¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, novembro 30, 2011
 
DOIS EMBUSTES QUE SÓ
ENGANAM PESSOAS CULTAS



Comentando a crônica de ontem, um leitor achou minha análise um pouco preconceituosa: “tirou base por sua vida, lembre sempre que existem outros no mundo. Vivemos sim, num mundo de conflitos, certamente sem respostas. E o capitalismo a qual Adam se refere não é o econômico, e sim o de imposições, de relações triviais (a exemplo da internet, que massificou os relacionamentos). Um grande abraço!”

Que vivemos em um mundo de conflitos, disto não tenho dúvida alguma. Só não vejo porque "prazer profundo, com troca entre pessoas" seja difícil, cheio de conflitos. Vivo bem, tenho meus prazeres, tanto os profundos, como diz o psicanalista, como também outros nem tão profundos. Há décadas, não vivo conflito algum.

Mas o psicanalista precisa encontrar conflitos, mesmo onde não existem. Ou não ganha seu pão. Quando teço críticas à psicanálise, não falta psicanalisado que, papagueando Freud, ache que estou precisando de uma análise. Ora, vivo serenamente minha vida, não tenho conflitos de ordem alguma. Por que razões iria eu pagar um vigarista para me ouvir? Meus amigos e amigas me ouvem com prazer, sem que eu precise desembolsar um vintém. Vivia em conflito, isto sim, quando era adolescente. Não por ser adolescente, mas porque a idéia de Deus me foi enfiada a machado na cabeça. Mas logo abandonei a crença em Deus e minha vida se tornou um mar de rosas. Há mais de quarenta anos não sei o que seja conflito.

Diz ainda o leitor que o capitalismo ao qual Adam se refere não é o econômico, e sim o de imposições, de relações triviais (a exemplo da internet, que massificou os relacionamentos. De acordo quando à primeira parte. Aliás, não falei em capitalismo econômico. Quanto à Internet ter massificado os relacionamentos, não acompanho este raciocínio. Internet não tem responsabilidade alguma pela massificação. Muito antes das redes sociais, futebol e rock há muito vinham uniformizado as pessoas. E muito antes ainda, lá atrás, as religiões eram um poderoso fator de massificação da sociedade. Utilizo diariamente a Internet e não me sinto nenhum pouco homem-massa. Pelo contrário, uso a rede para manifestar minha individualidade. Não fosse a Internet, eu não teria voz. Massificadora é a imprensa escrita, onde qualquer opinião mais contundente é censurada pelos editores.

Isso de afirmar que "o capitalismo trivializou a paixão, fez com que as pessoas se desiludissem em relação ao amor" é grossa besteira. A idéia de amor evoluiu, desde os poemas de Safo de Lesbos até nossos dias, passando pelo amor cavalheiresco e pelo amor cristão. Amor é um sentimento literário, alimentado e desenvolvido através dos séculos, e espanta ver um psicanalista usar uma palavra que designa uma ficção como se significasse algo real. Swift, ao responder a uma jovem que estava em vias de casar-se, foi preciso: “o amor é uma paixão ridícula, que não tem razão de ser, fora dos livros de recreação e dos jornais. Hoje, este sentimento é a mola que impulsiona o mercado em datas como dias dos pais, dos namorados, da mãe e Natal.

Quando me falam de amor, gosto de contar um episódio narrado por Morton Hunt, em A História Natural do Amor. Em uma aldeia nos confins da África, um antropólogo tentava explicar aos nativos o que seria este sentimento. Contou então uma lenda, sobre um cavaleiro que sai em busca de uma donzela e enfrenta montanhas, abismos de dragões para conquistá-la. Um ancião da tribo, interpretando o sentimento dos demais, perguntou:

- Por que ele não procurou outra moça?

Um outro leitor me pergunta se considero comunista qualquer pessoa que critique o capitalismo. Não necessariamente. Mas a entrevista de Phillips tem um viés nitidamente comunista. Não é que o capitalismo tenha trivializado o amor. Ocorre que este sentimento transformou-se através dos tempos. Ao atribuir ao capitalismo a trivialização do amor, o psicanalista deixa entender que há um sistema alternativo onde o amor não foi trivializado. Ora, só há dois sistemas políticos no Ocidente, o capitalismo e o socialismo. (E não me venham com a piada de que as sociais-democracias constituem uma terceira via). Até pode ser que Phillips não se pretenda comunista. Mas pensa como tal. Vejo todos os dias, à minha volta, pessoas que talvez nem saibam o que seja comunismo. Mas pensam de modo idêntico aos comunistas. São comunistas sem sabê-lo.

Por outro lado, estou cansado de ver esses intelectuais que vivem em plena sociedade de consumo, que fazem suas fortunas graças ao sistema capitalista e depois saem a condenar o sistema. O que, aliás, lhes rende ainda mais dinheiro. É o caso do lingüista americano Noam Chomski, que fez fortuna, literária e pessoal, criticando a sociedade que o embala e sustenta e louvando regimes onde estaria na cadeia mal abrisse a boca. Ou de Michael Moore, que fez fama e fortuna mentindo em seus filmes sobre o país que o abriga e protege.

Esses personagens são universais. Entre nós temos, sem ir mais longe, Jorge Amado. Passou boa parte de sua vida condenando o capitalismo e louvando as ditaduras comunistas. Em O Mundo da Paz, insultou o Ocidente e particularmente Paris. Foi inclusive proibido de entrar na França. Onde foi morar depois de tornar-se rico atacando o Ocidente? Foi morar em Paris, na Rive Droite, em uma mansão com vista para a Notre Dame.

O mesmo diga-se de Chico Buarque, que sempre denunciou o capitalismo e alinhou-se com os países socialistas. Jamais disse uma palavrinha contra as ditaduras comunistas. Muito menos contra o regime da Disneylândia das esquerdas, a Cuba de Castro. Foi por acaso morar em Pequim, Moscou ou Cuba? Nada disso. Hoje tem apartamento na privilegiada e caríssima Île de la Cité, quase ao lado do apartamento de Amado.

Psicanálise e marxismo, costumo afirmar, são dois embustes que só conseguem enganar pessoas com certa cultura. Analfabetos não fazem psicanálise nem aderem ao marxismo. Ambas as doutrinas estão sendo celeremente desmascaradas. Nesta Pindorama que sempre vive a reboque do pensamento contemporâneo, gozam ainda de boa saúde.

 
MENSAGEM DE RECIFE


De um leitor de Recife, recebo:

Janer

Vivo enviando seus textos a amigos, para reflexão.

O texto sobre A Inovação da Krichner e o sobre o filme Diário de uma busca, por exemplo, são comprovações da imbecilidade que se torna regra no país.

Moro em Recife e aqui não fugimos da regra.

A praça em frente ao Aeroporto Internacional dos Guararapes - Gilberto Freire (nome grande mesmo) só poderia ter uma estátua homenageando:

1- O sociólogo Gilberto Freire
2- O frevo, patrimônio cultural de Pernambuco e facilmente associado ao Estado
3- O ex-governador Miguel Arraes, avô do atual governador Eduardo Campos.

Acertou quem apontou a opção "3", com um agravante: antes, havia a estátua do Frevo (opção "2"), que foi retirada para ceder lugar ao "grande estadista". A estátua do frevo foi colocada em uma rua que até hoje não sei se foi mesmo, pois nunca a vi. À época, o ex-prefeito João Paulo (petista, deputado federal atualmente e CONSULTOR de empresa, pois abriu uma consultoria assim que deixou a prefeitura) disse que era para dar maior visibilidade à estátua do frevo...

Pois é, Pernambuco já tem Hospital Miguel Arraes (construído na atual gestão), Av. Norte Miguel Arraes (uma das mais importantes avenidas daqui, existente há décadas e com nome modificado recentemente), várias escolas, estátua mais importante que a do frevo, etc. Daqui a pouco me sentirei na Coreia do Norte!!!

terça-feira, novembro 29, 2011
 
PSICANALISTA, MARXISTA
E, NATURALMENTE, BURRO



Pior que um psicanalista, só um psicanalista marxista. Verdade que as duas doutrinas são incompatíveis. Mas nestes dias que me foram dados viver, em que há católicos-marxistas, publicitários de esquerda, médicos espíritas e professores universitários que acreditam em Deus – e pior, orientam teses -, nada mais me espanta.

Em entrevista à Folha de São Paulo, o psicanalista britânico Adam Phillips não pede licença para proferir bobagens.

Folha - Em Monogamia, o senhor diz que não há nada mais escandaloso do que um casamento feliz. Por quê?

Adam Phillips - O que amamos e odiamos num casamento feliz é ver nossos primeiros desejos e medos acontecendo na vida real. Toda criança começa seu desenvolvimento em uma relação monogâmica, com a mãe. E a maioria passa os primeiros 11, 15 anos da vida muito conectada a mãe e ao pai. É uma espécie de monogamia bissexual. Crescer é passar da necessidade de ter só uma pessoa para a necessidade de ter duas (mãe e pai) e a necessidade e a capacidade de se relacionar com várias.


Cá entre nós, que tem a ver relação com pai e mãe com monogamia bissexual? Como bom herdeiro de Freud, Phillips não consegue escapar à tese idiota de que toda relação de um filho ou filha com os pais está eivada de sexualidade. Não existe psicanálise sem o complexo de Édipo ou Electra. É um dogma tão fundamental para a doutrina como a virgindade de Maria para a Igreja. A repórter pergunta então se, diante das dificuldades da monogamia, a solução não seria a infidelidade.

Adam Phillips - Sim. E pode dar certo, mas sempre com conflito. Todo mundo tem ciúme sexual, ninguém suporta dividir seu parceiro de sexo. Alguns dizem que suportam, mas é impossível. Se amamos e desejamos alguém, não queremos dividi-lo com outros.

Parece que o celebrado psicanalista nasceu lá pelo século XIX. Até pode ser que ninguém suporte dividir seu parceiro de sexo, mas a verdade é que todo mundo – ou pelo menos uma significativa maioria – acaba dividindo. As mulheres até podem se manter mais ou menos – mas não muito – fiéis, mas os varões sempre acabam pulando a cerca. O que mais existe são relações polígamas sob uma aparência de monogamia.

Por outro lado, o conceito de infidelidade, tanto o expresso pela jornalista como o aceito pela psicanalista, é falso. Infidelidade não é ter relações com terceiros. Infidelidade é esconder essas relações do parceiro. Sempre fui polígamo e jamais me considerei infiel. Nunca escondi de minha mulher ou de minhas amigas minhas relações outras. Não se trata de apresentar um relatório detalhado, nada disso. Basta que a parceira – ou o parceiro – saiba que tais relações existem. Acho muito difícil, neste nosso mundo contemporâneo, manter relações monógamas. Difícil mas não impossível. Conheço algumas. Mas se contá-las nos dedos, me sobra um monte de dedos.

Mas o melhor – ou pior, conforme a ótica – vem adiante. A entrevistadora quer saber se a monogamia é uma experiência tão real quanto a traição. Responde o psicanalista:

As duas formas são construções sociais. O capitalismo trivializou a paixão, fez com que as pessoas se desiludissem em relação ao amor. Isso leva a pensar que as relações sexuais são algo que se compra no mercado só para levar a vida adiante. O capitalismo tenta dissuadir a criação de vínculos reais. E valoriza demais o prazer. E, para a psicanálise, o prazer é sempre um problema. Qualquer pessoa que te venda um prazer fácil está mentindo. Se o que queremos é prazer profundo, com troca entre pessoas, ele será difícil, cheio de conflitos.

Quando alguém condena o capitalismo, ipso facto está afirmando que na outra sociedade – a socialista – as coisas seriam diferentes. A deduzir-se de suas palavras, o amor só existe no mundo socialista. Como se no mundo socialista não houvesse sexo pago. O capitalismo tenta dissuadir a criação de vínculos reais? Mas que vínculos reais existiam no mundo socialista, que priorizava os vínculos com essa entidade abstrata, o Estado? O capitalismo valoriza demais o prazer? Ora, quem não valoriza o prazer? E, afinal, que há de mal em valorizar o prazer? Se para a psicanálise o prazer é um problema, este problema é dos psicanalistas. Phillips conclui suas sandices com uma chave de ouro: “se o que queremos é prazer profundo, com troca entre pessoas, ele será difícil, cheio de conflitos”.

Desde quando o tal de prazer profundo é difícil, cheio de conflitos? E por que há de ser difícil, cheio de conflitos? Adam Phillips é a mais viva demonstração de que, para um psicanalista, toda pessoa tem conflitos. Até mesmo quem tem prazeres profundos. Você está bem consigo mesmo? Não pode ser. Você deve estar cheio de conflitos. Ou então a psicanálise não teria sentido.

A entrevistadora quer saber “do que precisamos, afinal?”

De boas histórias que nos ajudem a viver. As únicas verdades úteis são as que nos ajudam a viver. Num relacionamento, o que você precisa é criar uma história na qual se sinta vivo com a outra pessoa.

Hoje, temos mais opções para criar essa história?

Não sei. A cultura liberal oferece mais escolhas do que havia antes. Mas o capitalismo cria a ilusão de que temos muitas escolhas, quando na verdade temos muito poucas.


Devo ser alguma espécie de monstro moral. Nunca precisei de boas histórias que me ajudassem a viver. Precisei, isto sim, de trabalho, de amigos e amigas. É o que dá algum sentido à vida, a esta vida que em si não tem sentido algum. Não consigo entender o conceito de verdades úteis. Verdade é verdade, seja útil ou inútil. Nunca precisei criar histórias para sentir-me vivo com outra pessoa. A outra pessoa me bastava, sem precisar de qualquer história.

