¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, dezembro 31, 2011
 
MEU COQUEIRO


Leitores de minha idade certamente curtiram um dia os quadrinhos de Carlos Estevão, na revista O Cruzeiro. Uma historieta que jamais esqueci foi a do João do Coqueiro. Um certo João decidiu um dia fincar seu rancho à beira de uma estrada e frente à fachada plantou um coqueiro. Mal a árvore cresceu, não faltou passante que o apelidasse de João do Coqueiro.

João não gostou do apelido. E tomou uma decisão radical. Numa calada de noite, pegou um machado cortou seu coqueiro. Se achava que bastava um machado para eliminar o problema, enganou-se redondamente. Passou a ser chamado de João do Toco. Irritado, João decidiu arrancar o toco. Mas infatigável é a malícia humana. Dia seguinte, era o João do Buraco. João tapou o buraco. Passou a ser chamado de João do Buraco Tapado. Já não lembro como terminava a história. Creio que João, que queria apenas ser João, bateu na marca e mandou-se à la cria. Cronista, desde há muito vivo os avatares de João do Coqueiro.

A partir de meus primeiros artigos, publicados em um pequeno jornal de Dom Pedrito, o Ponche Verde, no início dos 60, passei a ser tachado como comunista. Meus artigos tinham um forte viés anticlerical, no que nada havia de espantar, afinal eu sofria a opressão intelectual de um colégio de padres oblatos. Se era anticlerical, obviamente era comunista. E com essa pecha - e outras, é bom salientar - fui expulso de minha cidade natal. Ora, na época eu tinha 16 ou 17 anos e desde os 15 já lia filosofia. Quando os comunistas tentaram cooptar-me - afinal a cidade toda me julgava ser um deles - eu já tinha nítida consciência de ser o marxismo uma filosofia excessivamente tosca, sem fundamento racional algum. Mesmo assim, fiquei marcado na paleta: comunista.

Uma vez na universidade, em Porto Alegre, um de meus primeiros artigos publicados no Correio do Povo, em 06 de janeiro de 1969, intitulava-se "Marxismo Gaúcho Contemporâneo", e constituía uma sátira aos membros do PC gaúcho, alguns deles ministros ou ex-ministros do atual governo. Na universidade, passei a ser visto como um perigoso reacionário e agente do imperialismo. No curso de Filosofia, era tido como agente do DOPS e perdi não poucas mulheres por essa pecha. Em Dom Pedrito, quando fui rever meus pais, fui preso por um delegado, que via em mim um perigoso comunista. Motivo? O artigo publicado no Correio, do qual o delegado só havia lido o título. Ou talvez tivesse lido o artigo mas não tivesse bestunto para entender ironia. Minha prisão foi rápida em Dom Pedrito. Ao voltar a Porto Alegre, fui interrogado no DOPS, por suspeição de ser elemento subversivo. Enquanto isso, na universidade, ora era nazista, ora era fascista.

Finda a universidade, viajei. Fui para Estocolmo e, honestamente, não pretendia mais voltar ao Brasil. Na época, a Suécia constituía um dos locais de asilo preferidos pelos comunistas brasileiros, que comunista que se preze não é maluco a ponto de pedir asilo em Cuba ou Moscou. Em 71, assistindo uma palestra de um desses heróicos senhores, nos salões da ABF, ouvi gritos de vitória como "A revolução é amanhã", "O povo está nas ruas", "O país está pronto para explodir". Da platéia, enviei um bilhetinho ao palestrante. Que, de fato, o povo estava nas ruas... comemorando a vitória do Brasil na Copa do Mundo. Perguntava se ele não se pejava de estar viajando pela Suécia, hospedado em hotéis cinco estrelas, paparicado como herói pelas árdegas louras nórdicas, enquanto seus companheiros de luta sofriam tortura e prisão no Brasil.

Eu escrevera em sueco. Meu bilhete passava de mão em mão, como brasa quente, e nenhum dos participantes da mesa ousava traduzi-lo. Como me pareceu que não iam lê-lo, acabei abandonando a palestra. Em boa hora. Meu bilhete acabou sendo lido e, se eu lá estivesse, talvez não fosse linchado pelos bravos suecos, mas certamente passaria por maus momentos. De agente do DOPS, fui imediatamente promovido pelo palestrante a agente do SNI, pago pela ditadura militar para vigiar os revolucionários no exílio.

Em 77, após já ter percorrido toda a Europa, ganhei uma bolsa em Paris. Nova e imediata promoção. Agora não havia mais dúvidas. Eu fora finalmente desmascarado: trabalhava para a CIA. Assim fosse. Escassos eram meus francos. Bem que os dólares da CIA me seriam muito oportunos nos bistrôs de Paris.

Curiosamente, boa parte de meus amigos era ou fora comunista. Coisas do Sul: para um gaúcho da Fronteira, a amizade sempre fala mais alto que as ideologias. Estes amigos passaram um recado aos militantes: tirem isso da cabeça, o Janer não tem nada a ver com a ditadura. Estes boatos cessaram. Que fazem as gentes quando insultos ideológicos não colam? Apelam aos insultos sexuais. Apesar da generosa rede de proteção feminina que me cercava, passei a ser nada menos que homossexual. O raciocínio era de uma lógica impecável: homem que anda sempre atrás de mulheres, no fundo está procurando um homem. De mulher deve-se gostar moderadamente. Gostar demais é politicamente incorreto. "Use com moderação". Não faltou quem me apodasse de paxá dos pampas. Fui também chamado de Robin Hood às avessas, o que tira de todos e não dá nada a ninguém. Ou ainda de Savonarola às avessas, o que nos condena por não pecarmos.

Fui lecionar em Florianópolis. Lá, longe da memória gaúcha, voltei a ser comunista para uns, porco imperialista para outros. Certos setores da universidade me consideravam maçom. Os maçons, por sua vez, juravam que eu era um líder petista em disputa pela Reitoria. Outros, mais gentis, me definiam simplesmente como um libertino.

Esgotados os chavões da Guerra Fria, algum novo epíteto eu mereceria. Em São Paulo, passei a ser racista. Se o leitor presta atenção na imprensa, deve ter notado que após a queda do Muro de Berlim, as palavras racismo e racista brotaram nos jornais como cogumelos após a chuva. Luta de classes morta, luta racial posta. Fui inclusive denunciado ao Ministério Público por sete entidades ligadas à questão indígena por crime de racismo, por artigo escrito na Folha de São Paulo, no qual negava a farsa do massacre de ianomâmis montada em agosto de 1993. Os afáveis indigenistas pediam para mim nada menos que cinco anos de prisão. Claro que não levaram nada.

Não é tarefa fácil agradar gentes. Pior ainda, agradar leitores. Embora tenha recebido cumprimentos efusivos por minhas crônicas, os descontentes são legião. E pelos mais diversos e descabidos motivos. Em recente crônica, ironizei de alto a baixo a hipocrisia do abbé Pierre, um dos ícones das esquerdas francesas, por suas práticas sexuais enquanto religioso, religioso que um dia fez voto de castidade. Estas práticas foram confessadas pelo próprio abade, em livro intitulado Mon Dieu... Pourquoi?. Ora, não faltou o leitor que reclamasse. Voltei a ser comunista ou algo similar:

"Esse último artigo de Cristaldo, em 31/10, exalta a figura de um herói dos esquerdistas franceses, Abbé Pierre. O objetivo do jornalista é tão somente dar razão às suas taras e para isso, com o maior descaro, faz elogios a esse senhor que só é considerado "santo" pelos comunistas. Só nos falta agora ter de ler do sr. Cristaldo elogios a D. Hélder Câmara, frei Betto, Leonardo Boff por causa das posições anticlericais destes".

Parece estar faltando massa cinzenta ao leitor. Ou, pelo jeito, nunca ouviu falar do que seja ironia. Lembrou-me o delegado de Dom Pedrito, que me prendeu como comunista, por um artigo em que eu baixava a lenha nos comunistas. Mas, pelo jeito, ainda não perdi a antiga fama. Outro dia, aqui em São Paulo, me dizia um súbito amigo: "nós, da direita...". Polidamente, o interrompi: "Nós, não. Eu nada tenho a ver com a direita".

Em função das últimas crônicas que escrevi, fui definido como apóstata, herege e cheguei a merecer o trocadilho infame de Satanaldo. Parece que andei machucando os leitores tefepistas do MSM, que não conseguem admitir que um ser humano não creia em deuses. Mas nem tudo está perdido, senhores devotos de Maria. Eu comentava outro dia com uma amiga de Orkut um versículo de Isaías (14:12), e minha interlocutora, num acesso de ira, pespegou-me um epíteto que jamais imaginei merecer: cristão fanático. Perplexidade total. Por este eu não esperava. Ou seja, não é muito evidente que eu seja exatamente um herege.

Parece que há Cristaldo para todos os paladares. Seja como for, não pretendo cortar meu coqueiro.

(14/11/2005)

sexta-feira, dezembro 30, 2011
 
PSICANÁLISE E AUTO-AJUDA


Neste final de ano, aceitando os conselhos de dona Dilma para o bem-estar da nação, me entreguei a um consumismo desvairado: comprei duas camisas e um par de calças. É minha primeira contribuição do ano ao capitalismo pregado pela presidente comunista. Como ainda não renegou publicamente suas crenças da época de guerrilheira, só posso presumir que continue sendo marxista.

