lhe os campos onde havia nascido. Foi certamente a viagem mais dolorosa que já fiz. O Fusca atolou uma boa légua antes de chegarmos de chegarmos a meu rancho e continuamos a pé. Era inverno e um mar revolto de alhos-bravos e flechilhas agitava as coxilhas e canhadas. Subi pelo Cerro da Tala, em cujo cume havia a Toca da Onça. Era um buraco sob uma pedra onde, crianças, nos escondíamos, para tratar de nossos mistérios. De minha lembrança, me parecia uma imensa caverna. Tentei entrar na Toca da Onça. Já não cabia.

Desci o Cerro da Tala, e entrei pela sanga no Passo do Vime, onde a prima Corininha, acocorada, lavava roupas sobre o empedrado. Eu me postava do outro lado do filete de água, para espiar aquele intrigante triângulo escuro que as mulheres tinham entre as pernas. Rumei à Casa, último resquício da herdade, onde em meus dias vivera tio Ângelo. Era um precursor. Um belo dia entre os dias, decidiu que teria um rádio.

Era tido como um visionário. Sua primeira providência foi cortar o mais reto e alto dos eucaliptos, no eucaliptal do Toto Ferreira, a uma boa légua de distância. Teria uns quinze, talvez vinte metros de altura. Falquejado, foi levado por uma junta de bois até a Casa. Providência seguinte, pintá-lo de vermelho. O erguimento do poste foi uma operação mais ou menos como a construção das pirâmides, da qual participei com muito orgulho. Com quatro máquinas de alambrar, levantamos o poste e o colocamos num buraco frente ao oitão do rancho.

Era o primeiro passo para a instalação do rádio, o cata-vento. Depois chegaram as baterias, de Villa Indarte, no Uruguai. Depois, finalmente chegou o rádio, um Telefunken mastodôntico, que só meu tio sabia operar. O universo começou a entrar em nosso pequeno mundinho. A propriedade do tio Ângelo passou a ser conhecida como Estabelecimento do Pau Vermelho. Quando o sol começava a cair, a gauchada chegava de longe, para escutar rádio. Meu tio, com a solenidade de um sacerdote, girava o dial e viajava pela Argentina e Uruguai.

À medida que me aproximava da Casa, o coração batia com mais força. Tudo deserto. Sentei-me na laje onde meu tio afiava facas e gritei: “Ô de casa!” Corininha apareceu na porta e perguntou: o que o senhor deseja? Com a voz já embargada, respondi: o tio Ângelo está?

Não estava mais. Ela reconheceu-me e nos abraçamos chorando. Meu rancho ficava a uma meia légua dali. Desci pela canhada e fui revisitar nossa cacimba. Era julho e escorria pelas bordas. Debrucei-me sobre o pedregal e sorvi com gosto aquela água salobra, com sabor de infância. Minhas lágrimas se misturaram às águas da cacimba. Chorei como terneiro desmamado.

Aquela canhada, desci milhares de vezes, sempre em pânico. Ficava até tarde da noite, sob o cinamomo à frente da Casa, ouvindo dos adultos histórias de assombração. Geralmente voltava para meu rancho lá pela meia-noite, hora sinistra, sob um luar gelado que tornava a noite clara. E corria desesperado de um vulto que me perseguia e não me dava quartel, juro que não minto. Era minha sombra. Durante muitos anos, tive medo de passar à noite por um cemitério. Também, pudera, até meu cavalo ficava sestroso, quando uma alma penada montava na garupa.

Nunca mais voltei lá. Nem quero voltar. Dói muito. Se ainda sou gaúcho? Diria que não. Tive um passado de gaúcho, mas este passado ficou perdido no tempo. Bati na marca e saí a correr mundo. Vivi em cidades onde a geada é grossa de mais de palmo. Vaguei por terras onde no verão o sol não se põe e no inverno é noite o dia todo. Ouvi línguas que mais parecem doença da garganta. Estou mais longe dos cavalos e vacas que dos restaurantes da Europa. Faz 33 anos que não volto aos pagos onde nasci. A Paris ou Madri, vou todos os anos.

Nasci na fronteira seca entre Brasil e Uruguai. Coincidia que o Uruguai começava justo no horizonte, onde ficava a Linha Divisória. Nesta linha, de três em três quilômetros há um marco de concreto. De seis em seis, há um marco maior. Em frente a nosso rancho, ficava o Marco Grande dos Moreiras. Canário me erguia até o topo do marco, me fazia virar para o nascente e dizia: “Fala para os homens do Uruguai, meu filho”. Depois, me virava para o poente: “Fala agora com os homens do Brasil”. Nasci entre dois países, sempre olhando para um e outro. Daí a querer ir mais adiante foi só um passo.

Em verdade, diria que nem brasileiro sou. Nasci voltado para o Prata, me sinto melhor em Montevidéu, Buenos Aires ou Madri do que em Porto Alegre ou São Paulo. Martín Fierro foi o primeiro poema que ouvi em minha vida, recitado por meu pai nas fogueiras do galpão. Falar espanhol me proporciona mais prazer do que falar português. Foi minha língua de cuna. Mas isto pouco importa. Não há lei no mundo que obrigue quem nasceu no Brasil a sentir-se brasileiro. Minha infância foi mais platina que rio-grandense.

Infeliz do ser humano que morre igual como nasceu. Não evoluiu. A vida, as viagens, as cidades me transformaram. Virei cidadão do mundo e não consigo mais viver no deserto. Seria um tour de force dizer hoje que sou gaúcho.

Mas à minha infância, continuo fiel.

terça-feira, dezembro 07, 2010
 
COLUNISTA STALINISTA DA FOLHA
DEFENDE CRIMINOSOS NA EUROPA



Leitor me pergunta se não vou comentar os feitos do australiano Julian Assange, o proprietário do site WikiLeaks, que hoje domina as páginas da imprensa internacional. Não, não vou comentar. Todos estão comentando. Apenas diria que considero espantoso um homem relativamente jovem, de 39 anos, conseguir afrontar todas as nações do mundo. Em verdade, os jornais estão exagerando em seus noticiários. Assange, até agora, não revelou nenhum segredo vital de Estado. Apenas fofocas diplomáticas. Diplomacia é a arte da mentira e é normal que, privadamente, diplomatas digam algumas verdades.