Quanto a afirmar que no capitalismo temos poucas escolhas, isto é bobagem que nem merece ser comentada. No capitalismo, as escolhas são tantas que chegam a atordoar os pobres de espírito. Espanta ver a Folha dar tanto espaço a quem profere tantas bobagens.

PS - Falar nisso, trouxe de Paris dois livros sobre o embuste. Le Crépuscule d’une idole – l’affabulation freudienne, de Michel Onfray, e Le Livre noir de la psychanalyse – vivre, penser et aller mieux sans Freud, de vários autores, coordenados por Catherine Meyer. Provavelmente voltarei ao assunto.

Ou não.

segunda-feira, novembro 28, 2011
 
A INOVAÇÃO DA KIRCHNER


A imprensa brasileira está escandalizada com notícia vinda da Argentina. Segundo Ariel Palácios, correspondente do Estadão no país, o governo da presidente Cristina Kirchner determinou por decreto que o Estado argentino comandará uma revisão oficial da História do país. Para isso, criou o Instituto Nacional de Revisionismo Histórico Argentino e Ibero-Americano Manuel Dorrego, que dependerá da Secretaria Federal de Cultura e funcionará com fundos públicos.

A entidade que reescreverá a História argentina será comandada pelo historiador Mario Pacho O’Donnel, declarado admirador dos caudilhos argentinos. Ela também será integrada por ministros do gabinete presidencial, jornalistas alinhados ao governo e líderes políticos.

O decreto determina que o objetivo do instituto será o de “estudar, investigar e difundir a vida e obra de personalidades e circunstâncias destacadas” da História argentina “que não tenham recebido o reconhecimento adequado no âmbito institucional”. No decreto, a presidente Cristina condena a História “escrita pelos vencedores das guerras civis do século 19″.

Grande novidade! Os vencedores sempre reescreveram a história. Stalin reescreveu a história da Rússia, Mao a da China. Mortos e denunciados por suas matanças – sempre da ordem de milhões – tanto Mao como Stalin têm hoje suas versões revisadas. Tiranos e assassinos, foram vistos por décadas como heróis e condutores de povos. Cultuados no século passado, hoje estão voltando à condição de tiranos e assassinos. Hitler perdeu a guerra? Caiu logo na vala dos vilões. Se a tivesse ganho, vilões seriam Churchill e Roosevelt. Nem Stalin teria feito carreira como genocida. E o mundo todo estaria falando alemão em vez de inglês.

Mas se antes as revisões históricas eram feitas em séculos, hoje os ocupantes do poder estão acelerando o ritmo e as fazem em décadas. Vide este país nosso. Não se passaram cinqüenta anos, e as esquerdas brasileiras reescreveram a história do Brasil. Os militares que, em 64, salvaram o país de tornar-se uma republiqueta soviética, são vistos hoje como bandidos.

Desde há muito vem se reescrevendo a história do Brasil. Começou com Ruy Barbosa, destruindo documentos relativos à escravidão. De lá para cá, a história vem sendo revista ano a ano. Lampião, um bandoleiro vulgar, foi promovido a herói. Zumbi, dono de escravos, foi promovido a defensor dos escravos.

A reescritura da história se acelera, dizia. Franco, que salvou a Espanha das investidas de Stalin, morreu em 75. Em julho passado, o El País dedicou vários ensaios relembrando a Guerra Civil Espanhola. Franco, um dos deflagradores do levante – que tomaria as rédeas do país pelos 39 anos seguintes – é visto como vilão. Desde alguns anos, há um movimento de “desfranquização” da Espanha, no sentido de retirar todos os nomes de rua ou monumentos em sua memória, como também os nomes de seus generais.

Quanto aos comunistas que, sob o comando de Stalin, queriam tomar o poder na Espanha, são vistos como os promotores de “una revolución movida en las primeras semanas por el propósito de liquidar físicamente al enemigo de clase, comprendiendo en esta denominación al ejército, la iglesia, los terratenientes, los propietarios, las derechas o el fascismo; una revolución que soñaba edificar un mundo nuevo sobre las humeantes cenizas del antiguo”.

Por mundo nuevo, entenda-se o regime comunista russo, que fez apenas 20 milhões de cadáveres. Franco matou? Matou. Não há guerra sem mortes. Mas matou para defender a Espanha, vítima de uma brutal invasão soviética. Em 1937, a União Soviética já havia colocado na Espanha pilotos de guerra, técnicos militares, marinheiros, intérpretes e policiais. A primeira presença estrangeira em terras de Espanha foi a soviética, com o envio de material bélico e pessoal militar altamente qualificado, em troca de três quartas partes (7800 caixas, de 65 quilos cada uma) das reservas de ouro disponíveis pelo Banco de España. Pagos adiantadamente.

Em 1936, Juan Negrín, ministro da Fazenda do governo Largo Caballero – conhecido também como o Lênin espanhol -, raspou os cofres do país em troca de aviões, carros de combates, canhões, morteiros e metralhadoras russas. Ao celebrar com um banquete no Kremlin a chegada das 7.800 caixas de ouro, Stalin, evocando um ditado russo, comemorou: "Os espanhóis não voltarão a ver seu ouro, da mesma forma que ninguém consegue ver suas orelhas".

Isto El País não contou. Seus redatores, a seu modo, estão reescrevendo a história.

O mesmo aconteceu cá entre nós. Há mais de década, eu dizia que os militares brasileiros costumavam gabar-se de ter vencido o confronto que culminou com a chamada Revolução de 64. Graças à ação das Forças Armadas, teriam sido derrotados os comunistas e compagnons de route que tentavam transformar o país em uma Cuba meridional. Três décadas depois, cabe a pergunta: foram?

Os celerados que, a mando do comunismo internacional, queriam instalar uma ditadura em Pindorama, são hoje vistos como heróis e gozam de pensões milionárias. No ensino oficial, hoje - e mesmo na imprensa – os militares são os vilões e os comunistas são os heróis. Em agosto passado, foi reeditado no Brasil o livro Vida de Luís Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança – ode de Jorge Amado ao mais estúpido dos gaúchos, publicada originalmente em 1945.

Ainda há pouco eu falava das biografias mentirosas, que pretendem transformar criminosos em heróis. É o caso da cineasta gaúcha Flávia de Castro, que fez um filme – Diário de uma busca – transformando seu pai idiota em mártir. Comentei também o documentário Marighella, de Isa Grinspum Ferraz, cuja estréia estava prevista para outubro passado, que faz de um terrorista um santo. Este gênero literário é antigo e, no Brasil, Amado terá sido um de seus precursores.

Se isto não é reescrever a História, que será reescrever a História? Mas o Brasil nunca teve uma instituição oficial encarregada deste ofício. A inovação da Kirchner foi criar um instituto para isto, pago com o dinheiro do contribuinte.

domingo, novembro 27, 2011
 
A HISTÓRIA DO GRANDE RACIONAMENTO DE PALAVRAS

Conto de Tage Danielsson

Tradução do sueco de Janer Cristaldo



Um dia disse Nosso Senhor a sua mulher:

- Ouve, Elvira, é algo absolutamente incrível o que os homens falam e falam sem
parar. Acho que a situação piorou nos últimos tempos com tagarelices cada vez mais sem sentido. Para alguém como eu que tudo vê e tudo ouve, devo confessar que isso se torna um pouco irritante.

- Não seja idiota, Karl-Ragnar - disse a mulher de Nosso Senhor -. Uma conversinha de quando em quando, podes muito bem permitir aos pobres coitados.

- Besteiras aqui, besteiras lá, besteiras por todo lado - disse Nosso Senhor - mas
agora vou terminar com este eterno blá-blá-bá. Acho que vou racionar um pouco as palavras.

- Então faz o favor de te limitar aos teus homens - atalhou a mulher de Nosso Senhor -. Não te mete com minhas colegas, lembra-te bem disto.

- Não vamos brigar por uma coisinha destas - disse Nosso Senhor, conciliante -. Se todos os homens se tornam um pouco mais silenciosos, a coisa já melhora.

Nosso Senhor sentou-se e pensou: "Não será agora que vou ser parcimonioso, mas, pelo contrário, fartamente generoso. Vou dar-lhes dez mil palavras por dia, isto certamente lhes será suficiente.

Vejamos... isto dá três milhões e seiscentas e cinqüenta mil palavras ao ano... acho que posso deixar de lado um acréscimo extra para os anos bissextos, este dia eles podem muito bem calar a boca em nome da paz... e assim em 78 anos teremos... bem, se ofereço a cada um cem milhões de palavras, contadas desde o nascimento, eles têm em todo caso uma boa margem para conversa fiada".

Nosso Senhor expediu uma circular com este conteúdo a todos os seres humanos do sexo masculino. Comunicava ainda que cada ocasião que alguém ultrapassasse a cifra exata de um milhão de palavras, soaria uma pequena campainha no ouvido do próprio. E quando a provisão de palavras estivesse quase esgotada e restassem apenas dez palavras, a campainha emitiria sinais curtos durante um minuto.

Nosso Senhor calculara certo, como sempre. A consciência de que a provisão de palavras era racionada fez com que muitos dos mais loquazes senhores na terra se pusessem a pensar um pouco mais cada vez que soava a campainha. Talvez eu tenha falado demais, pensavam. Talvez eu deva pensar um pouco mais e falar um pouco menos.

E assim pensavam um pouco antes de continuar a falar. Para suas alegrias, observaram que suas conversas dali por diante se tornaram mais coerentes e interessantes de serem ouvidas, e tiveram grande sucesso na vida graças à sábia decisão de Nosso Senhor. Até aqui, apenas três pessoas deram cabo de suas cem milhões de palavras.

O primeiro foi um sacerdote que durante muitos anos de serviço desfiava as escrituras em tão longas prédicas que a campainha lhe tilintava freqüentemente no ouvido. Ele no entanto não se preocupava muito com aqueles avisos da campainha, pois achava que na condição de servidor de Nosso Senhor, certamente teria direito a uma reserva extra de palavras caso sua quota chegasse ao fim.

Um dia, justo quando havia começado sua prédica dominical, ouviu os curtos e insistentes sinais que significavam que agora ele tinha apenas dez palavras. Mas nem ligou para isso. "O chefe certamente me fornecerá um acréscimo extra, bom como ele é", pensou despreocupadamente.

Encontrava-se em meio a um raciocínio que começara com a caminhada de Jesus sobre as águas e continuava com uma comparação entre o passeio divino e o comportamento ímpio que dão prova muitos escravos do pecado em nossos tempos dissolutos ao banharem-se embriagados e nus, à noite, nos chafarizes em frente a nossos museus e instituições de cultura. E continuou como se nada tivesse acontecido em seus ouvidos:

- Objetará então o pecador: não é pecado gozar a vida.

Um silêncio divino inundou a igreja. Os paroquianos despertaram surpresos de suas semi-sonolências. Terminaria a prédica com estas palavras? Sim, pelo jeito, pois o pastor mantinha o rosto entre as mãos e nada mais dizia. Após alguns instantes, um órgão perplexo começou a soar.

Naquele dia todos chegaram alegres da missa em bom tempo para escutar programas da velha guarda, fortalecidos na alma pelas palavras finais do pastor que diziam não ser pecado gozar a vida.

- Foi uma prédica extraordinariamente linda - diziam os paroquianos um para o outro, e ninguém entendeu porque depois daquele domingo o pastor foi conduzido para um silencioso serviço na secretaria da paróquia.

O segundo pela ordem a ser atingido pelo racionamento de palavras foi um relações-públicas do ramo de detergentes.

Sua profissão consistia em ser excepcionalmente gentil, da manhã à noite, e em especial durante o almoço e a janta, com todas as pessoas que sua firma entrava em contato.

Então vocês podem imaginar que o relações-públicas conhecia todas as histórias engraçadas sobre detergentes que existiam e mais algumas ainda, e além disso dominava a arte de sorrir todo o tempo com seus dentes alvíssimos enquanto falava, de forma que as pessoas ficavam loucas por ele e por seus detergentes.

- Cada vez que eu abro a boca, um par de meias é jogado em nosso detergente em
alguma parte do mundo - costumava dizer com seu sorriso irresistível e, como isto havia sido calculado pelo departamento de estatística de sua firma, era indubitavelmente verdade.

Para um tal relações-públicas, a campainha evidentemente soava com freqüência. Após cada sinal ele ficava algo pensativo e naquele dia não tomava nenhum Dry Martini, pois Dry Martini lhe soltava de tal modo a língua que lindas palavras e lindos slogans lhe fluíam da boca sorridente como um lindo rio onde as associações de donas-de-casa e revendedores se afogavam prazerosamente.

Quando soaram os últimos e repetidos sinais curtos em seus ouvidos ele estava almoçando, por custa de sua firma, com uma delegação do Instituto de Pesquisas Domésticas. Já havia tomado seu Dry Martini aquele dia, e antes de perceber exatamente que soara o último sinal, deixou escapar:

- Apanhem o detergente que quiserem e comparem-no ao nosso.

Então controlou-se. Por Deus, a campainha das dez palavras. E nove já haviam sido ditas! Uma única palavra, pensou ele, uma única!