Mês passado, eu comentava entrevista de um psicanalista que condenava o capitalismo. "O capitalismo trivializou a paixão – dizia Adam Phillips -, fez com que as pessoas se desiludissem em relação ao amor. Isso leva a pensar que as relações sexuais são algo que se compra no mercado só para levar a vida adiante. O capitalismo tenta dissuadir a criação de vínculos reais. E valoriza demais o prazer. E, para a psicanálise, o prazer é sempre um problema. Qualquer pessoa que te venda um prazer fácil está mentindo. Se o que queremos é prazer profundo, com troca entre pessoas, ele será difícil, cheio de conflitos".

Desconfio dessa gente que condena o capitalismo. No fundo, estão afirmando que na outra sociedade – a socialista – as coisas seriam diferentes. A deduzir-se de suas palavras, o amor só existe no mundo socialista. Como se no mundo socialista não houvesse sexo pago. O capitalismo tenta dissuadir a criação de vínculos reais? Mas que vínculos reais existiam no mundo socialista, que priorizava os vínculos com essa entidade abstrata, o Estado? O capitalismo valoriza demais o prazer? Ora, quem não valoriza o prazer? E, afinal, que há de mal em valorizar o prazer? Se para a psicanálise o prazer é um problema, este problema é dos psicanalistas.

Pelo jeito, os psicanalistas estão se enamorando pelo marxismo. Pois dos ideais do marxismo não sobra nada. Só restou a condenação do capitalismo. Mais precisamente, dos Estados Unidos. Após o desmoronamento da União Soviética, marxismo se reduziu a um antiamericanismo histérico. Não por acaso, Hugo Chavez acaba de responsabilizar o "império" pelo surto de câncer em presidentes americanos. Que Chavez diga isto, não surpreende. Sempre foi um palhaço. O que surpreende é que os Estados Unidos o levem a sério, a ponto de respondê-lo.

Na Folha de São Paulo, leio mais uma prova cabal disto.

Samanta Obadia, psicanalista, afirma que “a sociedade capitalista consumista lança, a cada minuto, uma novidade. São novas formas de perder peso, de enriquecer, de educar os filhos, de se relacionar com o cônjuge, de entender o chefe, de ser feliz”.

Ora, falar em sociedade capitalista consumista é um truísmo. Algo como falar de sociedade gastronômica dos amantes da bona-xira. Qual sociedade capitalista não é consumista? O consumo é a base de todo capitalismo. E ambição de todos que vivem fora desta sociedade. É possível, que entre bugres isolados da civilização, haja indivíduos imunes ao consumo. É porque o desconhecem. Índio, mal se civiliza, quer todo o conforto aos quais os brancos têm acesso.

- A invasão desmedida de objetos novos extrapolou a nossa capacidade de consumo – diz a psicanalista –. Não digo apenas a potência financeira, mas o dinamismo inteiro que esse produz. Sabemos que é preciso adquirir o produto e usufruí-lo. Contudo, tendo como objetivo único o lucro, as novidades se sobrepõem, enlouquecendo os consumidores, que sempre estão em atraso.

Ora, eu vivo neste mundo de publicidade desmedida e jamais enlouqueci. Fora os objetos necessários à subsistência, tenho televisor e computador em casa. E mais um celular, que praticamente não uso. Tenho folga econômica para comprar todas as tralhas que a tal de sociedade de consumo oferece. Não compro nenhuma. Não me fazem falta.

- Mudam os celulares, os programas de computadores, os métodos de ensino, os cortes de cabelo, os amores, os pacotes de biscoitos diz a moça –. E a velocidade dessa mudança é tão grande que não damos conta do que tempo que nos leva. O que importa é consumir ou, pelo menos, acompanhar o que está sendo consumido.

Que mudem os celulares. Só tenho um, idoso de muitos anos. Quanto a métodos de ensino, só conheço um, a leitura. Cortes de cabelo pouco me interessam, já são poucos os que tenho. Mas tampouco me interessavam, quando os tinha hirsutos. No que diz respeito a amores, não os troco. Me agrada preservá-los. Quanto a pacotes de biscoitos, não sei o que sejam.

Usando um plural majestático, continua a psicanalista:

- Nesta louca vida nos consumimos, nos enganamos e nos perdemos. Mascaramos-nos numa realidade diversa e alheia ao que se passa em nosso interior, em nossa alma, evitando a passagem do tempo físico, consumindo nosso tempo emocional.

Deve estar falando de si mesmo. No que a mim diz respeito, não me consumo, não me engano, não me perco, não me mascaro, nem procuro evitar a passagem do tempo físico. E conheço não poucas pessoas que não participam deste modo de ver o mundo.

A moça insiste:

- Perdemo-nos tanto em observar as novidades, em buscar a juventude eterna, que esquecemo-nos de viver o presente, de curtir o que temos em mão, de descobrir o novo no que já é em nós ou conosco.

Bom, novidades não me interessam muito. Me preocupo mais com o passado. Juventude eterna sei que não existe e jamais esqueci de viver o presente. Estou cansado dessa gente que culpa o consumo por sua miséria espiritual. Ora, ninguém está obrigado a consumir. Consome porque quer.

Psicanálise não passa desse gênero literário vil, a auto-ajuda.

quinta-feira, dezembro 29, 2011
 
AMBROSE BIERCE E OS
RUÍDOS DO RÉVEILLON



"Se elegemos viver entre bárbaros devemos suportar os bárbaros ruídos de suas bárbaras superstições, mas o imbecil que se senta e espera até a meia-noite para tocar um sino ou disparar um fuzil porque a terra chegou a um ponto determinado de sua órbita, deve ser considerado um inimigo da raça..."

A reflexão é de Ambrose Bierce. Devo confessar que, certa noite, há mais de meio século, mais ou menos sem querer, assumi esse papel de inimigo da raça humana. Teria entre dez e quinze anos, já não lembro. Nas férias escolares, eu voltava ao Ponche Verde e ao convívio dos meus. E vivi uma passagem de ano que até hoje me marca.

Era praxe, na data, organizar uma pescaria no Sangão dos Lucas. Pescaria que nada tinha a ver com peixes. Era pretexto para acampar no mato, tomar cerveja e cachaça e fazer churrasco. Quanto aos peixes, largava-se um espinhel no rio, e quem quisesse fisgar-se que se fisgasse. Um pouco antes da meia-noite, peguei uma pequena canoa e saí remando à montante, para examinar os espinhéis. Me senti adulto, aquela noite. Eu remava lentamente, sob um céu enluarado, em meio a um silêncio perpassado pelo ruído de grilos. Tinha uma missão, ver se havia peixes fisgados.

Quando cansei, deitei-me no barco e voltei ao sabor da jusante. Foi um momento mágico em meus dias. Lá pelas tantas, ouvi tiros no acampamento. Era meia-noite. Levava uma escopeta comigo. Foi quando assumi o personagem tão abominado por Bierce. Disparei em resposta. Meio para dizer: estou voltando. Nada a ver com a data. Fora este, meus réveillons nada tiveram de excepcional.

Nasci em uma geografia onde o tempo pouco importava. Entre os meus, jamais comemoramos natal ou ano novo. Muito menos aniversários. Tanto que até hoje só lembro do meu quando alguma de minhas gerentas de banco me envia um cartão. Mais ainda, envia em data errada. Naqueles pagos, era de praxe esperar-se alguns meses para registrar os nascimentos. Questão de esperar para ver se a cria vingava e poupar uma cavalgada até o cartório. Fui registrado três meses após nascer.

Comemorávamos, isto sim, as festas juninas. Mais um culto ao fogo, diria eu, do que homenagem a santos. Nasci no deserto, um deserto verde coberto de alhos-bravos, onde cada vivente morava a meia légua um do outro. Nossa comunicação era por espelhos. Quando a noite descia, esperávamos que alguém acendesse a primeira fogueira. Acendida esta, a pampa era salpicada por pontos luminosos que se estendiam até o horizonte. Sim, eu conheci horizonte, esta realidade que o homem urbano desconhece.

Nasci na fronteira seca entre Brasil e Uruguai. Coincidia que o Uruguai começava justo no horizonte, onde ficava a Linha Divisória. Nesta linha, de três em três quilômetros há um marco de concreto. De seis em seis, há um marco maior. Em frente a nosso rancho, ficava o Marco Grande dos Moreiras em homenagem a meu clã. Meu pai me erguia até o topo do marco, me fazia virar para o nascente e dizia: “Fala para os homens do Uruguai, meu filho”. Depois, me virava para o poente: “Fala agora com os homens do Brasil”. Nasci entre dois países, sempre olhando para um e outro. Daí a querer ir mais adiante foi só um passo.

Mas falava de réveillons. Sempre fugi de datas. Para mim, festa não tem data. Pode ser hoje, amanhã ou qualquer dia. Por que comemorar sessenta anos? Posso muito bem comemorar sessenta anos, três meses e quinze dias, por que não?

Leio que, a uns dois quilômetros de onde moro, na Avenida Paulista, dois milhões de pessoas estarão comemorando a passagem de ano, com muitos fogos e ruídos. O bom de meu bairro é que não ouvirei tais ruídos. Os dois milhões que fiquem lá. Longe de mim, por favor.

Ainda há pouco contei que, com minha mania de fugir do verão tropical e viajar no inverno europeu, boa parte de meus réveillons foram em Paris, Madri, Berlim, Colônia, Roma. Sempre encerrado em um hotel. Nas primeiras vezes, até tentei aproximar-me dos fogos. Quando a multidão começava a engrossar, dava meia volta. Multidões me dão medo. Quando uma multidão vai para o norte, eu rumo ao sul.