Os méritos não são apenas de Assange, mas do soldado que lhe passou a bagatela de 250 mil documentos, Bradley Manning. No que não há nada de espantar. Quando alguém detém uma tribuna importante, as informações lhe chegam espontaneamente. Assange, hoje no cárcere, é aquele através de quem o escândalo surge. Bradley é quem o fornece. Mas causa espécie ver os Estados Unidos querendo abafar a voz de Assange e jogando ao lixo a Primeira Emenda: "O congresso não deve fazer leis a respeito de se estabelecer uma religião, ou proibir o seu livre exercício; ou diminuir a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou sobre o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações por ofensas."

Prefiro comentar o que ninguém comenta. Por exemplo, a coluna de hoje de Vladimir Safatle. Não bastasse a Folha de São Paulo ter um senador corrupto e um jornalista bolsa-ditadura entre seus colunistas, contratou agora às terças-feiras uma múmia stalinista. Isso, duas décadas depois da derrubada do Muro de Berlim. No caso, Vladimir Safatle, cujo prenome já denuncia sua estirpe. Professor no Departamento de Filosofia da USP, a universidade que introduziu o marxismo no Brasil, Vladimir não nega ao que veio. Autor de artigos confusos, nos quais é difícil perceber o que quer dizer, desta vez o jovem comunossauro foi explícito.

Os suíços aprovaram em referendo, no último domingo do mês passado com 53 por cento dos votos a favor e 47 contra, a expulsão do país, de estrangeiros condenados pela justiça. Serão expulsos da Suíça os emigrantes que tenham praticado crimes considerados graves, entre eles o assassinato, assalto à mão armada e tráfico de droga. Ficam impedidos de pisar solo helvético durante 5 a 15 anos ou 20 em caso de reincidência. Os estrangeiros foram responsáveis por 59 por cento dos homicídios em 2009. Fica também prevista a expulsão de estrangeiros que abusam da ajuda social.

Safatle toma a defesa dos criminosos e fala em nada menos que fascismo suíço. Como se fosse fascista um país que não deseja abrigar em seu território criminosos estrangeiros, em geral beneficiados pela assistência social. “A Suíça assumiu a vanguarda desse processo. Há alguns dias, ela jogou na lata de lixo o que restava de sua democracia ao aprovar, por plebiscito, uma lei de dupla pena para crimes cometidos por estrangeiros. Um imigrante que, por exemplo, assalte um banco suíço especializado em lavagem de dinheiro, terá de cumprir a pena prevista no Código Civil e, posteriormente, ser expulso do país. Ou seja, ele cumpre uma dupla pena”.

O articulista fala, capciosamente, de bancos suíços especializados em lavagem de dinheiro. Ou seja, está conferindo a assaltantes de bancos o status de fautores de justiça. E considera pena a expulsão do país. Ora, expulsão não é privação de liberdade. Não sei se Safatle se deu conta, mas está considerando punição a devolução, com passagem paga, do imigrante ao país que o viu nascer. No fundo traiu-se, ao confessar que ser expulso de um país capitalista é punição.

“Tal aberração jurídica simplesmente quebra o princípio fundamental da democracia, a saber, a isonomia diante da lei – continua o jovem comunossauro -. A noção de que todos, à exceção de inimputáveis, como as crianças e os loucos, estão submetidos às mesmas leis é a base da democracia. Mas, ao criar leis especiais para crimes de imigrantes, a Suíça quebra a isonomia entre delitos e penas e instaura um regime de discriminação legal”.

Ora, os suíços decidiram que não querem criminosos estrangeiros em seu território. As leis suíças são para os suíços. Por que se aplicariam a criminosos que não são suíços? No fundo, o antigo ódio de Marx à Europa, expresso na primeira fase do Manifesto: um fantasma ronda a Europa, o fantasma do comunismo. Como bom comunista que odeia a democracia européia, Safatle não se furtará a fazer a defesa do Islã:

“Os helvéticos já tinham colocado um pé fora da democracia ao aprovarem, novamente por plebiscito, uma lei que proibia a construção de minaretes em mesquitas muçulmanas. Segundo eles, tais minaretes representavam o desejo expansionista e belicista do islã. Cartazes associando minaretes a mísseis foram espalhados pelos Alpes. Com isso, eles quebravam a idéia de que todas as religiões devem ter o mesmo tipo de tratamento pelo Estado (e, se for para falar em belicismo religioso, nenhuma religião passa no teste). Talvez o próximo passo seja a simples interdição para a construção de mesquitas. Afinal, para alguns, muçulmano bom é muçulmano invisível”.

O problema não é a construção de mesquitas. As mesquitas em verdade são madrassas, centros de doutrinamento islâmico. Os muçulmanos têm uma visão teocrática do Estado e pretendem, em uma Europa leiga, que os Estados se submetam a dogmas religiosos. Os árabes querem legislar em territórios que não os seus. Se um dia a Europa proibir a construção de mesquitas, estará apenas exercendo o direito de legítima defesa ante o totalitarismo islâmico. O mundo muçulmano não aceita igrejas católicas em sua geografia e Safatle jamais os acusaria de colocarem o pé fora da democracia. Por uma razão elementar: democracia é palavra proibida no mundo árabe.

“Aqueles que realmente se preocupam com a democracia talvez devessem voltar seus olhos para Suíça, Holanda, Itália, Dinamarca. De lá vem a verdadeira ameaça” – escreve o jovem comunossauro. Fiel às suas origens marxistas, parafraseia o mestre: “Se lembrarmos dele, talvez sejamos obrigados a dizer que um fantasma assombra a Europa: o fantasma de uma nova forma de fascismo ordinário”.