Enfiou a mão no elegante bolso de seu casaco e apanhou um pacotinho com o deteergente de sua firma, que sempre carregava consigo. Despejou uma dose mortal do detergente em sua taça de vinho, ergueu com seu sorriso alvíssimo a taça ante os encantados delegados do Instituto de Pesquisas Domésticas e disse:

- Delicioso.

Bebeu e caiu, elegantemente morto. Pois um relações-públicas não pode viver sem a possibilidade de dizer sem cessar coisas lindas.

Naturalmente agora vocês se perguntam quem foi o terceiro homem a dar cabo de suas cem milhões de palavras. Pois bem, vou dizer-lhes, foi um político.

Ele desenrolava textos e conversava fiado e lançava acusações e sofismava e esbravejava tanto que antes mesmo de ter chegado aos cinqüenta a campainha já havia soado em seus ouvidos noventa e nove vezes. E agora se aproximavam as eleições e nosso político sentou-se em uma mesa em companhia de seus adversários e de um apresentador, para um debate na TV.

O político do qual falo olhava fixamente para a câmara e disse no seu minuciosamente ocupado espaço onze mil quinhentas e sessenta e três palavras, entre as quais podemos escolher, ao azar: segurança, todos, aposentadoria, vocês mentem, padrão de vida, conspiração, eleitores querem saber, aposentadoria, besteiras, 1956, orçamento, homens do povo, grupos de baixo salário, confiança e aposentadoria.

Ao chegar ao apelo final soaram os pequenos sinais curtos nos ouvidos daquele político. Ficou tão estupefato que disse espontaneamente a todo mundo:

- Já disse tantas bobagens que agora eu calo a boca.

Graças a este apelo final aquele político foi escolhido para ministro e governou por muitos anos.

Como não podia mais dedicar-se a cacetear os eleitores com conversa fiada, dispunha então do dia inteiro para pensar um pouco e executar uma série de medidas, de modo que se tornou um dos melhores ministro de Estado que este país teve, como consta nos Anais do Partido. E se não estivesse morto, estaria governando ainda.

Enquanto vocês lêem isto, Nosso Senhor fez um levantamento para sua mulher do resultado de seu grande racionamento de palavras.

Podes notar que tudo ficou significativamente mais silencioso agora, Elvira - disse ele.

Seria agora o caso de pensarmos em estender as determinações de racionamento inclusive ao campo das mulheres, não achas? Hás de convir, tu que falas a todo instante de emancipação e dessa papagaiada toda. (Lá no fundo, Nosso Senhor pensou que seria melhor se inclusive sua mulher fosse submetida ao racionamento, mas evidentemente nem tocou no assunto).

- Emancipação aqui, emancipação acolá - disse a mulher de Nosso Senhor -. Mas um racionamento desses para mulheres tu só vais estabelecer em cima de meu cadáver, Karl-Ragnar.

E o fato é que a mulher de Nosso Senhor nunca morre. Esta é a sorte de vocês, adoráveis tagarelas.

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Conheci Tage Danielsson (1928-1985) em Estocolmo, em 1982, quando visitei a Suécia a convite do Ministério de Relações Exteriores sueco. Jovial e sempre irônico, me recebeu com fidalguia em sua casa.

Danielsson foi um dos mais importantes escritores suecos do século passado, dividindo sua criatividade entre a literatura e o cinema. Crítico mordaz de sua própria sociedade, a Suécia cosmopolita e superdesenvolvida, seus contos continuando ecoando no mundo contemporâneo.

O conto traduzido pertence à coletânea Estórias para crianças de mais de 18 anos.

sábado, novembro 26, 2011
 
LONGO É O CAMINHO


Comentei em abril passado, quando Dona Dilma elevou o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) sobre as compras no exterior com cartão de crédito de 2,38% para 6,38%. A medida teve como objetivo conter o consumo. Os gastos de brasileiros no exterior cresceram muito no ano passado em função da valorização do real frente ao dólar. A despesa bruta com cartão de crédito em 2010 foi de US$ 10,17 bilhões. Em 2009, tinha sido de US$ 5,59 bilhões, segundo os dados do Banco Central.

Quando a economia internacional oferece uma janela de conforto aos brasileiros, o governo tenta fechá-la. O Brasil está caro? Tribute-se então o brasileiro que descobriu que França, Espanha ou Itália são países mais amigáveis do que o próprio Brasil na hora de viajar, comprar, comer e beber. A medida da presidente em pouco ou nada difere das leis da época da ditadura militar, que tornaram proibitivas as viagens ao Exterior. O governo quer conter o consumo... no estrangeiro. Aqui, a indústria oferece carros a serem pagos em cinco anos.

Em verdade, a medida não conteve consumo algum, pois viagens e compras no Exterior continuam sendo mais baratas do que aqui. No fundo, só serve para escorchar ainda mais o já escorchado contribuinte brasileiro. É o reflexo automático do bracinho de dona Dilma – remember Dr. Strangelove – que quer proteger, no melhor estilo comunista, a inepta indústria tupiniquim.

Ontem - leio nos jornais - a presidente Dilma Rousseff previu que a crise européia não terminará antes de pelo menos dois anos, mas insistiu que o Brasil não pode temer o período difícil da economia mundial. "Não temos que nos atemorizar diante da crise, não podemos parar de produzir, de consumir. Vamos continuar investindo e apostar na inovação tecnológica", afirmou a presidente em discurso durante inauguração de novas unidades do Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into), na zona portuária no Rio.

Em abril, o governo aumentou o IOF para conter o consumo. Sete meses depois, afirma que para enfrentar a crise é preciso consumir. Dona Dilma oscila qual caniço ao vento. Em um mesmo ano, afirma uma coisa como também seu contrário.

Sem ser consumista, sempre fui um incondicional defensor do consumo, esta instituição tão caluniada por esquerdistas e igrejeiros. Há mais de dez anos, falei sobre uma véspera de Natal de meu passado. Quem não esteve numa tarde de um 24 de dezembro em Madri, não tem idéia do que seja consumo compulsivo. Na Puerta del Sol e arredores, os madrilenhos corriam como formigas tontas fugindo de um temporal, em busca do que comprar.

Entravam desesperados na Preciados e Corte Inglés e delas saíam, os braços estocando mercadorias como se esperassem o fim dos tempos. Em meio àquela turba ensandecida, uns gatos pingados católicos, envoltos em pelerines, condenavam o consumo e o capitalismo.

Ali estavam os inimigos da humanidade. Em sua insensatez, estavam pedindo desemprego e miséria para o último camponês nos confins da Espanha, que vendia seus queijos, chouriços ou vinho para a satisfação dos espanhóis. Consumo, por estúpido que seja, é sinônimo de emprego. A gula dos madrilenhos sustentava os criadores de suínos, os produtores de queijos, vinicultores, comerciantes e transportadores da Espanha toda, da mesma forma que a gula do parisiense sustenta criadores de ganso até mesmo na Hungria. Qualquer objeto besta de consumo, seja uma caneta mais sofisticada ou um brinquedinho bobo, significa horas de trabalho e salário na outra ponta do mercado. Isto, os igrejeiros que protestavam na Puerta del Sol contra os hábitos natalinos dos madrilenhos pareciam não entender.

Dona Dilma, pelo que sei, era marxista e até hoje dela não ouvi declaração alguma de que tenha renunciado à antiga filosofia. Só posso então concluir que ainda seja marxista. Como boa parte dos marxistas contemporâneos, terá tido formação católica. De onde se pode deduzir sua ojeriza ao consumo, compartilhada tanto por marxistas como católicos.

Terá se convertido ao bom e saudável capitalismo? É o que deduzo de sua recomendação para consumir. Longo é o caminho de um comunista até o entendimento.

sexta-feira, novembro 25, 2011
 
DE BAR EM BAR


Melhor os bares, dizia eu há pouco, me referindo aos museus. Ou restaurantes. Em algum momento de sua obra, Kafka fala de uma utopia, uma casa onde toda pessoa pode entrar e sair na hora em que bem entender. Essa utopia existe desde há muito. São os bares e restaurantes. Em Praga, recentemente, estive não exatamente em uma dessas casas de Kafka, mas na casa de Kafka. Que hoje é um restaurante. Fica em frente àquele relógio astronômico que reúne centenas de turistas a cada hora.

Em 2007, comentei o livro A Invenção do Restaurante, de Rebecca L. Spang, que estuda o fenômeno em suas origens, ou seja, em Paris. Considero os restaurantes um dos mais esplêndidos achados da história humana. Neste livro de Rebecca, descobri que os restaurantes evoluíram das maisons de santé até o que hoje conhecemos por restaurante. A palavra decorre de uma paráfrase de um versículo de Mateus (11:28) "Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei". Lá pelos estertores do século XVIII, um dos primeiros restaurateurs da época pôs na entrada de sua casa esta frase um tanto blasfema: "Accurite ad me omnes qui stomacho laboratis et ego vos restaurabo". Ou seja, corram a mim todos vós cujos estômagos padecem, e eu vos restabelecerei.

O mundo está cheio de comensais que comem sem jamais pretender entender o que comem. Há também os que gostam de saber o que estão comendo. Me situo entre estes últimos e entre minhas leituras prediletas estão os autores que tratam de história da comida. O primeiro livro que li nesta área foi Food in Civilization – How History Has Been Affected by Human Tastes, de Carson I. A. Ritchie. O livro tem uma origem curiosa. Carson havia convidado alguns amigos a jantar em um bom restaurante. Comeram bem e fartamente. Na hora de pagar, Carson pegou a carteira ... e viu que não tinha dinheiro suficiente. Seus amigos o salvaram. "Mas uma vez passado o mau momento, pensei que a história da alimentação em algo se parece a esta anedota: quando chega o momento de pagar o banquete, podemos descobrir que o que desfrutamos custa mais do que estávamos dispostos a pagar quando nos sentamos à mesa". Decidiu então escrever este estudo para que o leitor descubra uma nova interpretação de sua própria história e de suas atitudes frente ao que come.

No ano que vivi em Madri, meu guru era Enrique Sordo, jornalista que escreveu España, entre trago y bocado, minha bíblia naqueles dias. Viajando de região em região do país, o autor vai mostrando suas características físicas e geográficas, a estética de sua paisagem, a psicologia de seus habitantes... e as cozinhas regionais. Não é um guia para jogar-se entre outros mapas de turismo, mas um estudo antropológico e sociológico sobre o modo e estilo de comer de cada povo.

Nos últimos vinte anos – talvez trinta – só tenho viajado para visitar estas casas. Começo com uma cerveja lá pelas 10 ou 11 horas, trato do almoço e vinho lá pelas duas, mais algum aperitivo antes da janta. Adoro uma Leffe numa manhã de inverno ensolarada – oito ou dez graus, digamos – em uma terrasse de um café. Se estou com meus jornais e livros, é minha concepção de paraíso. Claro que nos intervalos visito – ou revisito – as ruas e a arquitetura das cidades. Se a cidade é nova, dedico mais tempo a este esporte. Se já é conhecida, procuro novas casas de Kafka.

Nesta última viagem, em Paris, fiquei no Quartier Latin e o ponto mais distante do Sena ao qual cheguei foi a Mouffetard, que fica a uns vinte minutos de caminhada. Isso de torre Eiffel e Champs Elysées é coisa para turistas.

Mal chego em Paris, vou direto ao Rélais Odéon, no metrô Odéon. Fica em frente ao Danton, outro de meus bebedouros diletos. E ao lado do Procope, tido como o mais antigo restaurante do mundo. E não longe do Aux Charpentiers, refinado restaurante com cuisine du terroir. Só atravesso o Sena para ir ao Zimmer, na Rive Droite. Eventualmente ao Julien, na rue du Faubourg Saint-Denis. Não que seja glutão nem bebum. É que me sinto bem nestes ambientes. Em Paris, hoje, meu território habitável é menor que Dom Pedrito. Copenhague, Praga ou Budapeste, geografias para mim mais ou menos do anecúmeno, exigiram mais caminhadas. Mas em Copenhague, de bom grado, eu não me afastaria muito do Nyhavn, um canal rodeado de cafés e restaurantes. Não vejo muito porque afastar-se dali.

Em Madri, tenho me hospedado perto da Puerta del Sol. Na rua do hotel, há um museu que gosto muito de freqüentar, o Museo del Jamón. É uma cadeia de restaurantes que tem tetos e paredes cobertas de presuntos. A quinze minutos de caminhada, está o magnífico El Oriente, em frente ao Palácio Real. Em seus subterrâneos, há uma solene cave do século XVI, onde às vezes el Rey recebe seus amigos estadistas. Se el Rey não estiver lá, como geralmente não está, você pode comer na sala dele.

Na Plaza Mayor, também ali perto, está o Sobrino de Botín, que disputa com o Procope de Paris o título de mais antigo do mundo. E um pouco mais adiante, para o lado do solene prédio dos Correos, estão El Gijón e El Espejo, dois restaurantes que sempre me impediram de visitar a Biblioteca Nacional. É que ficam no Paseo de Recoletos, a meio caminho da biblioteca. Nunca consegui atravessar aquele passeio.