Meus réveillons, sempre os passei isolado do mundo, tomando um vinho ou champanhe com uma amiga querida. E assim será este. Tim tim, caríssimos!

quarta-feira, dezembro 28, 2011
 
SEM-TETO MAS PREOCUPADO
COM SALVAÇÃO DO PLANETA



Ah! Esses incríveis salvadores da humanidade e seus projetos mirabolantes. Preocupam-se com o universo e esquecem de cuidar da própria lavoura. Eu os conheço de perto. Um deles, meu colega de trabalho em Porto Alegre, costumava escrever para o papa sugerindo rumos para a humanidade. Como estes senhores têm secretárias com a função expressa de responder cartas, ele sempre recebia uma respostinha formal. Que deixava descuidadamente em alguma prateleira de seu apartamento, para que alguma visita a notasse. Eram anos 60. Quando alguém notava a carta pontifical, reagia com naturalidade: “Ah sim, o Paulo de vez em quando me escreve”.

Claro que quem se comunica com tal potestade não se comunica com uma só. Cá e lá, havia uma cartinha do Lindon Johnson, do Charles de Gaulle, do Dalai Lama. Enfim, é uma maneira de situar-se no mundo. Como dizia Fernando Pessoa:

Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...


A Folha de São Paulo nos traz o depoimento de mais um deles. O amazonense Rivanor de Souza, 47 anos, perambula pela Esplanada dos Ministérios, em Brasília, denunciando as irregularidades de auxiliares da presidente. Mandou dezesseis cartas para Lula e obviamente teve todas respondidas. Só não conseguiu falar com ele, o objetivo de sua ida para Brasília, em 2008. “Pensava que seria fácil encontrá-lo. Quando cheguei, bateram a porta na minha cara. Ainda vou escrever um livro: "Desvendando o enigma de um cidadão comum falar com o presidente".

Santa ingenuidade. Um presidente não fala com cidadãos comuns. Um presidente só fala com grandes. Pode ser um grande vigarista, como o Dalai Lama. Ou um grande ditador, como o “amigo e irmão” Muamar Kadafi. Ou um grande traficante, como William de Oliveira, ex-presidente da associação de moradores da Rocinha. Mas tem de ser grande.

Rivanor pensa grande: “Deixei minha cidade, meu barraco, e vim lutar pela Amazônia, pelo planeta, pela vida. A Dilma está passando a função do Executivo para as ONGs. Tanto é que todos os escândalos que estão vindo a tona agora têm o envolvimento de ONGs.

“Eu quero fazer um convite às potestades, aos principados para que possamos nos reunir e tratar de assuntos do interesse de toda humanidade. Estou convidando o papa Bento XVI, o Obama, a rainha Elisabeth e o príncipe Charles para uma reunião.

“Quero ter assento na reunião das Nações Unidas que vai acontecer no Brasil em junho. Falar a essas pessoas que se isentam de impostos e de qualquer responsabilidade sobre o desequilíbrio climático por conta da destruição da Amazônia, do planeta e da vida.

“Fui roceiro, vendedor de peixe e trabalhei na prefeitura. Larguei tudo. Vim lutar pela Amazônia, pela vida”.

Preocupado com os grandes problemas do planeta, Rivanor só esqueceu de uma coisa, tratar da própria vida. Apesar de seus nobres propósitos, hoje é morador de rua. Mas afinal de contas, não se pode tratar de tudo ao mesmo tempo, de si mesmo e do planeta. Mais um pouco de persistência, e Rivanor acaba criando uma religião.

Esta história começa longe nos tempos. Há quase dois mil anos, um destes iluminados se disse filho de Deus e a história colou. Está incomodando até hoje. Como no caso de Rivanor, não temos a mínima idéia como se sustentava. Há um maluco em Santa Catarina, o Inri Cristo, que também se diz Filho do Pai, não se sabe qual profissão tem, mas já constituiu um pequeno exército de jovens e lindas fiéis.

Maomé, cameleiro analfabeto, sentiu-se chamado pelo Senhor e seu analfabetismo não impediu que criasse a religião que hoje mais se expande no mundo.

O sem-teto de Brasília, se for hábil, tem futuro pela frente.

terça-feira, dezembro 27, 2011
 
SOBRE A INCULTURA
NO MUNDO DO LIVRO



Comentei há pouco a incultura que grassa pelo país. Leitor me envia um depoimento do escritor paranaense Roberto Gomes. Foi a uma grande livraria de Curitiba à procura de um livro de Eça de Queiroz. O rapaz que o atendeu só acertou a digitação do nome do escritor na quarta tentativa.

O leitor ainda relata dois casos. Um amigo livreiro contou-lhe que certo dia um cliente procurava O Espírito das Leis, de Montesquieu. O funcionário foi em busca da obra na estante de livros espíritas.

E um último caso: na mesma livraria, um cliente buscava Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda.O funcionário foi procurá-lo na seção de botânica.

Tudo muito lógico. Qualquer pessoa que freqüente livrarias terá casos semelhantes para contar. Esta incultura não é de hoje. Vem de muito longe. Ainda nos anos 60, quando vivia em Porto Alegre, procurei na livraria Globo Sexus, de Henry Miller. Estava em falta. Mas o atendente demonstrou erudição:

- Não temos no momento. Mas temos Nossa Vida Sexual, do Herman Khan.

Não sei se alguém ainda lembra deste livro. Era uma espécie de manual moralista de educação sexual, de um ridículo atroz. Alguns anos mais tarde, em Brasília, numa livraria do centro comercial Conic, procurei o romance Engenharia do Casamento, do escritor piauiense Esdras do Nascimento. O funcionário não teve dúvidas. Foi direto ao setor de livros técnicos.

São passados os dias em que os livreiros liam. Ou pelo menos sabiam do que tratava um livro. Livraria hoje é uma espécie de franquia, entregue a um administrador que venderia tanto cosméticos como canetas ou relógios. Confesso que, na área da informática, tenho encontrado pessoal competente. Se vou comprar um computador, o vendedor entende do que está vendendo. Já na área do livro, o desastre é total.

Em Porto Alegre, anos 70, tivemos na Rua da Praia uma pequena livraria, a Coletânea, tocada por dois livreiros que liam, o Brutus e o Arnaldo. Era não mais que um corredor, forrado de livros por ambos os lados. Em final de noite, o Mário Quintana sempre estava lá, praticando seu esporte predileto, a ronda das lombadas, como dizia. Eram livreiros que não só liam, mas que buscavam bons livros para seus clientes. Ali, tomei contato com a boa literatura que vinha do Plata. Em Porto Alegre, muito antes que o Brasil soubesse quem era Quino, estávamos lendo Mafalda.

Quando Brutus morreu, sua mulher assumiu a livraria. Dava conta do recado, é verdade, mas não tinha muitas luzes. Lembro que um dia comprei Escuta, Zé Ninguém, do Wilhelm Reich. Ela foi honesta: “é um livro estranho. Li, entendi tudo mas não compreendi nada”.

Pelo menos havia lido. Outro livreiro pelo qual tive grande respeito foi o Chaim, de Curitiba. Morei lá em 1990, quando Zélia, uma Paixão, de Fernando Sabino, era best-seller. Entre outras gracinhas, o livro narrava as cavalgadas da ministra de Economia do governo Collor com Bernardo Cabral, então ministro da Justiça. O livro vendia como pão quente.

- Posso perder dinheiro – me disse o Chaim -. Mas esse livro não entra em minha livraria.

Livreiros como este não se fazem mais. Mas o melhor – ou pior, como quiser o leitor – me aconteceu em São Paulo. Em 2006, foi lançado no Brasil um ensaio de Harold Bloom, Jesus e Javé. Tenho uma antiga diferença com o autor. Em The Western Canon, ele cita Machado de Assis e não cita José Hernández, o que para mim já o torna suspeito. Mais tarde, em uma entrevista, ele confessou que o livro sobre o cânone ocidental fora encomenda de editoras. Mas Jesus e Javé é um ensaio interessante. Bloom analisa a Bíblia não como teólogo, mas como crítico literário.

Passei numa livraria do bairro e pedi:
- Vocês têm Jesus e Javé, do Bloom?
A moça foi consultar o computador e digitou: Jesus e Djavan.
- Nada disso, respondi. Quero Jesus e Javé.

Não tinha. Fui em outra livraria e pedi de novo. O atendente foi ao computador e digitou: Jesus e jovens. Nada disso, moço. Bom, fui na terceira livraria. A moça repetiu: Jesus e Jeová?

Quase, moça. Mas ainda não é bem isso. Mas também não tinha. Desisti. Em casa, telefonei pra meu livreiro de confiança. Que também não o tinha, mas pelo menos sabia muito bem do que se tratava.

segunda-feira, dezembro 26, 2011
 
DEPUTADO DO PSOL QUER
CRIMINALIZAR A BÍBLIA



A imprensa está eivada de palavras malconstruídas, que designam erradamente o que pretendem designar. Xenofobia, sem ir mais longe. Quando os europeus manifestam sua ojeriza aos árabes, são logo tachados como xenófobos. Ora, fobia é medo. E não é exatamente medo que os europeus sentem pelos árabes. Mas asco. Mais ainda, este asco tampouco é dirigido aos árabes, mas aos muçulmanos. Há quem fale em islamofobia. A palavrinha continua errada. O que está em jogo não é o medo.