Fascista é a Europa, que procura defender-se de totalitarismos. Onde terá pedido asilo a democracia? Certamente na China, Cuba ou Coréia do Norte.

segunda-feira, dezembro 06, 2010
 
SÃO PAULO QUER LEGALIZAR
PROFISSÃO DE ASSALTANTE



Há dois ou três dias falei da vocação deste país nosso para a criação de profissões inúteis. O Brasil é um dos raros países que conheço onde existem ascensoristas. Como se quem usa um elevador fosse incapaz de apertar um botão. Onde existem também cobradores nos ônibus. Pior ainda: quando se introduziram catracas nos ônibus de São Paulo, os sindicatos protestaram e mantiveram os cobradores. Hoje, você tem catracas e mais um cobrador, que olha você colocar seu tíquete na catraca. Ou aproveita seu ócio para dormir.

Em setembro passado, comentei que, por R$ 51 mensais, um sindicato em São Paulo oferece "segurança jurídica", uniformes, cadastro e registro profissional em carteira de trabalho para flanelinhas da capital. No vácuo da ausência de regras municipais, a entidade, que abriu as portas ao público em agosto, tem como respaldo uma lei federal de 1975. A promessa é de que o associado nunca será preso se apresentar o registro de "guardador e lavador de veículos automotores".

Ou seja: a extorsão está legalizada em São Paulo. Por 51 reais, está garantido a qualquer vagabundo extorquir seu dinheiro. Caso você não pague, terá o carro riscado ou os pneus furados. São ameaças que não me atingem. Não tenho carro, nunca tive. Primeiro porque não gosto de carro. Segundo, porque com carro não se vai longe. Um outro motivo são os flanelinhas. Às vezes, de carona com algum amigo, somos atacados por um desses extortores. Minha vontade é de enfiar-lhe uma bala na testa. Ainda bem que tampouco tenho revólver.

Se um sindicato dava suporte legal à extorsão, agora é a Prefeitura de São Paulo e a Polícia Militar que planejam legalizar de vez a extorsão. Com o pretexto de fazer um projeto piloto para combater flanelinhas ilegais que atuam na cidade, pretende-se agora legalizar o assalto perpetrado por marginais contra qualquer pessoa que tenha carro. Cadastramento na Secretaria Municipal do Trabalho, uso de uniformes oficiais e fiscalização específica por agentes das subprefeituras, PM e Guarda Civil Metropolitana são algumas das ações cogitadas no plano. As possibilidades foram discutidas no dia 25 do mês passado, em reunião com o Ministério Público Estadual (MPE).

O local onde o projeto será testado - um "ponto crítico" de atuação de flanelinhas - deve ser definido ainda neste mês. Os pontos cogitados até aqui são áreas conhecidas pela presença de "guardadores de carros" na cidade: vias próximas da Rua 25 de Março, no centro, arredores do Anhembi, na zona norte, e o Estádio do Pacaembu, na zona oeste. Nesses locais, aponta o MPE, são cobrados entre R$ 5 e R$ 20 para deixar o carro na rua. Em julho, o MPE instaurou inquérito exigindo enfrentamento do problema por prefeitura e PM.

Flanelinha é assaltante. Que país é este em que se regulamenta a profissão de assaltante? Onde há um sindicato de assaltantes? Não tenho carro. Mas me indigno pelos que têm. Você paga à Prefeitura para estacionar e além disso tem de pagar ao vagabundo para não ter o carro danificado. A lei confere ao assaltante o direito de assaltar. Pior que tudo, os proprietários de carros aceitam passivamente a extorsão, como se assaltar fosse direito líquido e certo de quem quer que se habilite ao ofício.

Se sem uniforme os marginais já achacavam os proprietários de veículos, imagine agora com a autoridade que confere um uniforme. Há alguns anos, em Curitiba, se pretendeu regulamentar a profissão de mendigo. Cada pedinte teria uma carteirinha que lhe daria direito a esmolar. Creio que a brilhante idéia não vingou. O sindicato que dá suporte legal aos assaltantes estima que a capital tenha 15 mil flanelinhas.

No que depender da Prefeitura, nos próximos dias teremos 15 mil marginais com o direito de assaltar garantido por lei.

domingo, dezembro 05, 2010
 
UMA FILOSOFIA DOS
SENTIMENTOS DE
INFERIORIDADE*

Ernesto Sábato



Em um ensaio publicado em 1953, afirmei que o pensamento e a literatura de Sartre talvez derivassem de sua feiúra. A autobiografia, publicada muitos anos depois, confirma aquela afirmação. Foi uma criança terrivelmente feia, ao ponto de descrever-se a si mesmo como um "sapo" naquelas páginas sofridas. E mesmo imaginando tudo que nesta crença pode existir de exageração masoquista, esta era sua crença; e nestes casos, como se sabe, basta a convicção íntima que tem aquele que sofre.

Ignoro se escreveu uma psicologia dos sistemas filosóficos. Mas, no que diz respeito a Sartre, me parece que o olhar dos outros é o fato do qual não só é possível derivar sua obra de ficção como também seu pensamento. "Tenho vergonha, portanto existo", é o aforismo que sintetiza sua obras. "Os outros" nos contemplam, nos observam, nos dominam com seu olhar: não é esta a concepção de um homem obcecado com seu corpo, angustiado por sentimentos de inferioridade? Em O Muro, Eróstrato anseia por ver os homens de cima, onipotente; Loulou quer ser invisível, observar sua amiga sem que ela possa vê-la; Lucien se compraz em imaginar-se invisível, e um de seus prazeres é espiar pelo buraco de uma fechadura. Em Os Caminhos da Liberdade, Daniel imagina o inferno como um olhar que há de penetrá-lo todo. E em Huis Clos o inferno é simplesmente o olhar de Inés, um olhar que, para o cúmulo, será sofrido por toda a eternidade, em um quarto fechado onde não possíveis nem o sonho nem o esquecimento.

Sim, como dizia Ibsen, os personagens saem do coração do autor. Como não supor que este obsessivo sentimento é a projeção do próprio e obsessivo sentimento que imaginou estas ficções? Isto é corroborado por L'Être et le Néant, em cujas páginas aparece significativamente reiterado o tema da invisibilidade e do sobrevôo. Como suas próprias projeções, Sartre padece do que poderia chamar-se de "complexo de Acteón". E se levarmos em conta a importância que tem a liberdade de escolha em sua filosofia, devemos considerar como puro acaso que sua própria mulher se chame Simone de Beauvoir?