Descobri, recentemente, que não gosto de cidades onde o melhor da festa está esparramado, como em Berlim ou Londres. Prefiro Paris, Madri, Barcelona ou mesmo Roma, onde o bem-bom está centralizado em uma pequena área. Em Paris, não preciso sair do Quartier Latin para me sentir viajando. Em Madri, tudo fica dentro de um quadrilátero não muito extenso, que vai da Plaza Mayor até Manuela Malasaña, passando pelo Palácio Real e Paseo de Recoletos. O que está fora desse quadrilátero pode até ser interessante, mas não muito. Em Barcelona, me restrinjo ao Barrio Gotico, com eventual escapadela até a Barceloneta. Em Roma, fico entre Piazza Spagna e o Trastevere, com uma pausa em Campo dei Fiori. Em São Paulo, me restrinjo a meu bairro. Claro que Higienópolis está longe de representar São Paulo. Mas me basta. Vez que outra, em atenção a alguma amiga, vou até Pinheiros ou Vila Madalena. E só.

Leitores me pedem les bonnes adresses na Europa. Já tenho falado deles ao longo destas crônicas. Qualquer hora volta ao assunto.

quinta-feira, novembro 24, 2011
 
O CRIME DO COCAR


Há muito venho discutindo a chamada questão indígena e não é fácil para mim dizer algo de novo. Em agosto deste ano, sob pressão do governo, a Câmara esvaziou um projeto de lei que previa levar ao banco dos réus agentes de saúde e da Funai (Fundação Nacional do Índio) considerados "omissos" em casos de infanticídio em aldeias. Segundo o jornal, a prática de enterrar crianças vivas, ou abandoná-las na floresta, persistiria até hoje em cerca de 20 etnias brasileiras. Os bebês são escolhidos para morrer por diversos motivos, desde nascer com deficiência física a ser gêmeo ou filho de mãe solteira.

Persistiria, não. Persiste. A prática vem de longe e desde há muito é conhecida no país. A polêmica chegou ao Congresso em 2007, quando o deputado Henrique Afonso (PV-AC) apresentou projeto que previa punir servidores que não tomem "medidas cabíveis" para impedir o ritual. Eles responderiam por crime de omissão de socorro, cuja pena varia de multa a prisão por até um ano. O texto ainda classificava o "homicídio de recém-nascidos" como uma "prática nociva". Antropólogos, indigenistas e assessores da Funai pressionaram a Comissão de Direitos Humanos da Câmara, que adiou a votação da proposta por quatro anos.

Ora, qualificar homicídio de recém-nascidos como prática nociva é eufemismo. Homicídio, em qualquer circunstância, é crime. Há alguns anos, comentei que os indígenas brasileiros se reservam o direito de matar filhos de mães solteiras, os recém-nascidos portadores de deficiências físicas ou mentais. Gêmeos também podem ser sacrificados. Algumas etnias acreditam que um representa o bem e o outro o mal. Por não saber quem é quem, eliminam os dois.

Outras crêem que só os bichos podem ter mais de um filho de uma só vez. Há motivos mais fúteis, como casos de índios que mataram os que nasceram com simples manchas na pele – essas crianças, segundo eles, podem trazer maldição à tribo. Os rituais de execução consistem em enterrar vivos, afogar ou enforcar os bebês. Geralmente é a própria mãe quem deve executar a criança, embora haja casos em que pode ser auxiliada pelo pajé.

A bem da verdade, o estupro já foi descriminalizado no Brasil. (Denunciei isto em 2006). Ou alguém ainda não lembra do homem que podia salvar a humanidade - como foi saudado pela imprensa americana - o cacique caiapó Paulinho Paiakan? Paiakan, em cumplicidade com sua mulher Irekran, estuprou barbaramente uma menina. Enquanto o processo se arrastava, Paulinho - são simpáticos os diminutivos! - avisou: se fosse condenado, não sairia de sua reserva. Ameaçou inclusive fazer rolar o sangue dos brancos, em caso de condenação.

Pois bem: foi condenado. Não fez rolar o sangue dos brancos mas continua em sua reserva, livre como um passarinho. A Polícia Federal, única autorizada a agir em reservas indígenas, com todo seu poder de fogo, não ousou lá entrar para buscar o criminoso. Paulinho zombou do Estado brasileiro, zombou da Justiça brasileira, zombou de sua vítima. E não houve sequer uma feminista que protestasse contra o crime hediondo. A menos que a nação caiapó já constitua um Estado independente do brasileiro - onde estupro não é crime - e ainda não tenhamos sido avisados.

Em meu livro Ianoblefe (1994), citei as denúncias do antropólogo americano Napoleon Chagnon sobre as práticas ianomâmis, em cujas tribos a criança não desejada é morta após o parto. Ao tornar público este segredo de polichinelo, Chagnon foi excluído do universo da antropologia. Segundo a Istoé, a prática do infanticídio já foi detectada em pelo menos 13 etnias, como os ianomâmis, os tapirapés e os madihas. Só os ianomâmis, em 2004, mataram 98 crianças. Os kamaiurás matam entre 20 e 30 por ano. Mas entre os sacerdotes que vociferam contra o aborto, você não encontra um só que denuncie estes assassinatos. E tudo isto sob os olhares complacentes da Funai, que considera que os brancos não devem interferir nas culturas indígenas.

É esta mesma Funai que quer proibir a adoção de crianças indígenas pelos brancos. “Índio sofre muito fora da tribo”, dizem os antropólogos. Na tribo, conforme o caso, nem sofre: é enterrado vivo ao nascer. Ou afogado. Ou enforcado.

A reportagem da Istoé narrava a história de Amalé, indiozinho de quatro anos, que sobreviveu a um enterramento. Logo que nasceu, foi enterrado vivo pela própria mãe, que seguia um ritual determinado pelo código cultural dos kamaiurás, que manda enterrar vivo aqueles que são gerados por mães solteiras. Para assegurar que o destino de Amalé não fosse mudado, seus avós ainda pisotearam a cova. Duas horas depois, em um gesto que constituiu um desafio a toda aldeia, uma tia apiedou-se do menino e o desenterrou. Estava ainda vivo. Amalé só teria escapado da morte porque naquele dia a terra da cova estava misturada a muitas folhas e gravetos, o que pode ter formado uma pequena bolha de ar.

“Antes de desenterrar o Amalé, eu já tinha ouvido os gritos de três crianças debaixo da terra”, relata Kamiru, a tia que o salvou. “Tentei desenterrar todos eles, mas Amalé foi o único que não gritou e que escapou com vida”.

As práticas de eugenia são consideradas criminosas e geralmente atribuídas aos nazistas. Exceto quando praticadas pelos bugres. A Funai, há alguns anos, divulgou uma nota explicando que esse tipo de ritual faz parte da cultura da etnia ianomâmi. "Gerar um filho defeituoso, que não terá serventia numa aldeia que precisa necessariamente de gente sadia é um grave pecado, pois este não poderá cumprir o seu destino ancestral". Para o antropólogo Ademir Ramos, a eutanásia “é uma questão já resolvida para os ianomâmis. Eles precisam de gente saudável na aldeia. Uma criança com deficiência gera uma série de transtornos aos integrantes da tribo". Então, mata.

Os jornais de ontem noticiam um crime hediondo cometido ontem por um índio. Por estar carregando um cocar, o líder indígena Paulo Apurinã – uso a linguagem da imprensa – foi barrado por um fiscal do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Ibama) quando tentava entrar na área de embarque do Aeroporto Internacional Eduardo Gomes. Após discutir com policiais federais, ele acabou detido por desacato, algemado e levado à sede da Superintendência da Polícia Federal (PF) no Amazonas, por volta de 13h30. Segundo Sebastião Souza, agente ambiental federal do Ibama, o indígena não poderia embarcar levando seu cocar, alegando que ele era feito de penas de animais silvestres e não tinham o “selo” do Ibama.

Ou seja: matar crianças, estuprar, pode. O que não pode é carregar um cocar.

quarta-feira, novembro 23, 2011
 
DE MESLIER A PIERRE


Mulher e religião não se discute. Se abraça - me dizia o padre Carlos Pretto, de Santa Maria, com quem trabalhei em meus dias de JUC. Carismático, jovial, entusiasta, também costumava dizer: se batina fosse bronze, que badaladas! Isto ocorreu nos anos 60, quando a Ação Católica exerceu forte influência junto à juventude. Os padres mais novos desceram do púlpito, saíram do cubículo do confessionário e decidiram conversar com os jovens. Dos padres com quem convivi nenhum escapou: todos largaram a batina. Hoje estão casados e cheios de filhos. O contato com aquela gente moça, com aquelas universitárias com hormônios à flor da pele, foi letal. Não houve ministro de Cristo que resistisse ao apelo do sexo.

Sexo é imperioso. Que o diga este santo homem, Henri Grouès, 93 anos, mais conhecido como abbé Pierre, fundador do movimento dos Emaús. Mais considerado na França que o jogador Zinedine Zidane - como diz Gilles Lapouge - o abade Pierre, que há 60 anos promove ações em favor dos pobres, é considerado um santo. No inverno de 1954, lançou um apelo à "insurreição pela bondade", em favor dos sem-teto, provocando um vasto movimento de solidariedade mundial. A associação dos Emaús se internacionalizou e hoje tem representações em cerca de 40 países. Em 1988, ele criou a Fundação Abbé Pierre, para abrigar habitantes de rua. Em 2001, recebeu da Presidência da República a comenda de Grand Officier de la Légion d?Honneur.

Em livro recentemente lançado na França, Mon Dieu... Pourquoi?, o abade famoso por sua vida virtuosa e sua luta pelos sem-teto, confessa serenamente ter tido não poucas relações sexuais em sua vida. O livro está provocando mais celeuma do que a entrevista concedida ao jornal Le Figaro, em novembro de 2000, por dois velhos generais franceses, Jacques Massu, 92 anos, e Paul Aussaresses, 82, quando resolveram confessar seus assassinatos e torturas durante a guerra na Argélia. Aussaresses contou, inclusive, ter matado 24 prisioneiros com as próprias mãos. "De fato, nos executávamos os prisioneiros. A tortura nunca me proporcionou prazer mas eu tomei esta decisão quando cheguei a Argel. Na época, ela era generalizada. Se fosse para refazer tudo, isso me aborreceria, mas eu faria de novo a mesma coisa pois não acho que se pudesse agir de outra maneira".

Se a tortura na Argélia era um segredo de polichinelo, o mesmo não se pode dizer da vida sexual do virtuoso abade. Mais ainda, abbé Pierre mexe nos rígidos princípios da Igreja. Declara que a tentação carnal é "uma força vital poderosa", afirma o caráter sexual das relações entre Cristo e Madalena e aprova o desejo dos casais homossexuais terem seu "amor" reconhecido. Em recente polêmica, quando afirmei ter abandonado minha fé cristã em boa parte por imperativos do baixo ventre, fui qualificado por leitores como um devasso. O mesmo não diriam estes leitores deste santo homem. Com a diferença que abbé Pierre não teve a hombridade de jogar fora os grilhões que o oprimiam como ser humano, e portanto, dotado de sexo. Não teve sequer a coragem de largar a batina e viveu até a velhice na hipocrisia, em oposição ao magistério da Igreja à qual devia obediência.

A affaire abbé Pierre evoca um outro personagem curioso da história da França, um religioso muito cultuado por ateus do mundo todo. Em 1729, morreu em Étrépigny, França, o abade Jean Meslier, com a idade de 65 anos. Ao morrer, após mais de quarenta anos à frente de sua paróquia, resolveu dizer o que pensava do cristianismo em um gordo livro, singelamente intitulado Mémoire dés pensées et dés sentiments de Jean Meslier, prêtre, curé d'Étrépigny et de Balaives, sur une partie des erreurs et des abus de la conduite et du gouvernement des hommes où l'on voit des démonstrations claires et évidentes de la vanité et de la fausseté de toutes les divinités et de toutes les religions du monde pour être adressé à ses paroissiens aprés sa mort, et pour leur servir de témoignage de vérité à eux, et à tous leurs semblables.

Meslier, que vivera uma pacata vida de cura de aldeia, uma vez morto se sente livre para expressar o que sempre pensara. E solta o verbo:

- De onde tiramos que um Deus que seria essencialmente imutável e imóvel por sua natureza poderia no entanto mover algum corpo? De onde tiramos que um ser que não teria nenhuma extensão nem parte alguma seria no entanto imenso, e mesmo infinitamente esparso por toda a parte? De onde tiramos que um ser que não teria cabeça nem cérebro seria no entanto infinitamente sábio e esclarecido? De onde tiramos que um ser que não teria nenhuma qualidade nem nenhuma perfeição sensíveis seria no entanto infinitamente bom, infinitamente amável e infinitamente perfeito? De onde tiramos que um ser que não teria nem braços nem pernas e que sequer seria capaz de mover-se seria no entanto todo-poderoso e faria verdadeiramente todas as coisas? Quem teve a experiência disto?

- Depois disso, que pensem, que julguem, que digam e que façam tudo o que quiserem no mundo, pouco estou me preocupando; que os homens se ajeitem e governem como eles quiserem, que sejam sensatos ou sejam loucos, que sejam bons ou que sejam maus, que digam ou que mesmo façam o que quiserem depois de minha morte; não me preocupo; eu já quase não faço parte do que se faz no mundo; os mortos com os quais estou prestes a juntar-me não se incomodam mais com nada, não se intrometem mais em nada, e não se preocupam mais com nada. Terminarei então isto pelo nada, também sou pouco mais que nada, e em breve não serei nada.

Liberto pela morte dos horrores da Inquisição, Meslier desafia seus pares:

- Que os padres, que os pregadores façam então de meu corpo tudo que eles queiram; que eles o rasguem, que o cortem em pedaços, que eles o assem ou façam dele um fricassé, e que mesmo o comam se quiserem, no molho que desejarem, eu absolutamente não me preocupo; eu estarei então totalmente fora de seu poder, nada mais será capaz de me fazer medo.