Da mesma forma, homofobia. Que significaria, segundo os dicionários, rejeição ou aversão a homossexuais ou à homossexualidade. A construção continua errada. Estas palavras constituem, em verdade, insultos ideológicos brandidos contra quem se sente em pleno direito de não gostar de estrangeiros, árabes ou homossexuais. Curiosamente, ninguém fala em negrofobia. Aí o insulto preferencial é racismo. Até mesmo os defensores da idéia de que raça não existe, na hora de insultar falam em racismo.

No que a mim diz respeito, não me sinto obrigado a gostar de ninguém, embora goste de muitas pessoas. Essa obrigação moral de gostar universalmente de todos é coisa de cristãos, e eu sou ateu. Não tenho restrições nem a árabes, nem a negros nem a homossexuais. Tive amigos palestinos e argelinos em meus dias de Paris. Tive também amigas persas e libanesas. Obviamente, não pertenciam àquela raça que ergue o traseiro para a lua para cultuar Alá. Com estes, não conseguiria conviver.

Tive amigos negros em meus dias de Rio Grande do Sul. Aliás, nem notava que eram negros. Só notei aqui em São Paulo, ao conviver, por questões profissionais, com negros racistas. Daqueles que jogam a moeda racial a todo instante. Se o garçom demora em atendê-los, lá vem o insulto: você é racista, está demorando porque sou negro. Ora, garçons demoram também para atender brancos.

Quanto a homossexuais, convivi com eles desde meus dias de adolescente. Sempre os vi como rebeldes que não aceitavam a ordenação social vigente. Falo no passado: agora querem casar na igreja, de preferência com véu e grinalda. Mas há um tipo de homossexual que me desagrada profundamente. É essa caricatura de mulher, a bicha. Da mesma forma, convivo tranquilamente com lésbicas. Mas há um tipo de lésbica que não suporto. É aquela caricatura de homem, estilo caminhoneiro. Penso que, para ser homossexual, ninguém precisa renunciar às características de seu sexo.

Assim sendo, defendo o sagrado direito de qualquer pessoa não gostar de árabes ou muçulmanos, de homossexuais ou heterossexuais, de negros, brancos, amarelos ou azuis. Não gostar é direito de cada um. O que não se admite é desrespeitar alguém por questão de religião, pele ou preferência sexual. Com uma nuança: me reservo o direito de crítica a religiões. Criticar não é desrespeitar.

Em meio a isto, está surgindo no Brasil um movimento que pretende proibir qualquer pessoa de não gostar de homossexuais. Há horas venho afirmando que a militância homossexual, que pretende proibir qualquer crítica ao homossexualismo, mais dia menos dia iria tropeçar com a Bíblia. Aconteceu.

Um projeto de lei anti-homofobia pretendeu proibir toda e qualquer crítica ao homossexualismo. Ora, o Levítico é claro: homossexuais devem ser mortos. Proibir críticas ao homossexualismo significa proibir a Bíblia. Verdade que há uma brecha: se um homem se deitar com outro homem, como se fosse mulher. Quanto às lésbicas, nada contra. Profitez-en, jeunes filles!

A senadora Marta Suplicy, que não abre mão do voto dos crentes, abriu uma exceção ao projeto de lei. Nos templos, seria permitida a condenação do homossexualismo. Com isto deixa claro que, fora dos templos, qualquer crítica ao homossexualismo está sujeita às penas da futura lei. Se um padre ou pastor ler o Levítico em um templo, tudo bem. Se ler em praça pública, cadeia nele.

Quem está patrocinando esta tal de legislação anti-homofóbica, como também o malsinado kit anti-homofobia, é o PT e adjacências. E só podia ser. Com a queda do muro de Berlim e o desmoronamento da União Soviética, as viúvas do Kremlin, saudosas da finada luta de classes, criaram agora outros conflitos. Se você for pesquisar os arquivos de jornais – e eu fiz esta pesquisa – verá que na década de 90 a palavra racismo se multiplica por mil na imprensa. Se a luta de classes obsolesceu, vamos agora jogar raça contra raça. Se isto não bastar, jogamos sexo contra sexo. Sem lutas, a Idéia – como se dizia no início do século passado – não avança.

O baiano Jean Wyllys de Matos Santos, que se elegeu deputado pelo PSOL graças à sua exposição no programa "Big Brother Brasil", vai mais longe. Hoje, em entrevista à Folha de São Paulo, falou sobre sua decepção com a suavização do projeto que trata da criminalização da homofobia. "Sabe o que é inaceitável? São as igrejas, por exemplo, financiarem programas de recuperação e de cura de homossexualidade. E o pastor promover esse tipo de serviço nos seus cultos. Homossexualidade não é doença."

Claro que não é. Mas vá alguém convencer um pastor de que não é doença! A Bíblia vai mais longe. Não é doença, é abominação. É normal que o pastor, em seu imenso amor pela humanidade - e pelos dízimos -, queira curar os doentes da abominação. Jean Wyllis quer que toda igreja que prega cura dos gays na TV seja punida. Eleito pela participação em um medíocre programa televisivo – aliás, qual não é medíocre? – o deputado sabe muito bem do que fala. Para um público de templo, o pastor pode pregar à vontade. O que não pode é pregar para um público de televisão. Pode acabar sendo deputado.

- As religiões têm liberdade – diz o parlamentar -. Está na Constituição. Os pastores são livres para dizer no púlpito de suas igrejas que a homossexualidade é pecado, já que assim o entendem. Entretanto, eu não acho que os pastores que estão explorando uma concessão pública de rádio e TV tenham que aproveitar esses espaços para demonizar e desumanizar uma comunidade inteira, como a comunidade homossexual.

Só porque a concessão é pública, os pastores devem ser censurados. Considero uma doença considerar homossexualismo como doença que deva ser tratada. Mas o que o deputado está afirmando, no fundo, é que a Bíblia pode ser lida nos templos. Mas não na televisão.

- Se incitarem a violência por meio de um entendimento de que a homossexualidade é uma degeneração, uma abominação, uma doença, um pecado grave e mortal, aí tem que ser enfrentado. E tem que ter uma lei que preveja esse tipo de crime.

O deputado quer criminalizar a Bíblia. Não pelos massacres que Jeová ordena, mas por questões menores, tipo comportamento sexual. Não vai ser fácil.

domingo, dezembro 25, 2011
 
MACHADO DE ASSIS E
BRUNA SURFISTINHA



Uma das mais antigas editoras do país, a Francisco Alves, fundada em 1854, hoje se resume a uma marca. Faz um ano e meio que lançou seu último livro - Palavras - Origens e Curiosidades, espécie de almanaque de etimologia. Sinal dos tempos, o atual dono da Francisco Alves, Carlos Leal, fundou outra empresa, a Barléu, de livros de arte, todos patrocinados por meio da Lei Rouanet, e deve a ela sua sobrevida como editor. É o que leio na Folha de São Paulo.

Ou seja, uma editora – empresa privada – só consegue sobreviver com auxílio estatal. Então que feche as portas, ora bolas. Nas quebradas do século passado, tive notícias de um livreiro de Porto Alegre que, ante a perspectiva de falência, salvou-se graças à Lei Rouanet. Que história é essa? Se empresa privada só consegue sobreviver com auxílio estatal, então não é empresa privada, mas empresa estatal.

Trocando os queijos de bolso, lembro que em 2007 o governo federal autorizou a organização da Oktoberfest, festa do chope no Rio Grande do Sul, a captar R$ 1,182 milhão, via Lei Rouanet. Justificativa: o projeto "mantém e potencializa a cultura local, essencialmente germânica, contemplando a música instrumental".

Pergunta ao contribuinte que gosta de chope: se já financiou a festa, por que terá pagar de novo pelo chope? A Lei Rouanet, promulgada certamente com as melhores intenções, está se revelando um excelente instrumento de corrupção. Melhor ainda: corrupção perfeitamente legal.

Cinema e teatro há muito vivem do dinheiro do contribuinte. Esta farra com o bolso alheio teve seu ápice quando Le Cirque du Soleil, companhia circense do Canadá, apresentou-se em São Paulo subsidiado pela famigerada lei. E deu-se ainda ao luxo de cobrar ingressos caríssimos dos contribuintes que financiavam seu espetáculo. De minha parte, não vou a espetáculo algum que seja patrocinado pela lei Rouanet. Mesmo que o espetáculo me interesse, se já paguei não vou pagar de novo. Se vierem me buscar de limusine em casa, chi lo sa...

Editoras e livrarias estão afundando e afundarão com mais celeridade nos próximos anos. Problemas de má gestão a parte, o futuro do livro é eletrônico. O ebook dispensa papel, gráficas, distribuição, livrarias, depósitos, transporte. Por mais que leitores sintam saudades do cheirinho do papel, ninguém impede o amanhecer. Sou ainda devoto do livro em papel, mas tenho de reconhecer que o ebook é mais prático. E necessariamente mais barato. Sem falar naquele recurso do search. Se procuro um hapax – ou qualquer outra palavra – em um livro em papel, tenho de relê-lo até achar o que busco. No ebook, com três ou quatro toques de tecla, encontro logo a palavrinha.

Digamos que você vive em uma dessas milhares de cidadezinhas brasileiras onde não há livrarias nem bibliotecas e às vezes nem chegam jornais de porte. (Quando falo disto, sempre me ocorre citar Santa Maria, cidade universitária gaúcha com trezentos mil habitantes. Só tem uma livraria. E só recebe um único exemplar da Folha de São Paulo, que fica à disposição dos leitores em uma biblioteca da universidade). De repente, você ouviu falar de Platão e foi acometido de uma súbita vontade de ler o Fédon. Apesar de seu vilarejo ser desprovido de livrarias ou biblioteca, Platão está à distância de um clique de sua vontade de ler. E de graça. Em segundos, você tem o Fédon em seu monitor.