Sendo nosso corpo o que provoca e permite o olhar dos demais, o corpo tem em Sartre uma importância metafísica que não havia tido em nenhum sistema precedente. Em sua obra de ficção, o que diz respeito ao corpo e suas imundícies ocupa um lugar tão preponderante que sua narrativa mais profunda se intitula A Náusea. Todos seus personagens vivem obcecados com a carne. "Porque temos um corpo?", perguntam-se Loulou e Lucien; Ibbieta sentia a "a impressão de estar para sempre unida a um enorme verme"; Mathieu sente seu corpo como "uma grande imundície".

Naquele ensaio de 1953 pensei poder estabelecer um vínculo entre Sartre e Sócrates, um vínculo revelador a respeito de seu pensamento e de seu sentido da existência. Os dois são feios, os dois odeiam o corpo, os dois desejam uma ordem espiritual e perfeita. Sentem repugnância pelo mole e pelo viscoso, que é a forma mais grosseiramente humana do homem e do contingente, já que nem sequer possui essa pureza do mineral ou do cristal. Deve espantar que Sócrates tenha inventado a doutrina platônica? As criações na arte e no pensamento são em geral como os sonhos: atos antagônicos. E o pensamento platônico não poderia ser inventado por raça de arcanjos incorpóreos, mas por homens apaixonados como os gregos, e em particular por um indivíduo que, como afirmou um estrangeiro ao conhecê-lo, tinha "todos os vícios pintados em seu rosto".

Para este filósofo, como mais de vinte séculos mais tarde ocorrerá com Sartre, a encarnação é a queda, o mal original. E tanto porque a visão é o sentido mais sutil, o mais próximo do espírito puro, como pelo perverso poder que exerce sobre eles, os dois filósofos darão a este sentido prioridade filosófica. E assim, desde aquele grego inimigo do corpóreo, a filosofia se tornará pura contemplação, desdenhando a carne e o sangue.. Será preciso esperar até o existencialismo para que estes atributos do homem concreto entrem na meditação filosófica, embora seja na forma contraditória de Sartre, que, se conscientemente foi um existencialista, psicanaliticamente foi sempre um platônico, um racionalista.

Mesmo assim é revelador que Sartre tenha tentado provar alguma de suas idéias na figura de Baudelaire, personalidade que o subjuga ao ponto de inspirar-lhe duas de suas características: Daniel, o jovem Philippe. Se percorrermos os escritos autobiográficos do poeta, encontraremos, além do propósito de escrever um romance metafísico, outros traços que prefiguram Sartre: o ódio à natureza viva, o culto à esterilidade, a obsessão por um universo gelado ou cristalino, o platonismo patológico. Em Baudelaire há o mesmo desejo de pureza que em muitos outros pecadores da carne que se sentem culpados, o mesmo ódio diurno ao carnal que é o exato reverso de sua debilidade noturna. E como a mulher é o terrestre por excelência, o úmido e sujo por antonomásia, o platonismo aparece sempre vinculado a uma fobia pelo feminino (do mesmo modo que o existencialismo, e em geral o romantismo, é a revolta dos elementos femininos da humanidade.

Como o próprio Baudelaire, Roquentin sente asco ante a contingência do mundo orgânico e anseia por um universo límpido, o universo que de modo paradigmático é o da música e da geometria. Almeja o negro que em meio à imperfeição e à fealdade, no infecto quarto de arranha-céus em Nova York "se salva" criando uma melodia que pertencerá para sempre ao orbe eterno e absoluto. Parece-me igualmente digno de ser pensado que Pascal, antecessor de Sartre em sua atitude jansenista, talvez confuso adolescente em busca da pureza, encontrará um {transitório} paraíso nas matemáticas.

O Pascal maduro dirá depois que somos galés acorrentados à mesma galera, à espera da morte. Se desta idéia se retira a esperança em Deus, o que resta se parece bastante com o pensamento de Sartre. Em suma, com o sentimento de inferioridade dos feios, Sartre concede ao olhar dos outros um poder quase sobrenatural de petrificar-nos e dominar-nos; porque o mundo das coisas é o mundo do determinismo e coisificar um homem é arrebatar-lhe sua liberdade. O ser humano resulta assim em uma ambígua e dramática luta entre a determinação do universo físico e a liberdade de consciência.

Deste fato básico derivam uma série de conseqüências que manifestam o valor ontológico da vergonha, o pudor, as vestes e a simulação. Sinto vergonha porque me observam e isso prova não só minha própria existência como a existência de outros seres como eu. A convivência resulta desta forma em uma luta mortal entre consciências igualmente livres, cada uma delas tentando petrificar a adversária. Ao vestir-nos, ao dissimular, ao mascarar-nos, tentamos despistar o inimigo. A escravidão alcança sua máxima e mais degradante culminância no ato sexual, onde o corpo nu está exposto sem defesa alguma e no qual a palavra "posse" adquire um sentido filosófico, mais além do puramente físico.

* Três Aproximações à Literatura de Nosso Tempo (tradução de Janer Cristaldo)

sábado, dezembro 04, 2010
 
JORNALISTA ANALFABETO ACUSA
ATEUS PELOS MALES DO MUNDO



Um apresentador d e televisão, truculento e analfabeto, o tal de José Luiz Datena, andou afirmando em julho passado que crime é coisa de pessoas que não acreditam em Deus. “Porque o sujeito que é ateu, na minha modesta opinião, não tem limites, é por isso que a gente vê esses crimes aí”. E continuou em seu discurso sem nexo: “É por isso que o mundo está essa porcaria. Guerra, peste, fome e tudo mais, entendeu? São os caras do mal. Se bem que tem ateu que não é do mal, mas, é ..., o sujeito que não respeita os limites de Deus, é porque não sei, não respeita limite nenhum”.