Dois abades, duas apostasias. Meslier, dada a época em que vivia, não podia falar em vida. Seria fatal para sua saúde. Não é o mesmo caso de abbé Pierre, que vive numa França laica, onde qualquer heresia é permissível. O criador do movimento dos Emaús preferiu levar vida dupla, usufruindo por um lado os privilégios de sua condição de religioso coberto pela fama, sem renunciar, por outro lado, aos prazeres da carne. Mas pelo menos tornou pública sua verdade, em oposição aos milhares de padres que exercem, às escondidas - o mais das vezes com meninos - suas sexualidades.

Ao abbé Pierre, minha compreensão. A Meslier, admiração profunda.

31.10.2005

terça-feira, novembro 22, 2011
 
ACERVOS MONSTRUOSOS DE MEMÓRIA


Leitora me pergunta por que não gosto de museus. Não é bem que não goste. Penso inclusive, que todo marujo de primeira viagem deve visitá-los. Mas depois de visitados, perdem o interesse. São acervos imensos que exigem dias para serem vistos. Se você passar um dia no Louvre ou no Hermitage está longe de conhecê-los.

Quando cheguei a São Petersburgo, já estava farto de museus. Mas estava ali, diante do Palácio de Inverno dos tzares, e não entrar seria muita esnobação. Entrei. Perambulei por três horas e só consegui ver parte do setor de esculturas. De pintura, não vi nada, já estava exausto e com fome. Preferi acabar meu dia no Literaturnaya Café, que fica ali perto, na Nevsky Prospekt, e pelo menos tem vinho e boa comida.

Museus, hoje, me cansam. A pintura também. É um problema de memória. Os acervos são tamanhos que memória nenhuma os guarda. O último museu de porte que visitei foi o Thyssen-Bornemisza, em Madri. Viajava com minha filha e não o conhecia. Decidi entrar. Tinha perto de quarenta salas. Lá pela décima quinta, desisti. Não lembro de nenhum quadro que tenha visto. Como não lembro de nenhuma escultura do Hermitage. Se não consigo guardar na memória, de nada me servem os museus.

Mas tenho apreço pelos pequenos. Como o de Munch, em Oslo. O de Rodin, em Paris. E o de Sorolla, em Madri. São museus personalizados, que nos mostram a obra de um só autor. Poucas pessoas conhecem a obra de Sorolla, um magnífico aquarelista, que vale, em minha opinião, o Prado inteiro.

Já passei por quase todos os grandes museus da Europa, só no Prado tive trinta horas de aula. Quando penso em pintura, gosto de citar Fernando Pessoa e em seu ensaio intitulado Heróstrato. Se o leitor se sente um tanto inculto por não gostar de percorrer museus – escrevi há alguns anos - sugiro deter-se neste fragmento tipicamente pessoano:

"A pintura afundar-se-á. A fotografia privou-a de muito do seu atrativo. A futileza da estupidez privou-a de quase todo o resto. O que restou tem sido levado em despojo pelos colecionadores americanos. Um grande quadro significa uma coisa que um americano rico quer comprar porque outras pessoas gostariam de comprá-lo se pudessem. São assim os quadros postos em paralelo, não com poemas ou romances, mas com as primeiras edições de certos poemas ou romances. O museu torna-se uma coisa paralela, não à biblioteca, mas à biblioteca do bibliófilo. A apreciação da pintura torna-se não um paralelo à apreciação da literatura, mas à apreciação de edições. A crítica de arte cai gradativamente para as mãos dos negociantes de antigüidades".

Turista inteligente – dizia eu há pouco - é o que conhece os museus por fora e os bares por dentro. Em matéria de museus, tenho gratas lembranças de um na Alemanha, o Berlin Museum. Visitei-o bem antes da queda do Muro, na Berlim Ocidental. Pagava-se alguns marcos de ingresso e aos domingos enfrentava-se fila. Não lembro bem o que guardava - creio que trens antigos - e suponho que tampouco o lembrem suas centenas de visitantes. Mas não esqueci, nem visitante algum terá esquecido, o simpático café que ficava ao final dos corredores, onde um garçom servia um vodca com figo e pimenta, este sim, inolvidável. Os alemães, pragmáticos, haviam entendido como atrair público a um museu.

Pois... estive mês passado em Berlim, sedento pelo museu. Nada feito. Não existe mais. Assim sendo, nada de museus em Berlim. Nesta viagem, como aliás em viagens passadas, não visitei museu algum. Ou melhor, visitei. Sem querer. Nyhavn, em Copenhague, é um canal tomado por bares e restaurantes. Passei quatro ou cinco dias lá. Para acabar descobrindo que, em verdade, era um museu. Museu de antigos veleiros, ali ancorados para fazer paisagem. Tudo bem. Museu assim, eu topo.

Os museus se tornaram acervos monstruosos de memória, que memória nenhuma abarca. Melhor os bares.

segunda-feira, novembro 21, 2011
 
ANISTIA SE INSTALA NA
CASA-DA-MÃE-JOANA



O UOL noticia hoje que a Anistia Internacional (AI) vai acompanhar de perto a situação da segurança pública nos Estados brasileiros, especialmente o fortalecimento das milícias no Rio de Janeiro, e monitorar o impacto das grandes obras para os megaeventos que o país vai receber em 2014, com a Copa do Mundo, e, em 2016, as Olimpíadas no Rio. Sediado no Rio de Janeiro, o novo escritório da AI ainda está em fase de estruturação, mas já tem iniciado conversas com membros da sociedade civil, setores públicos e privados para ouvir as demandas e queixas de diversos segmentos.

Segundo Átila Roque, o diretor do novo escritório da organização no Brasil, a organização vai enfocar a sua atuação nas questões de segurança pública, de direitos dos povos indígenas e de direitos à moradia, assim como a contínua falta de justiça para os abusos cometidos durante a ditadura militar. “Teremos uma agenda da defesa de direitos, e, nesse sentido, grandes eixos de trabalho: uma agenda ampla de segurança pública envolvendo a situação prisional, a polícia, o Estado e a Justiça; a conexão entre desenvolvimento e direitos com reforma do espaço urbano acompanhando a agenda da Copa e Olimpíadas”, disse Roque.

No âmbito do desenvolvimento, o novo escritório da AI irá também acompanhar o impacto das grandes obras de desenvolvimento sobre as populações indígenas e rurais, como a construção de grandes hidrelétricas na Amazônia, como Santo Antônio, Jirau e Belo Monte. “São estas três áreas que sintetizam os assuntos domésticos que a Anistia vai se concentrar”, anunciou o novo diretor.

Onde estamos? Uma organização internacional se instala em um país soberano e pretende assumir as funções do governo? E ninguém diz nada. Nem o governo nem a imprensa. Após a decisão da Anistia Internacional, Dona Dilma, Judiciário, Legislativo, Ministério Público, Exército e polícia se tornam perfeitamente dispensáveis. Pelas declarações deste senhor, será a Anistia quem decidirá sobre a construção de hidrelétricas no país e demarcação de terras indígenas.

Ainda segundo o UOL, as milícias serão um dos pontos de grande atenção por parte dos membros da Anistia no Brasil. “É um assunto urgente. As milícias hoje são o assunto de segurança que mais desafia o Estado e a sociedade. O crime se organiza em torno de um impulso econômico que é bem mais volumoso, corrompe radicalmente o Estado por dentro, as estruturas da polícia, e tem vínculos no Legislativo. É o embrião do que pode ser considerado como uma máfia”, afirmou.

Ora, eu imaginava que o país tivesse uma polícia para tratar do assunto. Pelo que me consta, até o Exército está tentando impor a lei nas favelas. Ao que tudo indica, estas questões serão agora competência da Anistia Internacional. Em qualquer país decente, a arrogância com que o representante da organização se dirige aos brasileiros seria motivo de expulsão sumária do território nacional. Em Pindorama, o tal de Roque anuncia serenamente suas intenções de governar o país.

Que país é este? Cineastas e roqueiros gringos, que sequer têm voz em seus países, sentem-se à vontade no Brasil para determinar qual será nossa política de águas, de energia, de territórios indígenas.

Ano passado, o diretor do estúpido filme Avatar, James Cameron, em visita ao Brasil, criticou nesta a construção da usina de Belo Monte, no Rio Xingu. O cineasta disse que iria pedir apoio de congressistas norte-americanos na luta contra o projeto. “Esta não é uma questão só do Brasil, mas do mundo todo. Vou para Washington para conversar com senadores”, disse. Em junho passado, a Anistia Internacional também pediu a suspensão do projeto de construção, tendo encaminhado o pedido, no dia seguinte, ao Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Em novembro de 2009, o cantor britânico Sting reuniu-se em São Paulo com os líderes caiapós Raoni e Megaron Txucarramae, para chamar atenção para a questão da construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. Sting Explicou que é estrangeiro, e que este é um “assunto brasileiro - mas de todos os brasileiros”. “Há razões econômicas para que seja construída e razões ambientais para que não seja. O povo de Raoni precisa ser parte do processo”, alertou.

Estrangeiro, mas dá seu pitaco em assuntos brasileiros. Não é de hoje que Sting mete sua colher torta em questões nossas. Depois do I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em Altamira (PA), em 1989, Sting fundou com sua mulher, Trudie, a Rainforest Foundation, que, entre outros projetos, apoiou o reconhecimento oficial de terras indígenas no Xingu. A Rainforest passou a apoiar projetos no Parque Indígena do Xingu, entre eles o monitoramento dos limites do parque para prevenir invasões e o desenvolvimento de um sistema de educação bilíngue para 14 etnias que ali vivem.

Faça um esforço de imaginação, leitor. Imagine uma entidade brasileira pretendendo determinar a distribuição de territórios nos Estados Unidos ou Reino Unido. Só nesta casa-da-mãe-Joana para se admitir tais intervenções.

Há dois meses, eu comentava notícia sobre o cacique Raoni Metuktire, que recebeu o título de cidadão honorário de Paris. A capital da França, como salientava o redator, supondo que os leitores contemporâneos já não mais saibam que Paris é a capital da França. Raoni estava no país em campanha pela suspensão das obras da Usina de Belo Monte, no Rio Xingu (PA). A prefeitura de Paris informou que a escolha de Raoni foi feita baseada na atuação em defesa da Floresta Amazônica e dos povos indígenas do Brasil. Os franceses o consideram uma espécie de símbolo de luta pelos direitos humanos, pelo desenvolvimento sustentável e pela conservação da biodiversidade. Raoni é 12º cidadão honorário de Paris. Ao receber o título, Raoni usava trajes indígenas.

Raoni, se alguém não lembra, é aquele cacique que, nos anos 80, exibia orgulhosamente aos jornais a borduna com que matou onze peões de uma fazenda. Não só permaneceu impune, totalmente alheio à legislação brasileira, como foi recebido com honras de chefe de Estado na Europa. O papa João Paulo II, François Mitterrand e os reis da Espanha, entre outros, o receberam como líder indígena. Raoni, com seus belfos, se deu inclusive ao luxo de expor sua pintura em Paris. Um dos quadros do assassino atingiu US$ 1.600 em uma lista de preços que começava a partir de mil dólares. No final do ano passado, Raoni recebeu o título de Dr. Honoris Causa pela UFMT (Universidade Federal do Mato Grosso).

É este assassino, que se orgulha de seus feitos, que se insurge contra uma hidrelétrica no país. Usina que foi planejada de modo a não afetar territórios indígenas. É este bruto que recebe total apoio de artistas e estadistas estrangeiros.

Nada de espantar que a Anistia Internacional se sinta plenamente autorizada a determinar qual será a política nacional, em termos de polícia, segurança ou territórios e até mesmo da organização da Copa.

domingo, novembro 20, 2011
 
TABAGISMO É LEGADO DOS BUGRES


Pessoas que cometeram erros na juventude costumam flagelar-se quais xiitas na idade madura. Exemplo típico disto é o recórter tucanopapista hidrófobo que assina coluna na Veja. Idiota e comunista quando jovem, hoje não passa dia sem que xingue os comunistas e petistas. Outro é o astrólogo Aiatolavo de Carvalho, também comunista quando jovem, e que hoje cria inimigos fictícios para combatê-los mais confortavelmente. Elegeu como alvo o Fórum de São Paulo, uma espécie de Woodstcok das esquerdas, que morreu com a queda do Muro. Mas Aiatolavo precisa de um inimigo para bater. Promoveu então o ridículo fórum a grande inimigo do Ocidente, capaz de desestabilizar o regime capitalista.

Um outro que se fustiga impiedosamente é o tal de Júlio Severo. Em cada dez artigos que escreve, nove são condenando o homossexualismo. Está precisando urgentemente de um bafo na nuca. Tanto Júlio como Aiatolavo se dizem ameaçados de morte no Brasil. Nisto nada diferem daqueles comunistas que um dia buscaram mordomias na Europa, em nome de hipotéticas perseguições no Brasil.

Quando em Estocolmo – isso há quarenta anos – fui na polícia renovar minha permissão de estada. Herr Konstapel (policial em sueco) me perguntou:

- Profissão?
- Jornalista.
- Nacionalidade?
- Brasileira.
- Ah! Então o senhor quer asilo político?