Isso sem falar nas Amazons da vida. Muitas vezes, ao buscar aqui em São Paulo um livro editado no Rio, ouvi do livreiro que posso recebê-lo em quinze dias. Suponho que seja trazido a pé. Pela Amazon, recebo o livro em oito dias no máximo.

Criou-se no Brasil, desde há muito, a cultura do livro estatal. Autores que há muito estariam mortos são ressuscitados com o empenho de instituições que as empurram aos jovens goela abaixo. O número de livros distribuídos gratuitamente aumenta cada vez mais. São editados via Lei Rouanet e não há quem os compre. Quinta-feira passada, a Folha de São Paulo noticiava:

“Já virou tradição de Natal: no fim de ano, grandes bancos presenteiam seus clientes com sofisticados livros de arte, viabilizados por meio da Lei Rouanet - que permite abatimentos no imposto de renda dos patrocinadores que invistam em cultura”.

O repórter pergunta-se, retoricamente: isso significaria, então, que os brindes de Natal desses bancos estariam sendo pagos pelo contribuinte? E responde, falaciosamente: sim, mas somente em parte. Mais exatamente, de acordo com a lei, o patrocinador recebe 10% da tiragem do livro, para seu uso - e, no caso, essa é a parcela destinada aos clientes.

Pode ser. Mas os outros 90% da tiragem também foram financiados pelo contribuinte. A Lei Rouanet – isto é, você - está financiando livros que ninguém compra, que são doados ao azar para quem não lê.

Em meio a isso, leio que passageiros dos terminais de ônibus da Lapa, na zona oeste, e do Mercadão, na região central de São Paulo, serão convidados a partir de hoje a seguir viagem na companhia do escritor Machado de Assis. Agentes da Secretaria Municipal da Cultura estarão nesses lugares das 10 horas às 20 horas distribuindo o livro Missa do Galo, uma coletânea com dez contos do autor que será emprestada. Depois de lidas, as obras deverão ser devolvidas nos mesmos terminais de onde foram retiradas, para que possam ser dadas a outras pessoas. O empréstimo é gratuito e os passageiros não precisam fazer cadastros ou preencher fichas de retirada.

Se ninguém mais lê Machado, empurre-se Machado nas linhas de ônibus. Para a impressão dos primeiros 20 mil exemplares foram gastos R$ 200 mil. Claro que quem financia sua publicação não é Gilberto Kassab. No fundo, quem a financia, é o contribuinte paulistano. É por isto que Machado ainda existe. Graças ao ufanismo tupiniquim e aos impostos pagos por quem paga imposto. Não fosse isto, há muito estaria morto.

Não gosto de caju. Nem de goiaba. Muito menos de Coca-Cola. Pepsi, ni pensar. Pensando bem, não gosto de refrigerante nenhum. Vinho rosé, muito menos. Até hoje, pelo menos, nunca ninguém me acusou de preconceito em relação a caju, goiaba, Pepsi ou vinho rosé. Mas basta dizer que não gosto de Machado de Assis, lá vem a acusação: preconceito.

Ora, preconceito seria se eu jamais tivesse lido o carioquinha e afirmasse não gostar de sua leitura. Não é o caso. Li os principais romances de Machado e muitas de suas crônicas. Não vou afirmar que seja um escritor medíocre. Mas não consigo gostar.

Trata-se de um pós-conceito: digo que não gosto após tê-lo lido. É curioso observar que quando elegemos um vinho, damos preferência a vinhos estrangeiros. Uísque, idem. Carro, também. Por que raios, na hora da literatura, tenho de preferir a nacional? Por que eu, brasileiro, tenho de ler literatura brasileira? E se eu fosse ugandês, teria de ler literatura ugandesa? Em que tábuas sagradas está escrito isso?

Machado é empurrado nas escolas, nos vestibulares, nos cursos de Letras. É que nem purgante, ninguém toma purgante por gostar. Por que não brindar o público com obras realmente importantes da literatura universal, com autores como Cervantes, Swift, Orwell?

Don Quijote, sem ir mais longe, é bastante desconhecido no Brasil. Há alguns anos, recebi uma sobrinha muito querida em Madri, pessoa inteligente, empreendedora e bem sucedida em São Paulo. Na Plaza España, apresentei-a àquela estátua do Quijote e Sancho Panza. Ela não tinha idéia alguma de quem fossem. Ora, desconhecer estes dois me parece ser grave lacuna na educação de qualquer pessoa. A escola e a universidade, em algum momento, falharam. Mas Machado ela sabia muito bem quem era.

Ou Swift. Ainda hoje há quem pense que As Viagens de Gulliver é literatura infantil. Leitores às vezes se espantam quando recomendo o livro. Ora, esta obra é talvez a mais contundente denúncia que um escritor um dia fez da humana estupidez. Recentemente, passou no Brasil um filme idiota sobre as Viagens, dirigido a adolescentes. Não há porque endereçar Swift a adolescentes. Até pode ser, mas Swift é autor que não pode faltar a nenhum adulto que se pretenda culto.

Ou Orwell. Se os adolescentes de hoje tivessem lido 1984, saberiam que Big Brother não é exatamente uma câmera que vigia o dia-a-dia de pobres de espírito. O personagem de Orwell é muito mais. É a Stasi, é a KGB, é o Estado totalitário, é o mais perfeito retrato das tiranias comunistas do século passado, mas isto os senhores formadores de opinião preferem calar, pois remete a uma história recente, dolorosa e ainda não remida.

Não acredito nisso de distribuir livros de graça, ao azar. Até pode ser que algum encontre o leitor que dele precisa, mas esta hipótese é das mais aleatórias. Os passageiros de ônibus de São Paulo provavelmente se sentiriam mais gratificados com as memórias de Bruna Surfistinha. Que, diga-se de passagem, teve uma renúncia fiscal de dois milhões de reais aprovada pelo Ministério da Cultura para a produção da peça de teatro Doce Veneno, inspirada em sua vida exemplar de prostituta.

E nisto estamos. Enquanto os brasileiros desconhecem as obras primas da literatura universal, o Estado nos empurra Machado de Assis e Bruna Surfistinha.

sábado, dezembro 24, 2011
 
TABACARIA


Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.


Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.


Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.


Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.


Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?


Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.


(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)


Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.


(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)


Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente


Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.


Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.


Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,


Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.


Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.


Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.


Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.


(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da tabacaria sorriu.


Álvaro de Campos, 15-1-1928

sexta-feira, dezembro 23, 2011
 
LIBAMÁBLOKK SZARVASCOMBÁVAL


Sábado passado, lá pelas três da tarde, fui almoçar num japonês na Vilaboim, aqui perto de casa. Aos fins de semana, o restaurante está sempre cheio e às vezes preciso esperar alguns minutos para encontrar mesa. No sábado, estava vazio. Eu e uma amiga éramos os únicos clientes. E o povo para onde foi? – perguntei à gerente. Ah! É Natal. Está todo mundo no shopping. A pracinha tem uma rua de uns cem metros, que abrigam uns dez restaurantes. Todos estavam vazios ou quase.

Ou seja, voltamos à monótona e anual histeria natalina. Restaurantes oferecem ceias entre mil e 1.500 reais. Ora, por pouco mais do que isso, vou a Paris, janto e volto. Claro que não para jantar e voltar. É jantar muito exaustivo. Doze horas de ida mais doze de volta por uma noite em Paris. Jamais faria isso. Mas conheço pessoas que fazem.

Leio que alguns paulistanos, para evitar as aglomerações natalinas dos aeroportos, estão fretando jatinhos privados para viagens de fim de semana até alguma praia da Bahia. Preço? 34 mil reais. Em minha última viagem por cinco países da Europa, novembro passado, paguei bem menos do que isso. Por duas pessoas, passagens, hotéis e bona-xira incluídos. Comendo e bebendo bem. Verdade que São Paulo está repleta de milionários, para quem 34 mil reais ou 34 centavos tanto faz como tanto fez. Mesmo assim, é um absurdo.

A cada fim de ano, nunca falta quem me pergunte se vou ficar na cidade durante as tais de festas. Ora, nestes dias não saio daqui nem atado. Como tampouco saio nos feriadões. É quando dois ou três milhões de pessoas saem da cidade e São Paulo vira uma espécie de Dom Pedrito em um domingo de chuva. Ruas quase desertas, silêncio, restaurantes sem filas, garçons sem os percalços de uma casa cheia. Se há algo que não entendo no mundo é esta psicologia de rebanho. Por que saírem todos nas mesmas datas? Quem se dispõe a pagar 34 mil reais por um jatinho até uma praia, obviamente tem disponibilidade para viajar em outra ocasião mais confortável. A conclusão a que chego é: quanto mais rico, mais idiota.

Sim, já viajei nestes períodos, é que gosto do inverno europeu. Mas confesso que é desconfortável. Tanto no Natal como Ano Novo, comer é complicado. Viajar, mais ainda. Procuro então chegar bem antes destas datas. Isso sem falar que nos primeiros dias de dezembro ainda é estação baixa. Onde estiver, tento enfrentá-las da melhor maneira possível.