O pronunciamento do bronco vem agora à tona porque o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação civil pública obrigando a TV Bandeirantes exibir uma mensagem de retratação de declarações ofensivas aos ateus durante seu programa.

Para o Procurador Regional dos Direitos do Cidadão Jefferson Aparecido Dias, autor da ação, ao veicular as declarações preconceituosas contra pessoas que não compartilham o mesmo modo de pensar do apresentador, a emissora descumpriu a finalidade educativa e informativa, com respeito aos valores éticos e sociais da pessoa, prestou um desserviço para a comunicação social, uma vez que encoraja a atuação de grupos radicais de perseguição de minorias, podendo, inclusive, aumentar a intolerância e a violência contra os ateus.

“Evidentemente, houve atitudes extremamente preconceituosas uma vez que as declarações do apresentador e do repórter ofenderam a honra e a imagem das pessoas atéias. O apresentador e o repórter ironizaram, inferiorizaram, imputaram crimes, 'responsabilizaram' os ateus por todas as 'desgraças do mundo'”, afirma o procurador.

O procurador revelou-se tão analfabeto quanto o estúpido apresentador. Conhecesse um pouco de história da literatura, teria de processar Dostoievski. E também Sartre, que distorceu o pensamento de Dostoievski. Mais a novel presidenta, que participa do mesmo analfabetismo.

Já comentei, comento de novo. No início deste ano, pretendendo posar de intelectual, Dilma Rousseff, ao falar sobre religião, mencionou os romances de Fiódor Dostoiévski, permeados do conceito de que, "se Deus não existe, tudo é permitido".

A ex-terrorista dificilmente terá lido Dostoievski. Esta frase, atribuída ao escritor russo, é mais uma daquelas bobagens recorrentes – semelhante àquela outra, de que Guernica, de Picasso, tem algo a ver com o suposto bombardeio da cidade basca – que são repetidas ad nauseam por jornalistas. Dona Dilma, na verdade, ouviu o galo cantar, mas não sabe onde.

Os católicos ocidentais adoram empunhar esta deturpação do pensamento do escritor católico ortodoxo. Querem colocar Deus como fundamento de toda ética, como se não pudesse existir ética sem a crença em Deus. Esta frase estaria em Os Irmãos Karamazov. Ora, Dostoievski jamais escreveu isto. Foi Sartre quem lhe atribuiu esta frase. Quem a menciona são geralmente pessoas que nunca leram Dostoievski e o citam de ouvir falar. Há algum tempo atrás, me dei ao trabalho de reler Os Irmãos Karamazov para ver se Dostoievski havia realmente escrito tal bobagem. Não encontrei. O mais próximo que existe é isto:

- Ivan Fiodorovitch ajuntou entre parênteses que lá está toda a lei natural, de maneira que se você destrói no homem a fé na sua imortalidade, não somente o amor nele perecerá, mas também a força de continuar a vida no mundo. Mais ainda, não existiria nada mais que fosse imoral; tudo será autorizado, mesmo a antropofagia. E não é tudo: ele acaba afirmando que para todo indivíduo que não crê em Deus nem em sua própria imortalidade, a lei moral da natureza deveria imediamente tornar-se o inverso absoluto da precedente lei religiosa; que o egoísmo, mesmo levado ao crime, deveria não somente ser autorizado, mas reconhecido como uma solução necessária, a mais razoável e quase a mais nobre. Após um tal paradoxo, julgai, senhores, julgai o que nosso caro e excêntrico Ivan Fiodorovitch julga bom proclamar e suas eventuais intenções.

Mais adiante, Mitia se pergunta:

- Mas então, que se tornaria o homem, sem Deus e a imortalidade? Tudo é permitido e, conseqüentemente, tudo é lícito? (...) Que fazer, se Deus não existe, se Rakitine tem razão ao pretender que é uma idéia forjada pela humanidade? Neste caso, o homem seria o rei da terra, do universo. Muito bem! Mas como ele seria virtuoso sem Deus?

Ou seja, a pergunta não é exatamente sobre Deus, mas sobre Deus e a imortalidade. Imortalidade significa punições e recompensas. Os teístas querem ver nos personagens de Dostoievski a impossibilidade de uma ética sem Deus. No entanto, o que o autor empunha é a promessa de céu... ou de inferno. O fundamento de sua moral - ou da de Ivan Karamazov, como quisermos - não é exatamente Deus, mas a esperança ou o medo.

O tal de Datena, como a novel presidenta, também ouviu o galo cantar, mas tampouco sabe onde. O promotor muito menos. Os ateus, que certamente estão por trás de tal ação, idem. Qualquer dia ainda pedem a proibição de Os Irmãos Karamazov. Há ateus que estão transformando o ateísmo em religião e se pretendem discriminados. Mais um pouco e pedirão cotas na universidade.

Ateus, se Datena e dona Dilma não sabem, também têm ética. Mais ainda, nossa ética é gratuita e não depende de recompensas no Além. O crente, ao manter um comportamento ético, busca o conforto na imortalidade. Nós, que não cremos nessas patacoadas, não esperamos o paraíso por sermos honestos nem tememos o inferno por não sermos honestos. Somos éticos porque julgamos ser esta a melhor fórmula de conviver com nossos semelhantes.

O analfabetismo, ao que tudo indica, invadiu não apenas o jornalismo, mas também o universo jurídico.

sexta-feira, dezembro 03, 2010
 
PERGUNTINHA


Em abril de 1964 Sartre renegou sua obra de ficção, chegando a dizer em uma reportagem que um romance como A Náusea não tem sentido algum quando em alguma parte do mundo há uma criança morrendo de fome. Embora tenha admitido que segue pensando que os homens são animais sinistros, defendeu a idéia de que seus males metafísicos devem ser relegados a um segundo lugar, como um luxo e uma traição.