Oh não, jag ska tacka nej, como pode muito bem ver Herr Konstapel, nesse formulário peço apenas uma permissão de estada, agradeço a generosa oferta, que aliás é pertinente. Meu país vive uma ditadura, sei disso, os dias não são os melhores para quem pensa e escreve o que pensa. Mas antes de fugir de ditaduras, Herr Konstapel, estou fugindo do país todo, fujo exatamente daquilo que para vossos patrícios é sinônimo de charme e exotismo, fujo do carnaval e do futebol, do samba e da miséria, da indigência mental e da corrupção, quero tirar umas férias do subdesenvolvimento, viver em um território onde o homem sofre os problemas da condição humana e não os da condição animal. Muito antes de os militares tomarem o poder, min Herr, eu já não suportava os civis.

Brasileiros me xingaram em Estocolmo. Como? A polícia te oferece asilo político e tu o recusas? Nem sabes o que estás perdendo. Ora, eu havia saído pela porta da frente de meu país, e mentir não está entre meus hábitos. Recusei a generosa oferta. Mas não era disto que pretendia falar. E sim de artigo de Drauzio Varella, na Folha de São Paulo de hoje, no qual o médico desfecha suas baterias contra o tabagismo.

Ex-fumante, Varella tem atitude semelhante às do recórter tucanopapista hidrófobo e do astrólogo. Pune-se com correntes fustigando o próprio lombo, por ter sido um dia fumante.

“Adquiri a convicção de que a nicotina causa a mais devastadora das dependências químicas. O cigarro é o mais abjeto dos crimes já cometidos pelo capitalismo internacional. Você acha que exagero, leitor? Compare-o com outros grandes delitos capitalistas; a escravidão, por exemplo: quantos viveram como escravos? E quantas crianças, mulheres e homens foram escravizados pela dependência de nicotina desde que essa praga se espalhou pelo mundo, a partir do início do século 20?”

Quando descobri ter sido premiado, há dois anos, por um carcinoma de palato, a primeira pergunta que ouvi dos médicos foi: você fuma?

Não, nunca fumei na vida. A menos que meu câncer tenha sido provocado por uma tragada que dei, lá pelos meus dez anos. Em uma pecinha de teatro na escola, fazíamos o papel de gaúchos. Como as professoras achavam que gaúcho pra ser gaúcho tem de fumar, permitiram à piazada chupar câncer. Foi a festa para meus colegas. Quanto a mim, pus o cigarro na boca, não gostei e o joguei pela janela.

Suponho que aquela tragada, há mais de meio século, não tenha sido a causa de meus dissabores em 2009. Mas aventei a meus médicos a hipótese do fumo passivo, circunstância da qual dificilmente escapamos. Apesar do que os jornais afirmam sobre o fumo passivo, todos caíram na gargalhada.

Tenho amigas que fumam e outras que fumavam. Estas últimas sofreram para largar o hábito. Não passa dia sem que me falem que a culpa é da publicidade, “que nos conduz a fumar”. Ora, nasci tão exposto quanto elas a esta publicidade, vivi minha adolescência vendo filmes onde não se sabia quem fumava mais, se o mocinho ou o bandido.

Meus parentes todos fumavam. No entanto, jamais fumei. Há quem fale na propaganda subliminar do cinema. Podem atar-me em uma cadeira e passar filmes 24 horas por dia com propaganda subliminar do cigarro. Comigo não adianta. Ninguém me obriga a fazer o que não gosto.

Que o cigarro provoca câncer – e não só câncer, como várias outras doenças letais -, disto não temos dúvida. Quem fuma está matematicamente encurtando seus dias. É uma opção. Mas que depois não se queixem.

Certa vez, um amigo fumante – que deixou de fumar mas hoje só tem 22% de capacidade respiratória – fez um cursinho contra o tabagismo. Teve em mãos fotos de pulmões de fumantes e não-fumantes. Procurou-me em meu boteco com o fervor de um cristão novo. “Janer, pelo amor de Deus, tens de parar de fumar”. Ora, ele sabia muito bem que eu jamais havia fumado.

Drauzio Varella, em suas catilinárias contra o tabagismo, deixa entrever algo pior que o arrependimento de um ex-tabagista. Culpa o capitalismo pela dependência do cigarro. No fundo, se revela um antigo comunossauro que parece atribuir a Wall Street os cânceres e enfisemas produzidos pela nicotina. Ora, esta dependência está bem mais atrás.

O tabagismo foi o grande legado indígena à civilização. Toda pessoa culta sabe, mas nem toda pessoa culta ousa afirmar, que o tabaco foi importado da América Latina, onde era consumido pelos bugres, para a França, por Jean Nicot, daí nicotina. Os atuais cânceres e enfisemas - os politicamente corretos que me desculpem - são em boa parte herança do bon sauvage de nosso continente. Desde algum tempo, o tabagismo virou prática de gente pobre. Segundo pesquisas recentes, quase 33% dos americanos adultos que vivem abaixo do nível de pobreza fumam, contra 22% dos que estão acima desse nível.

Estamos entrando em uma era de uma nova Lei Seca. Desta vez, a dos cigarros. Os legisladores, em seu moralismo antitabagista, acabarão por fazer a fortuna dos mercadores do ilícito. A continuar assim, o tabaco terá em breve o mesmo ou maior prestígio que a maconha ou cocaína.

Hábitos sociais largamente difundidos não se combatem com proibições. Os EUA sabem disso e não parecem ter tirado maiores lições da Lei Seca, que durou apenas treze anos, onze meses e 24 dias. Se alguma autoridade quiser reduzir o tabagismo, é simples. Basta associar o cigarro com pobreza. Até os pobres pensarão duas vezes ao levar um toco de câncer aos lábios. Nesta época de culto ao dinheiro, mais eficaz que prevenir contra doenças é marcar o fumante com o estigma de pobre. Proibir só aumenta o consumo.

“O primeiro crime foi perpetrado contra algumas centenas de milhares de pessoas; o segundo contra mais de 1 bilhão – diz Varella -. Na história da humanidade, jamais o interesse financeiro de meia dúzia de grupos multinacionais disseminou tantas mortes pelos cinco continentes: 5 milhões por ano - 200 mil das quais no Brasil”.

Nada disso, doutor. O tabagismo nada tem a ver com capitalismo. Fumava-se tanto – ou mais – nos antigos países socialistas como nos capitalistas.

Tabagismo é herança dos bugres.

sábado, novembro 19, 2011
 
MINISTRO GARANTE
CONSUMO DE CRACK



Em Copenhague, visitei Christiania. É uma espécie de estado dentro do Estado, um território livre onde se pode vender e consumir drogas. O local, squaterizado em 1971, foi cuidadosamente arranjado de modo a parecer terra arrasada após algum conflito nuclear, no melhor estilo dos filmes-catástrofe de Hollywood.

Naquela época – leio na rede - muitas pessoas provenientes de diversas grandes cidades dinamarquesas sentiam-se traídas pelo governo, acreditando haver certo descaso quanto ao sistema habitacional por parte dos políticos e seus representantes. Os primeiros ocupantes da área que mais tarde viria a ser nomeada de Christiania tinham como ideal comum a rejeição a certos valores morais e convenções sociais e, principalmente, aos ideais capitalistas que assolaram a Europa no contexto pós-Segunda Guerra Mundial. Os habitantes de Christiania também queriam um espaço verde e aberto, para que pudessem criar seus filhos longe do crescente tumulto de Copenhague.

Hoje, ali se vende abertamente maconha, haxixe, cogumelos alucinógenos e algumas coisas mais que eu, leigo no assunto, não sei quais são. Numa cidade rica como a capital dinamarquesa, não há ruas calçadas, mas apenas chão de terra. No bairro, vê-se quase só marmanjos entre os vinte e poucos e trinta anos, todos desocupados em pleno horário de trabalho. Mulheres são escassas e, de modo geral, parecem ser turistas.

Justo naqueles dias em que perambulava por Christiania, li na Folha de São Paulo que território semelhante foi inaugurado aqui na cidade, na rua Helvétia, há uns quinze minutos a pé aqui de casa. Escrevi sobre o assunto em 2009. Enquanto José Serra, candidato à Presidência da República, tentava lançar seu nome através de uma legislação antifumo demagógica e pior – inconstitucional -, a droga corria solta nas ruas de São Paulo. Na região da estação da Luz, havia um vasto território onde o consumo de toda e qualquer droga era – e ainda é - livre. Como a droga mais consumida era o crack, convencionou-se chamar aquele espaço de Cracolândia. Mas lá você encontra o que quiser, desde a canabis até a cocaína.

Não imagine o leitor que este comércio é operado na clandestinidade. Nada disso. Ocorre à luz do dia, em plena rua, na frente de viaturas de policiais. Não gosto muito da palavra dantesco, me parece um lugar comum, mas é a única que encontro para definir o local. Dante ilustrado por Doré. Certo dia, passei de táxi por uma extremidade da rua Guaianases, a que mais concentra drogados. Dantesco e assustador. Centenas de zumbis, crianças e adultos, homens e mulheres, enrolados em cobertores e capuzes, cachimbando crack, coalhavam a rua. Nenhum taxista ousa entrar no pedaço. Tudo isto no centro da mais imponente capital do continente.

A Prefeitura quer revitalizar a Cracolândia. Para isso, está tocando um projeto que chamou de Nova Luz. Uma vasta área está sendo desapropriada e será demolida para dar lugar a um centro administrativo. O que me parece uma ótica de cegos. Centros administrativos se tornam desertos depois das seis da tarde. Mesmo que os marginais sejam afastados durante o dia, todos voltarão à noite a seu habitat. Todas as semanas, os jornais nos trazem fotos de pobres coitados fumando crack. Alguns permanecem dias deitados, já nem conseguem parar em pé. Só a polícia, que tem um distrito policial justo na Cracolândia, parece não ver nada.

Ou melhor, vê. Só sendo cego e surdo para não ver. Vê mas não faz nada. Considera-se que o problema é social, não policial. Às vezes, para mostrar serviço, esvaziam as ruas do crack por algumas horas. Apenas por algumas horas. Ninguém é preso, nem usuários nem traficantes. Em pouco tempo, no mesmo dia, os zumbis estão de volta à Guaianases.

Em reportagem da Agência Brasil, o psicólogo Lucas Carvalho afirmava que a Cracolândia, em vez de sumir, “está se fragmentando em diversos pontos da cidade". Se você passar pelo centro da cidade, em torno à praça da República, verá farrapos humanos amontoados na rua, sempre em grupo e sempre enrolados em cobertores, puxando crack à luz do dia, com a tranqüilidade dos justos. A polícia nada faz, afinal o “problema é social”. A polícia será chamada, prometia então Serra, para retirar fumantes de restaurantes.

A fragmentação da Cracolândia, segundo Carvalho, está facilitando o acesso das crianças à droga. "O crack está chegando mais perto delas, antes precisava ir até a Cracolândia. Agora, a Cracolândia está por aí", afirmou. A única providência até agora tomada por ONGs que querem resolver o problema foi fornecer um cachimbo de madeira aos usuários de crack, com o objetivo de incentivar o não compartilhamento do instrumento. Isso porque os viciados constroem modelos artesanais de metal, que queimam a boca, causando feridas, e podem transmitir doenças quando compartilhado com outras pessoas.

Na época, vinte órgãos públicos e mais de 250 policiais não foram suficientes para acabar com a cena que se vê há 20 anos na Cracolândia. Seis horas após o início de uma operação destinada a revitalizar uma das áreas mais degradadas da capital, centenas de viciados voltaram às ruas, com cachimbos em mãos e cobertas nas costas, nos pontos tradicionais de consumo da droga. Em vez de atacar o problema com o rigor devido, autoridades fornecem cachimbos aos pobres diabos para que se droguem sem maiores problemas.

A novidade, agora, é que a Cracolândia foi oficializada. Centenas de zumbis tomaram um trecho da rua Helvétia e interromperam o tráfico de carros e ônibus. Temos uma Christiania em São Paulo. A polícia parece estar contente. É melhor que os drogados fiquem confinados a um espaço, em vez de espalharem-se pela cidade. Filosofia de quem não quer ver o que existe a seu redor. O crack hoje está disseminado por 90% das cidades brasileiras e veio para ficar.

Leio na Folha de hoje que o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, ofereceu verba para garantir o consumo de crack. Que será repassada até o fim deste ano para a Prefeitura de São Paulo implantar oito consultórios de rua para atendimento a usuários de drogas. A maioria desses postos móveis ficará na Cracolândia. A idéia é que as unidades funcionem 24 horas e tenham médicos, enfermeiros e psicólogos. As equipes poderão, segundo o ministro, internar os dependentes químicos para tratamento.

"É como se fosse um trailer, uma Kombi que fica 24 horas. Se o profissional de saúde avaliar que aquela pessoa corre risco de vida, nós temos protocolos claros da internação involuntária, inclusive defendida pela Organização Mundial da Saúde", declara Alexandre Padilha.

O ministro establece uma diferença bizantina entre internação involuntária e internação compulsória. No caso da primeira, que será adotada pelos consultórios de rua em São Paulo, o recolhimento do viciado se dá após uma análise minuciosa de sua situação, sobretudo se a pessoa está correndo o risco de morrer. Internação compulsória seria um procedimento mais drástico. Viciados que vivem na rua são recolhidos independentemente de correrem risco iminente de morrer.