Outro problema é que o Natal desfigura aquelas magníficas praças européias, com as tais de feiras natalinas. As praças desaparecem, dando lugar a quiosques que vendem bugigangas. A Plaza Mayor, de Madri – que, diga-se de passagem, já foi palco de grandes fogueiras para a queima de hereges pela Igreja Católica – tem sua belíssima arquitetura churrigueresca oculta pelos barracos dos camelôs de fim de ano.

Mas um certo Natal, na Grand Place de Bruxelas, me levou às lágrimas. O espaço foi tomado por ciprestes, envoltos em uma suave luz azulada. Holofotes projetavam figuras nas paredes dos prédios em torno à praça e uma divina música de fundo inundava o silêncio ambiente. Não vi símbolo religioso algum. Perambulei horas por um mundo mágico, irreal. Savoir faire não é para todos. Aquele Natal valeu.

Ano novo é bem mais complicado. Com minha mania de fugir do verão tropical e viajar no inverno europeu, boa parte de meus réveillons foram em Paris, Madri, Berlim, Colônia, Roma. Sempre encerrado em um hotel. Nas primeiras vezes, até tentei aproximar-me dos fogos. Quando a multidão começava a engrossar, dava meia volta. Multidões me dão medo. Quando uma multidão vai para o norte, eu rumo ao sul.

Certa vez, um amigo quis levar-me, eu e a Baixinha, até o Ayuntamiento de Madri, na Puerta del Sol, onde os madrilenhos comemoram a passagem do ano comendo doze uvas à meia-noite, uma a cada badalada do relógio da torre da prefeitura. Até que tentei. Não consegui e voltamos para o hotel. E fiz algo que jamais faço em um hotel: liguei a televisão. Embalados por uma Freixenet, contemplamos confortavelmente os festejos no mundo todo.

Ao abandonar São Paulo em busca de descanso, os paulistanos levam para as pequenas cidades todos os problemas da cidade grande: ruído, engarrafamentos, filas. Enfim, melhor para quem fica. Eu, que sou indiferente a natais, agora estou adorando. Nesta metrópole, me sinto como em uma aldeia de ruas desertas.

Coincidentemente, estou recebendo daqui a pouco, chez moi, este amigo daquela Navidad madrilenha. Vamos degustar, com mais gentes dos dias de Paris, um libamáblokk szarvascombával, que é como os húngaros chamam, em sua língua singela, o foie gras trufado.

Ou acho que seja, sei lá! Mas acho ótimo degustar um libamáblokk szarvascombával. Soa muito mais exótico que um reles foie gras. Trouxe de Budapeste e isso não é coisa que se consuma sozinho. Em memória aos dias de Espanha, brindaremos com uma cava catalã.

Tim tim, leitor!

quinta-feira, dezembro 22, 2011
 
PCdoB ESCANDALIZA,
MAS AMADO É HERÓI



Está causando espanto nos meios jornalísticos a nota em que o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) se solidariza com o povo coreano e com o Partido do Trabalho da Coréia pela morte do líder da República Popular Democrática de Coréia (RPDC), Kim Jong Il.

Estimado camarada Kim Jong Un

Estimados camaradas do Comitê Central do Partido do Trabalho da Coréia

Recebemos com profundo pesar a notícia do falecimento do camarada Kim Jong Il, secretário-geral do Partido do Trabalho da Coréia, presidente do Comitê de Defesa Nacional da República Popular Democrática da Coréia e comandante supremo do Exército Popular da Coreia.

Durante toda a sua vida de destacado revolucionário, o camarada Kim Jong Il manteve bem altas as bandeiras da independência da República Popular Democrática da Coreia, da luta anti-imperialista, da construção de um Estado e de uma economia prósperos e socialistas, e baseados nos interesses e necessidades das massas populares.

O camarada Kim Jong Il deu continuidade ao desenvolvimento da revolução coreana, inicialmente liderada pelo camarada Kim Il Sung, defendendo com dignidade as conquistas do socialismo em sua pátria. Patriota e internacionalista promoveu as causas da reunificação coreana, da paz e da amizade e da solidariedade entre os povos.

Em nome dos militantes e do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) expressamos nossas sentidas condolências e nossa homenagem à memória do camarada Kim Jong Il.

Temos a confiança de que o povo coreano e o Partido do Trabalho da Coreia irão superar este momento de dor e seguirão unidos para continuar a defender a independência da nação coreana frente às ameaças e ataques covardes do imperialismo, e ao mesmo tempo seguir impulsionando as inovações necessárias para avançar na construção socialista e na melhoria da vida do povo coreano.


Comunista morre pela boca. Aldo Rebelo, ministro dos Esportes, solidarizou-se com a nota de seu partido: "Minha opinião sobre isso é a opinião do partido. Temos no Brasil a mania de querer censurar até nota de pesar. O homem morreu, a gente faz uma nota de pesar e o pessoal vem contestar?", disse.

Kim Jong-il mereceu pelo menos algum a consideração a mais por parte dos brasileiros do que Muamar Kadafi. Eu estava chegando em Berlim quando soube a notícia de seu assassinato. Fiquei esperando uma nota de pesar de Lula, que o saudou como “amigo e irmão”. Não vi nota nenhuma. O amigo e irmão líbio morre daquele jeito e o amigo e irmão brasileiro não diz uma palavrinha. Como tampouco ouvi palavra dos demais líderes que o abraçaram, como Obama, Sarkozy, Merkel, Berlusconi, Cameron, Cristina Kirchner. Os jornais foram pródigos em mostrar fotos destes dignitários confraternizando com Kadafi. Curiosamente, omitiram os salamaleques de Fidel Castro e Mandela ao ditador líbio. A propósito, Mandela recebeu em 1989 o Prêmio Internacional Al-Kadafi de Direitos Humanos.

Mas falava da santa indignação de algumas vestais da imprensa quanto aos pêsames do PCdoB e de Aldo Rebelo por ocasião da morte do ditador norte-coreano. Ora, se é para indignar-se, muito mais vil foi um insigne vulto das letras pátrias, que ainda este ano recebia homenagens em todos os jornais brasileiros.

Em O Mundo da Paz, que escreveu em 1950 subvencionado por Moscou, Jorge Amado faz uma ode a Lênin, Stalin e ao ditador albanês Envers Hodja. No ano seguinte, quando o livro foi publicado, Amado recebeu em Moscou o Prêmio Stalin Internacional da Paz, atribuído ao conjunto de sua obra, condecoração geralmente omitida em suas biografias. Escreve o baiano:

“Vós sabeis, amigos, o ódio que eles têm - os homens de dinheiro, os donos da vida, os opressores dos povos, os exploradores do trabalho humano - a Stalin. Esse nome os faz tremer, esse nome os inquieta, enche de fantasmas suas noites, impede-lhes o sono e transforma seus sonhos em pesadelos. Sobre esse nome as mais vis calúnias, as infâmias maiores, as mais sórdidas mentiras. ‘O Tzar Vermelho’, leio na manchete de um jornal. E sorrio porque penso que, no Kremlin, ele trabalha incansavelmente para seu povo soviético e para todos nós, paras toda a humanidade, pela felicidade de todos os povos. Mestre, guia e pai, o maior cientista do mundo de hoje, o maior estadista, o maior general, aquilo que de melhor a humanidade produziu. Sim, eles caluniam, insultam e rangem os dentes. Mas até Stalin se eleva o amor de milhões, de dezenas e centenas de milhões de seres humanos. Não há muito ele completou 70 anos. Foi uma festa mundial, seu nome foi saudado na China e no Líbano, na Romênia e no Equador, em Nicarágua e na África do Sul. Para o rumo do leste se voltaram nesse dia de dezembro os olhos e as esperanças de centenas de milhões de homens. E os operários brasileiros escreveram sobre a montanha o seu nome luminoso”.

O homem que escreveu esta ode a um dos maiores assassinos do século passado ainda hoje recebe as honras da imprensa nacional. Já os malucos do PCdoB causam espanto.

 
O RETROCESSO

João Eichbaum



Janer Cristaldo, em crônica intitulada “São Paulo Quer Analfabetizar Ainda Mais As Novas Gerações”, publicada ontem neste blog, discorre sobre a pobreza cultural que marca a geração atual.

Coincidência ou não, o ensino no Brasil deu marcha-à-ré a partir da chamada “Nova República” que trouxe para a administração do país pessoas de reputação e cultura duvidosas como José Sarney e Collor de Mello.

Esse último foi quem introduziu analfabetos na administração da coisa pública, como aquele sindicalista, cujo nome já nem me lembro, nomeado Ministro do Trabalho, o inventor do adjetivo “imexível”, e uma amadora para gerir as finanças, a Zélia, que meteu a mão na poupança (seja em que sentido for) dos brasileiros.

Esses foram os primeiros sinais do retrocesso cultural que hoje domina em qualquer setor e que levou à Presidência da República uma pessoa que não teve sequer o ensino fundamental concluído e, em sua vida, jamais leu um livro.

No Executivo, ministros e secretários de Estado, que não têm a mínima intimidade com o vernáculo e muito menos com a área para a qual são designados, vivem nos impingindo balelas, inaugurando obras “no papel” e se mantendo no poder graças a um blábláblá inconsistente.

No Legislativo, os Romários, os Danrlei da vida, e muitos outros que de legisladores só têm a denominação, porque as leis aqui são feitas por medidas provisórias do Executivo, só enchem os bolsos e as manchetes dos jornais. Nada mais.

O Judiciário já não existe. Quem julga são os estagiários, os assessores, os secretários. São esses que têm “contatos” com advogados safados, que não têm cultura jurídica, mas têm lábia e o dinheiro do cliente, para fazer dele o que bem entenderem.