Em Três Aproximações à Literatura de Nosso Tempo – que tive a honra de traduzir – Ernesto Sábato protestou: “Estas declarações desencadearam uma polêmica que dura até hoje. Apesar de compartilhar sua preocupação com a miséria e a injustiça social, me nego absolutamente a aceitar esta afirmação peremptória que, ao ser aplicada coerentemente, não só invalidaria um romance metafísico como também toda a literatura e mesmo a arte em sua integridade. Já que nem a música de Bach, nem a pintura de Van Gogh, nem a poesia de Rilke são úteis para salvar a vida de uma única criatura abandonada. A arte tem outras possibilidades e outras funções”.

O manifesto sartriano tem uma versão nova em nossos dias. O escritor Paulo Lins, ex-favelado e autor do romance Cidade de Deus, confortavelmente sentado em um sofá de um luxuoso hotel em Guadalajara, México, reflete sobre os avatares de sua ascensão social:

“No início, foi muito difícil. Sentia culpa burguesa e pensava: eu não posso ficar em lugares tão luxuosos, porque há crianças passando fome, sem escola, na América do Sul e também aqui no México. Agora, me acostumei, mas continuo me sentindo mal porque o bom não é para todos. Por isso há guerra. Só há guerra porque há fome".

As famosas criancinhas! É o que dá quando um analfabeto é promovido a intelectual. Passa a deitar falação sobre o homem e o mundo e acaba proferindo solenes bobagens. Nações ricas declararam guerra a nações também ricas e obviamente não eram movidas pela fome. Seja como for, nem Sartre deixou de fazer literatura, nem Paulo Lins deixará de freqüentar hotéis de luxo. Bem-estar vicia. Culpa burguesa é como gripe, passa ligeirinho.

O escritor carioca aproveita sua tribuna em Guadalajara para fazer a defesa da bandidagem: "Não era necessário matar 37 pessoas. A polícia brasileira tem o hábito, a vocação, de matar gente pobre. Ela faz isso há muitos anos, sobretudo negros".

Como se traficante fosse gente pobre. Como se um policial que sobe um morro para enfrentar traficantes de metralhadora em punho tivesse de se deixar matar, para não matar os coitadinhos. Em verdade, a polícia matou muito poucos. Mais profilático seria se matasse mais.

O festival de bobagens não pára aí: “Muito mais que o narcotráfico, esta violência está ligada ao racismo, ao abandono, à discriminação, à desigualdade social e, acima de tudo, à corrupção, que permite a chegada de armas da Europa".

Ora, que me conste não são os europeus que fabricam Uzis e Kalashnikovs. Ligar a droga ao racismo é um despautério, afinal não é só negro que trafica. Tampouco é a desigualdade social ou discriminação que provocam a violência. Violência existe em todos os estratos da sociedade, mesmo onde não há desigualdade nem discriminação. Ou Paulo Lins pretenderá que eram discriminados os bicheiros que patrocinavam escolas de sambas e eram recebidos com todas as honras nos camarotes oficiais dessas escolas?

Como bobagem puxa bobagem, o escritor continua: “É hora de capturar esses bandidos. A população apóia a invasão. Se os criminosos respeitassem a população como antes, a população não a apoiaria”. Essa é ótima. Criminosos respeitando a população merecem todo respeito. Mas criminosos que respeitam a população serão criminosos? Pelo jeito, não. Provavelmente, são beneméritos fautores de justiça social.

As operações policial-militares no Rio não passam de uma farsa, incensada pela imprensa como um gesto de salvação nacional. Foram tomadas duas favelas no Rio. Ora, no Rio há 1006 favelas. Faltam só 1004. Segundo reportagem da Folha, enquanto as Forças Armadas controlam o Complexo do Alemão, na Rocinha o tráfico rola solto e os traficantes desfilam serenamente de fuzis em punho. Isso sem falar nas favelas de São Paulo, Porto Alegre, Florianópolis. O tráfico será controlado – se for, o que é improvável – só no Rio? A que se deve tal privilégio? À Copa de 2014?

A polícia está atrás dos agentes do tráfico. Os financiadores permanecem – e permanecerão – impunes. O traficante apenas atende a uma demanda. Quem demanda é o consumidor. Ora, consumidor algum irá para a cadeia. Também, pudera! Meio Rio de Janeiro iria em cana.

Fica a perguntinha: com a eventual neutralização dos atuais traficantes, quem irá abastecer o generoso mercado carioca de drogados?

quinta-feira, dezembro 02, 2010
 
ESPIRITISMO E FALTA DE RESPEITO


Sou ateu, mas respeito todas as religiões. Quer dizer, nem todas. Não dá para respeitar essas seitas caça-níqueis lideradas por Edir Macedo, R. R. Soares et caterva. Se bem que a Santa Madre Igreja Católica Apostólica também vive de catar níqueis. Nada tenho contra quem crê em Deus, seja qual deus for. Claro que me permito críticas às religiões, afinal vivemos no Ocidente, onde é livre a expressão de pensamento. Não acredito em Deus, mas jamais neguei - nem afirmei – sua existência.

Várias vezes fanáticos me enfrentaram com as cinco vias de Tomás de Aquino: o primeiro motor imóvel, a causa primeira ou causa eficiente, o ser necessário e o ser contingente, o ser perfeito e causa da perfeição dos demais, a inteligência ordenadora. Pura baboseira. O aquinata quer deduzir a existência de um ser a partir da lógica. Ora, lógica é um sistema axiomático. Prova apenas aquilo que se deduz dos axiomas que estabeleceu.

A primeira prova, a do motor imóvel, a mais brandida, é de uma precariedade atroz. Nossos sentidos atestam, com toda a certeza, que neste mundo algumas coisas se movem. Tudo o que se move é movido por alguém, é impossível uma cadeia infinita de motores provocando o movimento dos movidos, pois do contrário nunca se chegaria ao movimento presente, logo há que ter um primeiro motor que deu início ao movimento existente e que por ninguém foi movido, e um tal ser todos entendem: é Deus.

Ok! E quem move Deus? É espantoso que tal argumento, que se sustenta no nada, tenha atravessado os séculos e até hoje seja empunhado por pessoas que adoram crer em algo que não entendem. Seguidamente crentes querem puxar-me para essa discussão. Não caio na armadilha. Discutir a existência ou não de Deus é pura perda de tempo, não leva a lugar nenhum. Que as pessoas creiam em Deus, problema de cada um. O irritante é quando pretendem que os demais partilhem de suas fés.