Ou seja, ao oficializar a Christiania paulistana, o ministro deixa claro que só vai tratar do problema quando o drogado estiver morrendo. Se não estiver morrendo, que continue se drogando até a hora da morte. Falei em Christiania, mas há uma diferença entre o território liberado para a droga em Copenhague e o de São Paulo. Se há algo podre no reino da Dinamarca, pelo menos não vemos moribundos nas ruas. Nem os drogados interrompem o tráfego dos cidadãos.

Chez nous, quando os pobres diabos estiverem com o pé na cova, o ministério da Saúde pensará no assunto. Antes, não.

sexta-feira, novembro 18, 2011
 
DE RETOUR


Estava em Paris e era novembro. Conversava com um bom amigo no Rélais Odéon, o primeiro bebedouro ao qual acorro mal chego a Paris. Ele voltava do Japão, eu do Leste europeu. Estávamos na terrasse e um cálido sol outonal nos envolvia. De repente, tive uma súbita percepção de mau agouro:

- Triste saber que um dia esta vidinha vai acabar!

- C’est vrai! – me respondeu. - Mais c’est comme ça!

É o que sinto ante a morte. Medo nenhum, mas sei que será triste. Estou voltando de mais uma viagem, desta vez comecei por Berlim, fui até Copenhague, voltei a Praga e desviei para Karlovy Vary, que ainda não conhecia. Divina. É uma cidade pequena – 60 mil habitantes – mas com uma arquitetura imponente. Estava cercada por um outono histérico, que a tornava ainda mais charmosa. A cidadezinha, cercada de vermelho. Está cheia de termas. Mas atenção: se você não está em busca de águas, três dias são mais que suficientes. Certo, o mundo está cheio de pequenas cidades lindas: Toledo, Cuenca, Ronda, Granada, Siena, Orvieto, Ravello, Amalfi, Positano, Taormina, e até aqui não saí da Espanha e Itália. Fora as que não conheço. Mas Karlovy Vary me impactou. Jamais vi cidade pequena tão solene.

Se você quiser ter uma idéia da cidade, procure os filmes As Férias da Minha Vida, com a atriz Queen Latifah, e Cassino Royale, estrelado por Daniel Craig, com os interiores do majestoso Grandhotel Pupp. Em Karlovy Vary, deguste o Becherovka, um licor tcheco inventado por Ian Becher (daí o nome), cuja excelência seria devida às águas da cidade. Segundo a lenda, apenas duas pessoas sabem quais são os trinta ingredientes da fórmula e sua exata proporção. Recomendo vivamente.

Quem me lê sabe que viajo para visitar bares. Viajante inteligente é o que vê museus por fora e bares por dentro. Desta vez, no entanto, passei uns cinco dias em um museu. Explico. O canal de Nyhavn, em Copenhague, está repleto de bares e restaurantes. Mas não deixa de ser um museu. No caso, de veleiros antigos, que ali estão atracados para fazer paisagem. Há outros museus que adoro na Europa. São os museos del jamón, da Espanha. Em verdade, é uma rede de bares cujas paredes e tetos estão cobertas por presuntos. Certa vez, li uma notícia sobre alguém que morreu soterrado por presuntos. Só podia ser na Espanha. Era. Estes museus peculiares, costumo visitá-los várias vezes na semana.

Praga, turistas demais. A ponte Carlos é uma procissão contínua. A cidade é linda, sem dúvida alguma, mas a impressão que se tem é que nela não existem tchecos. Há quem a julgue mais linda que Paris. Talvez. Mas é muito monumental. Prefiro Paris. Tem mais botecos entre os monumentos. Sin decir que estoy con las bisagras emohecidas, e padeci nas colinas e escadarias de Praga. Sem ter muitas simpatia por Kafka, estive na casa em que viveu. Isto é, no bar que hoje substitui a casa. Fica em frente ao relógio astronômico, que é um grande atrativo turístico da cidade.

Construído no século XV e instalado na principal praça da cidade medieval, apresenta as horas nos diversos sistemas de medição então utilizados, como o romano e o germânico e o da Boêmia. Tem ainda outras funções: mostra o horário da aurora e do poente para cada dia do ano, o signo do zodíaco e o ciclo lunar, além de muitas outras informações, incluindo um calendário.

O espetáculo apresentado a cada hora, que reúne multidões de turistas, cá entre nós, é um tanto pobre. Doze bonecos representando os apóstolos desfilam, a figura da morte puxa um sino, e um palhaço move a cabeça. Médio, mesmo para a Idade Média. Mas Kafka vivia sem dúvida em um apartamento privilegiado.

De Praga fui para Budapeste, que também já conhecia. E onde me viciei no Café New York, certamente o mais solene que conheço na Europa. Descobri que o café pertence hoje a um hotel, o Boscolo, e nele fiz reserva, para não ter de caminhar muito até o bebedouro. Achei barato, 124 euros para duas pessoas. O que não sabia era que o Boscolo era um hotel cinco estrelas.

É a segunda vez que me hospedo em um cinco estrelas sem saber. As outras, foram no Metropole, em Bruxelas. Também busquei o hotel em função do bar do mesmo nome, no qual adoro sentar-me, ao lado de uma Leffe e de meus jornais. Era também barato. Para se ter uma idéia: agora em Paris, parei em um quatro estrelas na Rue des Écoles. Por um quarto exíguo e bastante precário, paguei 280 euros. Mais que o dobro do Boscolo. Ou seja: em certos países, não hesite ante um cinco estrelas. Pode ser bem mais barato que um menos estrelado em Paris ou Roma.

Volto ao Café New York. Soleníssimo, tem baldaquinos que lembram os de Bernini. Passei cinco dias no bar. Café da manhã e um vinho para rematar à noite. Me senti um pouco nalgum boteco privado do vice-deus no Vaticano. Visitei também o Gundel, considerado um dos melhores restaurantes do Leste europeu. E degustei, ao som de violinos magiares entoando czardas, um Svatovavřinecke Jakostini 2006. Ousei ainda pelos Kékfrankos Sopron, pelos Kadarka Szekszard e pelos Szekszárdi Tužilac.

Até parece que sou sommelier especializado em vinhos tchecos. Nada disso. Eu pedia pelo nome. Quanto mais impronunciável, melhor. Não tive decepções. As palavras me fascinam. Já namorei inclusive uma peoniana. O que nela me atraiu, pelo menos de início, é que seu nome estava cheio de kas e ves.

Não imagine o leitor que sou milionário. Nesses restaurantes solenes, paguei menos do que pagaria em São Paulo por um restaurante apenas decente. Em Paris, tenho de admitir, a hotelaria está cara. Mas os restaurantes continuam a preços humanos. Revisitei o Procope, onde não encontrei aquele camembert divino que um dia comi lá. Mas o reencontrei no Aux Charpentiers. Um interlocutor chegou a aventar: é a crise na França. Nada disso. No dia em que na França faltar camembert, a Europa já terá naufragado.

Hoje, São Paulo. Você viajou, gozou seus dias, passou bem? Então agora pague o preço. Na chegada em Guarulhos, uma fila de cerca de mil pessoas, daquelas filas de ida-e-volta, atendida inicialmente por um único funcionário da aduana. Depois chegaram mais barnabés e a fila começou a andar mais rápido. Mesmo assim, foram 45 minutos de espera. O mesmo tempo que levei para chegar de Guarulhos até em casa.

Eu, brasileiro, gastei 15 minutos ou pouco mais de burocracia nos países em que andei. Para entrar em meu país, preciso de quase uma hora. É nestes momentos que temos uma outra percepção da existência:

- Não seria triste saber que esta vidinha um dia vai acabar!

quinta-feira, novembro 17, 2011
 
DESDE O FUNDO DO POÇO À
UMA VIDA PLENA DE GRAÇA



Senhor pastor:

Houve época em que cri em um deus onipotente e salvador e muitas vezes a ele orei por minha salvação, pela salvação de meus próximos e mesmo da humanidade. Foram meus dias de adolescência, pastor. Justo naqueles dias, fui assaltado pelo clamor, não dos povos – como fala o Livro – mas pelo clamor da carne, clamor tirano, imperioso e impossível de ser domado. Por melhores propósitos que fizesse, acabava dominado pelos ditos prazeres da carne. Dizem que a carne é fraca, pastor. Nada disso, a carne é forte. Fraco é o espírito, que sempre acaba cedendo à carne.

Entrava em pânico, via à minha frente as chamas eternas do Hades, onde tudo é choro e ranger de dentes. Me sentia condenado ao convívio com demônios. Arrependia-me, fazia atos de contrição, confessava meus pecados a sacerdotes e recebia a absolvição. Por um dia ou dois, conseguia viver sem pavores. Mas não mais que um dia ou dois. No terceiro, eu já estava pecando de novo. As noites de tempestade eram noites de pavor. Talvez fosse megalomania. Mas cada raio que caía, eu sentia que era dirigido a mim.

Eu era pobre, pastor. Filho de camponeses, nunca tive facilidades em minha infância. Muito menos na adolescência. Fiz minhas universidades mal tendo dinheiro para o restaurante universitário. Vivi em repúblicas abomináveis, pequenos apartamentos, sem grana suficiente para tomar um vinho decente. A bebida mais ao alcance de minha boca era a mais barata, a cachaça. Ainda adolescente, tomei grandes porres de cachaça. Naqueles dias de pouca grana, bebia muito e bebia mal. Em minha juventude, pastor, eu estava no fundo do poço. O senhor Jesuis era um encosto em minha vida, despacho de catimbó feito a Exu, praga rogada por urubu para infernar meus dias.

Foi quando então, pastor, durante três dias e três noites, li atentamente a Bíblia. Foram dias em que quase não comi. À noite, pegava um cavalo em pêlo, sem freio nem buçal, e saía a galopar nas madrugadas, olhando o céu estrelado e esperando ouvir daquele universo magnífico alguma resposta. Não ouvi nada, pastor. Foram três dias e três noites decisivas em minha vida. A partir da leitura do Livro, tornei-me ateu. Aquele deus proposto pelas Escrituras, que se pretendia criador daquele firmamento esplêndido e cravejado de estrelas, que só vemos na pampa ou no deserto, sempre longe das cidades, não me convencia. Aquele deus matava e exterminava, mandava matar e exterminar. Não me servia.

Disse então a mim mesmo: sai de mim, Coisa Ruim! Me larga, ó Espírito Castrador, sai de minha vida, ó Supremo Estraga-prazeres! Desapareçam de minha vida vocês três, o Pai, o Filho e o Paráclito. E a Mãe também, antes que me esqueça. E todos os santos do céu e todos os padres de todas as igrejas. Xô, Espírito Imundo, xô, Assassino de Povos. Ouste, Pai das Doenças e Exterminador de Nações. Rua de minha alma, ó velho Deus castrado!

Então, pastor, tudo mudou em minha vida. Saí do fundo do poço, rumo à luz do bocal. Mulheres começaram a cair-me dos céus, justo daqueles céus mudos aos quais eu pedia perdão por meus pecados. Como perdera a noção de pecado, nunca mais pequei. Tornei-me um santo homem e procurei imitar os bíblicos patriarcas. Curti plenamente os prazeres que tanto apraziam ao rei Davi, ao rei Salomão, à Sulamita. Verdade que nunca consegui sustentar setecentas mulheres e trezentas concubinas. Mas fiz o que estava a meu modesto alcance.

Por mais de quarenta anos, as mulheres me caíram nos braços como o maná caiu do alto por quarenta anos para saciar a fome do Povo Eleito. Comecei minha vida afetiva com duas, às quais muito amei. Por circunstâncias dos dias, perdi uma. Vivi quatro décadas de muito carinho e cumplicidades com a segunda. Fui feliz em meu casamento. Divórcios, separações, o espírito do ciúmes, amargura, traições, nunca rondaram minha existência.

Quando minha amada partiu, não acusei deus algum, afinal não acreditava em nenhum. Estas duas primeiras amadas logo se multiplicaram por dois, cinco, dez, vinte, cinqüenta. Não saberia dizer quantas, nunca contei. Mas digamos que a metade da “listina” de Leporello. Corri atrás delas com a hybris de um fauno grego, para compensar os dias de vacas magras e sem leite de minha juventude. Após deixar de crer no tal de deus, minha vida foi uma profusão de prazeres. Corri nu atrás de valquírias nuas pelos bosques de Estocolmo, em plena luz da meia-noite. Isto, pastor, teu deus não confere aos mortais, exceto se forem majestades apaniguadas pelo Senhor. Isto é ventura só concedida pelos deuses lúbricos do Valhala. Tack tack, Odin!

Uma vez descrente, apesar de pobre consegui educar-me. Fiz duas faculdades, três pós-graduações no Exterior, viajei por todos os países da Europa, por mais alguns do Leste europeu, pela África, Estados Unidos, Canadá e América Latina. Nasci nos peraus do Upamaruty, em um rancho de pau-a-pique e fiz doutorado em Paris. Consegui escapar de meu pequeno mundinho e sai a navegar pela vastidão do anecúmeno. Au bord’elle, la Seine, conheci uma peoniana adorável, a quem dediquei minha tese. Havia também Úrsula, uma polonesa, que me sussurrava: “mon ours tropical”. Música para meus ouvidos.

Não cheguei a amar a filha de Faraó, muito menos moabitas, amonitas, edomitas, sidônias e hetéias, como o sábio rei Salomão. Mas tive namoradas lindas em várias cidades do mundo. Desde suecas a francesas. Desde macedônias até mesmo a turcomenas e usbeques, passando por polonesas e russas. Adorei a turcomena. Era de Achkhabad, palavra que soava deliciosamente à minha fome de exotismo. Uma vez ateu, fascinou-me a idéia de ouvir mulheres gemendo em línguas que desconheço. E as ouvi. Paris sempre foi pródiga em estrangeiras de todos azimutes e não recusei o que a cidade generosamente me oferecia. Tive do bom e do melhor, como dizem suas ovelhas, senhor pastor. Mas só depois que deixei de crer.