Tudo isso, a imoralidade, a corrupção, o desmantelamento das instituições só tem uma origem: o retrocesso cultural. A safadeza ocupa o lugar da cultura porque, a partir do momento em que novas “teorias pedagógicas” foram adotadas, com desprestígio para a classe do magistério, os verdadeiros professores se afastaram das salas de aula. Aqueles professores que cuidavam não só da instrução como da educação dos alunos já não existem. E a cultura faliu.

quarta-feira, dezembro 21, 2011
 
MORRE UM DEUS AO NORTE


Leitor me pergunta se não vou escrever sobre a morte do ditador norte-coreano Kim Jong-il.

“Repare como a idéia de deus é simplesmente substituída pela de um "grande líder". Entre as façanhas do grande líder nas quais todo comunista coreano deve acreditar, afirma-se que ele teve o nascimento pressagiado por um duplo arco-íris; começou a andar aos 4 meses e a falar aos 6; e em 3 anos escreveu 1.500 livros e 6 óperas- melhores que as de qualquer Mozart ou Verdi, claro. Há relatos de observadores internacionais que afirmam que ele e o filho já são adorados como deuses nas escolas da Coréia. Será isto algo fácil de explicar? Quando um país passa pela experiência comunista, ele resolve abraçar um ópio ainda pior, o cristianismo. O caminho mais rápido para o obscurantismo é o comunismo ou o cristianismo?”

Confesso que sobre a morte do grande líder pouco ou nada tenho a dizer. Os jornais estão divulgando amplamente suas loucuras. Nelas não há nada de novo. Não poucos articulistas trabalham com a falsa hipótese de que os comunistas são ateus. Nunca foram. Apenas trocaram o deus cristão por um outro. No caso, uma deusa, a História. Essa deusa teve uma encarnação humana, Stalin. Tanto que, em 1953, havia comunistas que não acreditavam em sua morte, afinal um deus não pode morrer.

A fé absoluta na doutrina marxista era tal que um comunista sempre olhava com piedade para quem quer que dele discordasse: o coitado nada entendia do mundo. A Parusia proletária era dada como inelutável e a humanidade toda caminhava rumo ao comunismo. Poderíamos encher páginas e páginas listando os pensadores que perceberam este caráter religioso da nova doutrina. Vou ficar em apenas dois, Camus e Kazantzakis, que acompanharam de perto o grande embuste do século passado.

Retomo alguns momentos de minha tese Mensageiros das Fúrias, defendida em 1981 na Université de la Sorbonne Nouvelle:

Escreve Camus, em O Homem Revoltado: "O ateísmo marxista é absoluto. No entanto, ele restabelece o ser supremo ao nível do homem. A crítica da religião chega a esta doutrina na qual o homem é para o homem o ser supremo. Sob este ângulo, o socialismo é um empreendimento de divinização do homem e adquiriu certas características das religiões tradicionais".

"...o socialismo autoritário, que vai dessacralizar o cristianismo e incorporá-lo a uma Igreja conquistadora".

"O messianismo científico de Marx..."

O proletariado, "por suas dores e lutas, é o Cristo humano que resgata o pecado coletivo da alienação".

"O movimento revolucionário, no final do século XIX e no começo do XX, viveu como os primeiros cristãos, à espera do fim do mundo e da Parusia do Cristo proletário".

"A revolução russa continua só, viva contra seu próprio sistema, longe das portas celestes, com um apocalipse a organizar. A Parusia ainda está longe. A fé está intacta, mas se curva a uma enorme massa de problemas e descobertas que o marxismo não havia previsto. A nova igreja está de novo frente a Galileu: para conservar a fé, ela vai negar o sol e humilhar o homem livre".

Um outro escritor do início de século, que viveu este confuso noivado bem antes que Camus, será ainda mais incisivo nesta aproximação. Em Voyages - Russie, Nikos Kazantzakis lembra como se fez a luz em seu espírito. Para ele, todos os apóstolos do materialismo davam às questões respostas grosseiras, de uma evidência simplória. Como em todas as religiões, tentavam difundir aquelas respostas tornando-as compreensíveis para a multidão. Kazantzakis fala da existência, na Rússia, de um exército fanático, implacável, onipotente, constituído de milhões de seres, que tinha em mãos milhões de crianças e as instruía como bem entendia. Esse exército, continua o cretense, tinha seu Evangelho, O Capital. Seu profeta, Lênin, e seus apóstolos fanatizados que pregavam a Boa Nova através do mundo. Esse exército possuía também seus mártires e heróis, seus dogmas, seus padres apologistas, escolásticos e pregadores, seus sínodos, hierarquia, liturgia e mesmo a excomunhão: "somos contemporâneos deste grande momento em que nasce uma nova religião".

Ou seja, não estamos diante de ateus e sim de crentes que cultuam um novo deus. Não é pois de espantar que no passado de quase todos os antigos marxistas temos um cristão que renegou a própria religião. Tampouco causa espécie que o Partido Comunista sempre tenha sido forte em países católicos. A Rússia, é bom lembrar, era um dos maiores países católicos do mundo nos albores do século passado.

Que mais não seja, em O Idiota, através da boca do príncipe Mychkine, o ortodoxo Dostoievski há muito previra que o catolicismo romano originaria um socialismo ateu. Ateu em relação ao Deus dos céus e dos infernos, mas religioso em relação ao homem enfim divinizado. Morto o Deus judaico-cristão, deus nenhum outro à vista para sucedê-lo, o homem ocidental, órfão e carente de fé, irá criar um deus vivo.

Os russos, excitados pelo messianismo chauvinista e anti-semita de Dostoievski, já andavam procurando o seu. Por volta de 1850, Vladimir Soloviev erige o movimento revolucionário "Os Buscadores de Deus", que acaba não achando nada. Mas a semente está lançada. Será após o fracasso da revolução de 1905, que Maxim Gorki e Lunatcharski (futuro escritor oficial da era staliniana) fundarão o movimento "Os Construtores de Deus".

Gorki, que julgava a mentira necessária contra as "verdades nefastas", diz em uma carta de 1908, dirigida a Gregor Alexinski, que o "socialismo deve se transformar em culto". Em A Mãe, escrito nos Estados Unidos em 1906, um militante diz aos operários em cortejo: "nossa procissão agora marcha em nome de um deus novo".

Em uma novela de 1908, A Confissão, o incipiente deus já ensaia seus poderes: à passagem de uma manifestação de operários, um paralítico deitado em uma maca se levanta e anda. E antes de morrer envenenado por seu "Deus"), Gorki afirma: "Lá onde reina o proletariado não há lugar para uma querela entre o saber e a fé, pois a fé neste caso é o resultado do conhecimento pelo homem do poder da razão".

Os tempos estão maduros para a emergência da nova fé. Marx e Engels fornecem o Livro, pois toda religião que se preze se fundamentará em um livro. Os revolucionários de 17 conquistam um território. Só faltava o Deus feito carne. Em Gori, na Geórgia, nasce o Menino. É sintomático o maravilhamento de um Graciliano Ramos quando visita a casa onde nasceu Stalin: “Eu vi o berço do Menino”.

Mao também foi cultuado como deus. Kim Jong-il exagerou na dose. Mas numa sociedade pequena e fechada como a Coréia do Norte, onde até hoje estrangeiros não podem entrar com celular, tudo é possível. Tenho visto fotos de multidões chorando pela morte do deus. São sintomáticas estas fotos, as pessoas parecem chorar em ordem unida, todos com a mão esquerda sobre a boca. Pelo jeito, o grande líder regulamentou até mesmo o pranto em seu país. Nada vejo de espantoso que um duplo arco-íris tenha anunciado seu nascimento. Se o Cristo nasceu de uma virgem e uma estrela o anunciou, duplo arco-íris é uma homenagem até modesta ao novo deus ao norte.

Mas o leitor quer saber qual o caminho mais rápido para o obscurantismo, se o comunismo ou o cristianismo. O mais rápido, não sei. Mas o mais perverso é sem dúvida o cristianismo. O comunismo não chegou a emplacar um século. O cristianismo vige há dois milênios.

terça-feira, dezembro 20, 2011
 
SÃO PAULO QUER ANALFABETIZAR
AINDA MAIS AS NOVAS GERAÇÕES



Há bem mais de trinta anos, quando ainda cronicava em Porto Alegre, manifestei minha perplexidade ante os conhecimentos de matemática, na época, de funcionários que tinham por trabalho lidar com elementares operações de adição e subtração: “E fui ao correio postar uma carta. E perguntei à funcionária quanto pagaria em selos. E ouvi vinte cruzeiros como resposta. E paguei os vinte. E levei a carta para registro. E a outra funcionária me informou que eram 31 cruzeiros. E voltei ao guichê anterior para pagar o restante. E vi a moça manipular uma calculadora eletrônica. E vi registrar 31. E calcar a tecla de subtração. E depois 20. E vi a moça ler no visor: 11. Perplexo, paguei os 11”.

Anos mais tarde, quando lecionava na UFSC, voltei a tomar contato com esta miséria intelectual. Seguidamente tomava alguma cerveja com minhas aluninhas. Elas se espantavam com minha facilidade em calcular conta e troco. Suspeitando de algo errado, interroguei-as sobre a tabuada. Ninguém sabia somar ou subtrair, multiplicar ou dividir, sem uma maquininha. Ou seja, aquelas noções elementares de aritmética que adquiri já no primário, elas, na universidade, desconheciam.