Neste sentido, admiro os judeus. Não fazem proselitismo, não pretendem expandir suas crenças. Judeu é quem é filho de mãe judia e estamos conversados. (Quanto à paternidade, pelo jeito é questão de fé). Verdade que você pode tornar-se judeu, se converter. Mas rabino algum está interessado em conversões.

Nada pior que proselitismo. Exceto do espiritismo, não tenho recebido assédio de nenhuma religião. Tenho sido bombardeado continuamente por spam, com mensagens de Chico Xavier, Divaldo Franco e vigaristas menores. O espiritismo é uma doutrina tosca, que se apossou dos Evangelhos e mesclou-os a teorias supostamente científicas. Mas a estupidez é universal. Assim como existem juízes roqueiros, há juízes espíritas, médicos espíritas e – pasmem! – professores universitários espíritas. Pelo jeito, o ensino universitário de nada serve ante a força de superstições.

Chico Xavier, o médium mineiro, é um seguidor de Hippolyte Léon Denizard Rivail, mais conhecido como Allan Kardec (1804 – 1869), que misturou evangelhos com a teoria do magnetismo animal do austríaco Franz Anton Mesmer, com mais algumas pitadas de budismo, no caso, a reencarnação. Mesmer era médico, estudava teologia e instituiu como terapia a picaretagem da imposição das mãos. Criação nada original, afinal já está nos Evangelhos.

Se voltarmos um pouco atrás, encontraremos a prática no Egito, no templo da deusa Isis, onde multidões buscavam o alívio dos sofrimentos junto aos sacerdotes, que lhes aplicavam a imposição das mãos. Curiosamente, Kardec, que é francês e está sepultado no Père Lachaise, em Paris, é praticamente desconhecido em seu país. Sua tumba está sempre cheia de flores, colocadas geralmente por brasileiros. Pergunte a um francês médio quem é Kardec. Ele não saberá responder.

Na França, a nova religião não vingou. Exportada para o Terceiro Mundo, adaptou-se muito bem no Brasil – maior nação espírita do mundo – e nas Filipinas. Havia no país uma certa elite que queria desvincular-se do catolicismo de Roma, mas não queria associar-se às religiões animistas africanas. A ficção criada por Kardec, cidadão francês, mais as teorias oretensamente científicas do austríaco Mesmer, vinham a calhar. Assim se implanta no Brasil a nova crença.

Meu primeiro contato com espíritas ocorreu quando minha mulher morreu. Eles sempre aparecem quando alguém morre. Minha mulher morrera há mais de mês e eu conversava com amigos comuns. Em dado momento, uma moça atalhou: "Eu conversei ontem com ela". Nessas ocasiões, tomo uma atitude de crédulo. Se a moça afirmava com tanta convicção ter conversado com minha mulher, não seria eu quem iria contestá-la. Perguntei apenas o que ela havia dito. Ela deixou uma mensagem, disse a moça: "seja feliz".

O que me lembrou a aparição de Maria aos três pastores em Fátima. Quando interrogada sobre quem era, teria dito a Virgem: "Eu sou a Nossa Senhora". Ora, sendo Maria mais que santa, semideusa, é de supor-se que não tivesse domínio tão precário do português. Se se dirigia aos três pastores, o correto seria: "Eu sou a Vossa Senhora". Por um descuido sintático do narrador, o milagre ficou prejudicado.

Da mesma forma, a mensagem de minha companheira. Éramos gaúchos. Depois de passarmos por Curitiba e São Paulo, ela passou a usar o você, mas apenas ao tratar com curitibanos e paulistanos. Jamais me trataria por você. Como a comunicação de Maria, a de minha mulher também ficou sob suspeita. Mas não neguei o testemunho da moça. Podes falar de novo com ela? - perguntei. Claro - me respondeu. Pedi-lhe então que, quando voltasse a falar com ela, pedisse o código do celular, que eu havia ficado sem.

A moça entrou em pane, achava que não ia dar, códigos são coisas confidenciais, começou a perguntar que horas são e logo deu as de Vila Diogo. Contei a história mais tarde a professores universitários e um deles, também espírita, prometeu-me perguntar às instâncias do Além sobre o código do celular. Mas me alertou que o médium teria de ser muito poderoso para descobri-lo. Bem entendido, nunca mais me falou no assunto. Nem eu precisava do código, afinal sempre o tive e queria apenas divertir-me com a capacidade comunicativa dos tais de médiuns.

Pois estes senhores estão inundando meu correio com lixo metafísico, sempre falando de paz, amor e respeito ao próximo. Reclamei. Um cretino qualquer me recomendou bloquear o remetente. Não adianta. Bloqueio e o lixo, que parece ter poderes sobrenaturais, volta. Para os espíritas, ao que tudo indica, invadir a privacidade alheia não é falta de respeito ao próximo.

Confesso não entender estes fanáticos. Não convencem ninguém com suas vigarices e acabam irritando as pessoas. Respeito todas as religiões, dizia. Mas, por favor, senhores crentes, não invadam meu correio.

 
UM FILME RIDÍCULO


Vi hoje, na madrugada, Avatar, o blockbuster do ano. Raras vezes vi filme tão ridículo. A empulhação ianque, no entanto, atraiu milhões às salas de cinema.

quarta-feira, dezembro 01, 2010
 
PERSONAL SEX TRAINER,
A MAIS NOVA VIGARICE



Essa agora! Leio na Folha de São Paulo que existe no país uma nova e promissora profissão, a de personal sex trainer. Ou seja, uma profissional que, por módicos 500 reais, dá orientação por uma hora e meia ao casal, para fazer aquilo que se nasce sabendo. O preço da - como direi? – consultoria, pode chegar aos 2500 reais. Uma viagem de ida-e-volta a Paris.