Ateu, fui abençoado com dinheiro e vida confortável. De camponês tosco, tive acesso a línguas, à filosofia, à literatura, à música erudita, a óperas, em suma, ao dito mundo da cultura. De Teixeirinha passei a Mozart, de Luiz Gonzaga a Bizet. Abandonei a cachaça e passei a cultivar bons vinhos e bons uísques. Do mondongo fui promovido ao foie gras, do arroz com feijão às andouilletes. Curti a boa gastronomia da Espanha, França, Itália, Alemanha, Portugal. Percorri as cidades mais esplendorosas do Ocidente. Vivi em três prestigiosas capitais da Europa e em quatro grandes capitais de meu país.

Perambulei por paisagens magníficas, que me fizeram chorar. A beleza extrema sempre me provoca lágrimas. Andei pelo deserto, por oueds, montanhas, dunas, fjords, rias e ventisqueros. Chorei nos Andes, chorei nos Alpes, chorei no Saara, chorei nas costas da Noruega, chorei no Estreito de Magalhães. Chorei também em Santorini. De Madri, saí chorando. Eu estava em uma bodega, tudo era cores, dança, música, canções, madriles lindas, muito vinho, odores de assado bom, os sons rascantes de uma língua que adoro.

Quando me dei conta que, dali a duas horas, estaria voltando ao Brasil, chorei como um terneiro desmamado. Fui chorando até o aeroporto. Não porque estivesse voltando ao Brasil. Mas porque estava abandonando a festa. Dentro de pouco eu estaria voando, espremido num assento apertado, rumo a um país sin flamenco ni cante hondo, sin bailaoras ni cantaores, sin cochinillos ni lechales. Na bodega, continuariam todos cantando e dançando, comendo e bebendo. Muito chorei em minha vida, pastor. Raras vezes de tristeza. O mais das vezes, foi por deslumbramento, perplexidade ante a beleza. Felicidade também nos faz chorar. Choro também com certas árias de Nabucco, Carmen, Don Giovanni, Norma.

Depois que abandonei o tal de Deus, senhor pastor, passei a viajar quase todos os anos à Europa. (Quando nele acreditava, só conseguia ir de Dom Pedrito a Ponche Verde). Fiz pelo menos cinco travessias divinas do Atlântico – com perdão pelo trocadilho – de navio. Sabe, pastor? Aqueles navios cheios de Emmas Bovarys sedentas para conhecer o mundo e experimentar emoções outras que não as medíocres emoções proporcionadas pelo Charles. Vivi grandes momentos, “ao quente arfar das vibrações marinhas”, como canta o poeta. Fiz cruzeiros também divinos pelo Mediterrâneo, pelo Báltico, pelo mar do Norte e pelo mar Negro, pelo Egeu, pelo Adriático e pelos Canales Fueguinos.

Durante pelo menos uns trinta anos, sempre celebrei a bona-chira nos mais antigos e acolhedores restaurantes da Europa, com minha Baixinha adorada. Agora que ela partiu, ora a celebro com minha filha, ora com alguma namorada. E com meus amigos. Bastou-me abandonar Deus, pastor, e minha vida se tornou repleta de bênçãos, que me caíam dos céus em catadupas.

Fui salvo por minha descrença, pastor. Quando cria em Deus, era um adolescente fodido e sem nenhum vintém. Não tinha nem como convidar uma amiga para um bom jantar. Bastou-me deixar de crer e a vida se tornou linda. Cheguei aos sessenta jovem e cultivando minhas antigas amadas. Não tenho carro, nem nacional nem importado, como ostentam vossos crentes, é verdade. Mas isto é opção minha. Com carro não se vai longe. Ora, eu gosto de ir longe.

Sem ser rico, vivo bem. Não tenho contas em vermelho, nem nome sujo na praça, nem problemas na justiça. Jamais fiz empréstimos. Não sei o que seja um cheque sem fundo. Muito menos problemas familiares. Hoje, minhas únicas dívidas são luz, água e condomínio. Vivo em bairro bom, prédio ótimo, apartamento confortável. Ano passado, regalei uma antiga namorada com uma viagem a Paris, Barcelona e Madri. Com uma noite em Bruxelas, só para curtir um café que adoro.

À minha filha – doravante designada Primeira Namorada – dei de presente os fjords noruegueses, o sol da meia-noite, Estocolmo e o arquipélago de Estocolmo e de novo Paris. Na próxima primavera européia, estou combinando um giro pela Itália com uma amiga da Finlândia. No outono, penso partir com a Primeira Namorada rumo a Madri e às ilhas Canárias. Madri porque não concebo ir a Espanha sem visitar Madri. Ilhas Canárias, porque quero passear entre os vulcões de Lanzarote e comer carnes assadas no calor das lavas.

Por vários anos vivi soterrado no fundo do poço. O senhor Jesuis sempre foi um atraso em minha vida. Tudo só se tornou lindo, divino e maravilhoso quando o abandonei. Sei que o senhor pastor, por questões de fé, neste ano que começa, não poderá gozar dos prazeres que gozei e gozarei ainda.

Seja como for, bom 2009, senhor pastor.


31.12.2008

quarta-feira, novembro 16, 2011
 
GADES, EL ATARANTADO


Carmen me libera, dizia Nietzsche. Bizet, infelizmente, não teve ocasião de ouvir esta confissão proferida pelo espírito mais refinado de seu século: amargurado pelas violentas e injustas críticas feitas à ópera, morreu na noite de sua 33ª apresentação. Antonio Gades, bailaor alicantino e emérito pizzaiolo, traz ao Brasil sua versão de Carmen e pode estar seguro de que não sofrerá o que sofreu Bizet. Desde que dance e se mantenha silente.

Não sei se Gades sabe, mas em meu último ano sabático em Madri, freqüentei sua casa quase todas as semanas. Falo da Casa de Gades, pizzaria que fica próxima à Biblioteca Nacional e ao Museu do Prado, o que tem suas vantagens e desvantagens. Vantagens, porque após uma aula sobre Velázquez ou Goya, era sagrado um osso bucco chez Gades. Desvantagens, porque após umas que outras de Valpolicella, embalados pela ambiência afável do restaurante, atravessar o Paseo de Recoletos para chegar até a biblioteca é esforço que exige fibra sobre-humana. Sem falar que entre a Casa de Gades e a Biblioteca Nacional se situam, solertes, El Gijón e Los Espejos, à espreita do pesquisador incauto. Assim que, se jamais consegui atravessar o Paseo de Recoletos, a culpa é um pouco do atarantado alicantino que ora nos visita.

Digo atarantado por alusão a Nietzsche, este alemão enamorado de Carmen, que dizia não poder acreditar em um deus que não soubesse dançar. Assim falava Zaratustra: “Olha, esta é a toca da tarântula! Queres vê-la, a ela mesma? Está aqui a sua teia: toca-lhe para a veres tremer!”

Tarântula é uma aranha grande que vive entre as pedras e buracos profundos e abunda na cidade de Taranto, Itália. Sua picada é extremamente venenosa e de seu nome vem a tarantela, dança napolitana de movimentos muito vivos. Daí vem “Los Tarantos”, grupo de dança espanhol. Como também atarantado, isto é, Gades falando em vez de sapatear.

Falando em sapatear, meus interlocutores de esquerda dão pulinhos de ódio quando sugiro que rezem ao bom Deus para que conceda longos anos de vida e governo a Alfredo Stroessner. Não que eu nutra simpatias pelo homem. Acontece que quando Stroessner morrer, a desconfortável comenda de decano dos ditadores latino-americanos será carregada por Castro, guru de Gades.

Pois o bailaor, em suas declarações à imprensa, sempre vai além de suas pizzas. Diz que Carmen representa o ideal da própria Espanha, que renasceu das cinzas após uma ditadura brutal de quarenta anos. Castro sapateia em cima dos direitos mínimos dos cubanos — para começar a liberdade de ir e vir — já faz quase trinta anos e, para Gades, esta ditadura é boa, pois é de esquerda. Seus contínuos salamaleques ao gulag tropical gerido por Moscou já quase me fizeram renunciar a seus dotes de pizzaiolo. Meus colegas, mais realistas, acabavam arrastando-me à Casa de Gades: “Calma, Cristaldo. Estamos com fome e o resto é veleidade ideológica”.

Siete son las fases de la castaña — dizem os espanhóis — e por castaña, no caso, leia-se porre. A saber:

— copeo
— rudo copeo
— cantos marítimos y regionales
— franca amistad
— insultos al clero y autoridades constituídas
— negación de la evidencia
— y devolución del ingerido.

Devo ter chegado, nas tardes que passei chez Gades, certamente até à quinta fase, lembro ter erguido brindes como “¡Muerte a los maridos!” e “¡Las putas al poder, que sus hijos allá ya están!” Mas Gades, mesmo sóbrio, parece chegar à sexta fase, sem passar pelas precedentes. O que é deplorável em seu caso, de homem que se pretende cosmopolita e bem-informado.

Dizer que Carmen é um ideal libertário renascido das cinzas do franquismo é afirmação de um homem que fez toda sua carreira sob o regime de Franco. A Espanha é hoje país livre, com eleições livres e se dá até mesmo ao luxo de ter rei e família real.

Constituí atualmente uma das mais dinâmicas economias do continente europeu e um dos mais belos países para se descobrir e viver. Não fosse Franco, os espanhóis viveriam hoje certamente sob ditaduras de economia ao estilo do Leste europeu, onde até para se comprar uma máquina de escrever é necessário registrá-la na polícia. Escritores como Ramón Sender e Jorge Semprún, que lutaram décadas contra Franco, viveram a clandestinidade e sofreram prisão e exílio, ao conhecer a realidade dos países socialistas, concluíram amargamente ter combatido o mau combate. Gades, que não combateu nem foi forçado a exilar-se, vira o cocho condenando o regime onde viveu e cresceu como artista.

Em algo, no entanto, o bailaor é coerente: comunista exemplar, como seu guru Castro, adora dólares. Ou capitalistas marcos ocidentais, que marcos do outro lado do Muro pouco lhe interessam. E seu espetáculo no Brasil não se dirige ao proletariado, mas a um público burguês capaz de despender quase um salário mínimo em uma noite. Gades justifica que numa sociedade justa, em um Estado socialista, os espetáculos seriam de graça. Pela experiência que tenho de tais “sociedades justas”, nelas os espetáculos nunca são de graça e mais: o turista é sistematicamente despojado de seus dólares.

Se o leitor viajar um dia a qualquer país europeu e não souber orientar-se em sua geografia gastronômica, sugiro procure alguma célula ou sede do partido Comunista. Todo militante, à força de lutar contra a fome no mundo, sabe onde melhor matá-la. Não é por acaso que um dos mais orgíacos festivais de bem comer na Europa é a Fête de l’Humanité, a festa do PC francês, que se realiza a cada segundo fim-de-semana de setembro no parque La Courneuve, ao norte de Paris. Afinal, como dizia aquele outro emérito gourmet, Bertold Brecht, não pode ser revolucionário quem não sabe comer bem, beber bem e bem tratar uma mulher na cama.

Mulheres à parte, a Casa de Gades em Madri é uma verdadeira escola revolucionária. De excelente cozinha, vinhos de boa cepa, nela o militante se prepara para o agir revolucionário bem melhor que nos canaviais de Cuba ou nos cafezais da Nicarágua. Neste sentido, Gades se revela autêntico revolucionário, e de revolução muito aprendi em sua escola. Freqüentada por intelectuais, escritores, jornalistas, artistas de teatro e cinema, toreros, verdade que nela jamais vi aqueles operários de macacão azul que abundam nos demais cafés e restaurantes de Madri. Mas, enfim, a revolução é assunto por demais importante para ser entregue às mãos de operários.

Assim que, parece-me absolutamente improcedente a queixa de um estudante pobre no Rio, que perguntava ao bailaor porque não fazer um espetáculo acessível a quem tem pouco dinheiro. Revolução é affaire para elites, ora bolas! “Compañero — respondeu Gades — guarde uma pergunta dessas para quando falar com um inimigo de classe”. Pois eu sou amigo de classe de Gades e confesso que já morro de saudades das etílicas tardes que passei em sua Casa.

Carmen é como Che Guevara, declarou Gades em São Paulo, e os ossos do argentino nesta altura já devem estar se contorcendo em sua tumba desconhecida. Pois, se bem me lembro, Che empunhava um fuzil. Quanto a Carmen, com todo meu respeito pela obra de Merimée, do que ela empunhava já nem falo.

O sr. Antonio Gades está subestimando o nível de informação no país que ora o recebe. Para promover seu espetáculo não precisa usar recursos assim demagógicos. A mítica Cuba revolucionária hoje não passa de uma Disneylândia das esquerdas, para onde partem em românticas revoadas aburguesados senhores em busca dos sonhos de adolescência, pois sentir-se-iam ligeiramente ruborizados se fossem visitar a Disneylândia gringa.

Dito isto, vou assistir Gades. Que dance. ¡Y, por favor, hombre: cállese!


Blumenau, Jornal de Santa Catarina, 07.05.88