Antes tínhamos sexólogos, vigaristas ao melhor estilo de astrólogos e psicanalistas, que pretendiam ensiná-lo como portar-se na cama. Agora, ao que tudo indica, temos um atendimento mais personalizado. Não sei bem como age a sex trainer, mas suponho que um bom atendimento só pode ser feito ao lado da cama, no momento dos acontecimentos. Agora você tira daqui e põe ali. Me passa um pouquinho isso aí, vou mostrar como se faz. Agora, ponha o dedinho aqui. Mais rápido, por favor. Não concebo de outra forma o exercício da novel profissão. Pelo que li, é mais uma moda que importamos dos States, o tal de sex coaching. Mais um pouco, e teremos sex trainer para cães e gatos. Cachorro também é gente.

Algo que nunca entendi foi a educação sexual nas escolas. Que se ensine a fisiologia do sexo, tudo bem, pouco conhecemos sobre nossos órgãos quando adolescentes. Prevenção contra doenças venéreas, ótimo. Daí a pretender ensinar o know how, me parece uma solene idiotice. Sexo é bom quando o descobrimos sem ter a mínima idéia de como seja, quando mergulhamos no desconhecido com medo e excitação. O grande sexólogo de minha geração foi Carlos Zéfiro, o dos catecismos. Os livrinhos suecos e a policromia roubaram seu mercado, mas suas revistas em quadrinhos foram os guias sexuais dos anos 50 e 60. Havia também A Nossa Vida Sexual, do Fritz Kahn, livro considerado obsceno na época, e que hoje faria morrer de rir um adolescente.

Outro “instrutor” daqueles dias foi Henry Miller. Livros como Trópico de Câncer e Trópico de Capricórnio faziam furor entre adolescentes. Já Primavera Negra, onde nada havia de sexo, pouco vendeu. Os Livros em Minha Vida, um belo ensaio sobre leituras, sequer foi traduzido no Brasil. Miller atribuía seu êxito literário à Segunda Guerra. Os soldados se muniam de seus livros quando iam para o front. Verdade que Miller não vendia apenas pelo erotismo. Além de erotismo, trazia o cotidiano de Paris. E sexo em Paris é sempre mais interessante que sexo em Dom Pedrito.

Sexo é coisa que se aprende sozinho. Por tentativa e erro. Basta um pouco de imaginação para se chegar a grandes achados. Dá prazer? Vamos lá. Na cama só não vale dedo no olho e mandar o parceiro para o hospital.

O repórter da Folha nos fala de uma sex trainer que foi visitar um casal, portando algemas e vibradores. Vibrador até que entendo, é infatigável e vem do fim dos tempos. Do Alto Paleolítico, segundo arqueólogos. Os dildos foram muito populares nas antigas Roma e Grécia. Mas algemas? Que me desculpem os adeptos da prática. Alguém precisa ser muito doente – ou muito idiota – para usar algemas na relação sexual. Não vejo nada de erótico em um parceiro subjugado. Tais práticas, a meu ver, são modas vendidas pelo cinema e televisão. O espectador passa a acreditar que aquilo é excitante. E acaba se excitando. Se lhe passarem a idéia de que uma banana é algo erótico, vai se excitar até em fruteiras.

Certa noite, zapeando pela TV a cabo, vi no GNT reportagem sobre uma estranha modalidade sexual. Modalidade ianque, pra variar. Homens e mulheres, devidamente encilhados com selins e estribos, eram cavalgados por seus parceiros. Pode isso excitar alguém? A meu ver, o filme era publicidade disfarçada de artigos de couro. Compre couro e seja sexualmente feliz. Vestes de couro sempre excitam, sei lá porquê. Mas selins? Não entendi.

A nova profissão está provocando ciumeira no mercado. Segundo a reportagem, o papel de treinadores sexuais é questionado por sexólogos, em especial quando envolve aconselhamento de casais. "Elas dão conselhos sem ter nenhuma formação", critica Maria Luiza Macedo de Araújo, presidente da Sociedade Brasileira de Estudos em Sexualidade Humana. A moça está dizendo que, para entender de sexo, é necessário formação. Preferentemente superior. Giacomo Casanova deve estar rindo em sua tumba.

"Nós lidamos com coisas muito mais complexas do que isso de "beija aqui, põe a mão ali", conselhos que qualquer amigo de bar dá", continua Maria Luiza. Com a diferença que o amigo de bar não cobra nada. E por isso sua orientação não é valorizada. As pessoas não valorizam o que recebem de graça. Apenas o que pagam.

Tenho uma amiga que faz psicanálise e não dá valor algum ao que digo. Mas leva em conta o que lhe diz a analista, afinal ela a paga para isso. Mas atenção: a analista nada lhe diz. “Quanto menos ela fala, mais gosto da análise”. Ou seja, as pessoas estão pagando para serem ouvidas. Propus-lhe então que, quando nos encontrássemos, eu permaneceria em silêncio e ela pagava pelo menos o almoço. Não topou. Não tenho formação na área. Uma coisa é o silêncio do analista. Silêncio de leigo é o mesmo, mas não vale nada.

Segundo a psiquiatra Carmita Abdo, do Programa de Estudos em Sexualidade do Hospital das Clínicas, "o trabalho do personal pode ser interessante para casais que têm muita falta de percepção deles mesmos, mas se o problema é uma disfunção sexual ou um conflito psicológico, daí só o terapeuta é que pode resolver". É outra que está preocupada com reserva de mercado. Mais um pouco e a guilda do sexo exigirá formação superior para as consultorias eróticas.

O que me lembra uma colunista de auto-ajuda da Veja, Betty Milan. Sua coluna é feita de respostas a cartas obviamente forjadas, já que todos os missivistas têm o mesmo estilo. Ao relatarem seus problemas sexuais, invariavelmente recebem uma só resposta: procure um terapeuta. O que nos leva a uma pergunta: como conseguiu a humanidade sobreviver às épocas em que não existiam terapeutas, nem mesmo sex trainers?

O Brasil é pródigo na criação de profissões inúteis. Somos um dos raros países do mundo onde existem ascensoristas. Como se quem toma um elevador não soubesse apertar um botão. Temos agora profissionais para nos ensinarem – mediante régio pagamento, é claro – a fazer o que nascemos sabendo fazer.