Quanto aos conhecimentos de português, estes continuam de “mau” a pior, como diriam minhas alunas. Seguidamente tropeço, mesmo em jornais de porte do país, esta confusão entre mal e mau. Pelo jeito, está cada vez mais difícil distinguir o “l” do “u”. Já li cardápios anunciando fraudinhas. Ora, fraudinha é como o Zé Dirceu ou o Delúbio definiriam suas fraudes. Fraldinha é outra coisa. O analfabetismo parece ter contaminado até o clero. Há alguns séculos, eram pessoas que dominavam o latim. Hoje, desconhecem o vernáculo. Numa igrejinha do interior catarinense, li escrito numa cruz:

SAUVA TUA AUMA

Ano passado, li numa decisão judicial: “cujo o”. Ou seja, o analfabetismo está invadindo o Judiciário. Este erro tem sido recorrente no jornalismo contemporâneo, feito por esses meninos dos quais se exige diploma em jornalismo para exercer a profissão. Há professores que defendem a tese do não ensino desse pronome nas aulas de português, por tratar-se de um "brontossauro linguístico". Ou seja, se os tais de jovens não conseguem mais usar uma norma lingüística, extinga-se a norma.

O mal vem de longe. A Lei de Diretrizes e Bases facultou às escolas, em 1996, a adoção do "Regime de Progressão Continuada", medida saudada como "histórica", "revolucionária" e "emocionante". Pelo novo regime, os alunos entram na escolas de ensino secundário e não podem mais ser reprovados. Ao final de sete anos, saem obrigatoriamente de diploma em punho. São Paulo disputou a honra do pioneirismo na aplicação do brilhante achado. Dados os altos índices de reprovação nas redes municipais, o dispositivo caía como uma luva para zerar estes índices. Em 1998, a progressão continuada tornou-se modelo estadual.

A História é uma eterna luta entre alfabetizados e analfabetos, dizia Nestor de Hollanda, de saudosa memória. Segundo o autor, os analfabetos estavam avançando inexoravelmente em todas as áreas. Dito e feito. Agora planejam tomar os campi de assalto. Por obra dos legisladores nacionais, em breve um analfabeto de pai e mãe poderá ostentar em seu currículo um diploma de curso superior. A reprovação, único instrumento eficaz de controle da qualidade de ensino, está virando coisa do passado. Se no secundário está se tornando proibida, nos cursos superiores é cada vez mais rara e mesmo inexistente. Conta-me um amigo, professor de universidade privada, que não pode reprovar nem mesmo alunos que jamais assistiram suas aulas. O ensino virou um teatro, onde o aluno finge que aprende e o professor finge que ensina - disto está consciente todo professor que costuma olhar-se no espelho antes de entrar em sala de aula.

Quando fiz meu ginásio, em Dom Pedrito, reprovação era uma espada que pendia o ano todo - e todos os anos - sobre a cabeça do aluno. Repetir de classe era mais ou menos como virar leproso. Era angustiante, confesso. Destes dias de dureza, costumo evocar um de meus mestres, o professor Hugo Brenner de Macedo, que descontou dois pontos de uma dissertação, porque o aluno havia escrito feichão em vez de feijão. Na universidade, se descontasse dois pontos por cada erro de grafia, raros seriam meus alunos aprovados. Conheci várias universidades e profissionais delas oriundos nos últimos anos. Posso afirmar tranqüilamente que, no ginásio daquela cidadezinha, então com 13 mil habitantes, recebi uma educação que hoje não se ministra nem em cursos de Letras.

Em meio a isto, a Secretaria de Estado da Educação de São Paulo vai reforçar, a partir do ano que vem, o ensino das disciplinas de sociologia, filosofia e artes. Para isso, vai cortar o número de aulas de matérias como língua portuguesa, matemática, história e geografia. Ou seja, em um país onde até mesmo profissionais que lidam com a língua ou com números não sabem mais contar ou escrever, as autoridades educacionais decidem reduzir a carga horário das duas disciplinas mais básicas de qualquer ensino, português e matemática. Isso sem falar naquelas duas outras, fundamentais para entender o planetinha em que vivemos, história e geografia.

Em benefício de quê? De sociologia, filosofia e artes, estas disciplinas que permitem enfiar ideologia goela abaixo nos alunos. Desde há muito, as tais de “humanas” têm sido o instrumento predileto para marxistas empurrarem doutrina aos jovens. Sociologia à parte, estes cursos seriam importantes se ministrados honestamente. Hoje, são verdadeiros laboratórios de utopias desvairadas. Filosofia foi algo que estudei por conta própria, antes mesmo de entrar na faculdade. Quando lá cheguei, vi professores que começavam com a dialética em Platão. Para chegar onde? À dialética em Marx e Engels, é claro. Como se a dialética platônica tivesse algo a ver com a dialética hegeliana.

Tomei consciência de que algo errado havia no ensino de filosofia ao chegar em São Paulo. Não faltou uspiano que me perguntasse: qual filosofia estudaste? Como qual filosofia? Filosofia não existe. O que existe é história da filosofia, as diferentes concepções que pensadores tiveram do mundo ao longo dos séculos. Eu havia estudado todas as filosofias, desde os pré-socráticos aos contemporâneos, passando até mesmo pela teologia, que a Santa Madre Igreja Católica fez passar por filosofia durante séculos. O tomismo, que nada tem a ver com o filosofar, fazia parte de meu currículo. Philosophia ancilla theologiae, diziam os antigos. A filosofia é serva da teologia. Os tempos mudaram. No Brasil, pelo menos, a filosofia é serva do marxismo.

A decisão da Secretária de Educação de São Paulo aponta para um objetivo óbvio: analfabetizar ainda mais as novas gerações e substituir conhecimento por ideologia.

segunda-feira, dezembro 19, 2011
 
A HISTÓRIA PASSOU NA JANELA
E SÓ A FILHA DO GENRO NÃO VIU


Meu caro Quaglio,

em setembro de 1996, Vaclav Havel esteve no Brasil. A falta de parlamentares em Brasília impediu sua recepção no Congresso, como era de praxe. Havel trocou a visita por um passeio pela cidade. Admirou monumentos, contemplou o Alvorada como turista e terminou o passeio tomando cerveja sozinho em um restaurante do Lago Sul. As únicas “autoridades” que o receberam em sua visita foram alguns caciques da tribo uaimiri atroari, em Manaus. O Brasil teve a honra de receber um dos mais importantes líderes políticos do século e deixou-o entregue às moscas num boteco qualquer em Brasília.

A ida ao Congresso foi cancelada porque não havia quem recebesse o presidente tcheco de acordo com o protocolo. Os presidentes da Câmara, Luís Eduardo Magalhães (PFL-BA), e do Senado, José Sarney (PMDB-AP), recusaram-se a marcar a audiência, já prevendo o esvaziamento. Havel opôs-se aos comunistas tcheco-eslovacos, sofreu mais de quatro anos de prisão e ainda ousou ser presidente de seu país. Foi tratado como leproso no Brasil.

Essa gente não tem cura, Quaglio. Em 1991, andou em Porto Alegre uma triste alma penada, convidado e patrocinado pelos bolches que tomaram posse da alcaiceria da capital gaúcha, o comunista grego Cornelius Castoriadis. Conivente a vida toda com o fascismo eslavo, desmoralizado em Paris por seus laivos de Madalena tardia, conseguiu encontrar ao sul dos trópicos, logo em Porto Alegre que eu julgava cidade culta, um palco para suas histrionices. A capital gaúcha desde há muito vem emburrecendo. Suas elites importam da Europa prostitutas decadentes de fim de noite, desde que tenham boca para qualquer prática como, por exemplo, tentar recuperar os restos podres do socialismo.

Fosse só isso, não era nada. Quando o Cornelius, papagueando o que há duas décadas se sabia na Europa, classificou como stalinista o regime de Castro, foi vaiado. Devagar nas pedras, Cornelius. As esquerdas tropicais são assim mesmo, lentas e fanáticas. Mesmo após a queda de Castro, necessitarão de mais algumas décadas para considerá-lo ditador.

(Falar nisso, ao comentar a morte do ditador norte-coreano Kim Jong-Il, escreve El País em sua edição de hoje: “Estuvo al frente de la única dinastía comunista hereditaria del mundo durante 17 años”. Pelo jeito o jornal esqueceu dos irmãos Castro, que estão no poder há 52 anos. Raul é o dauphin).

Luciana Genro vê na queda do Muro “a rebelião de um povo cansado da opressão e da miséria, em um sistema que nada tinha em comum com a idéia generosa do socialismo de Marx, Lênin e Trotsky”. Vê isto hoje, duas décadas após o acontecimento. Mais um pouco, com essa extraordinária capacidade que têm os comunistas de distorcer a História, e acabará se convencendo de que foram eles, os comunistas, que derrubaram o muro.

Ainda este ano, duas décadas após o desmoronamento da União Soviética, Luciana Genro conclamava seus seguidores no Twitter a participar do painel Atualidade do Marxismo, coordenado pelos presidentes do PSOL gaúcho e nacional. “Pedimos a cada um de nossos militantes, simpatizantes e amigos que participem e convidem colegas, vizinhos, familiares e amigos. Vamos juntos enriquecer nosso partido e fortalecer nossa unidade e luta”.

Imaginei, um dia, que o marxismo morreria com a morte de seus últimos cultores, que afinal não podiam renunciar à doutrina. Seria algo como dizer: fui uma solene besta minha vida toda. Que Tarso Genro continue stalinista se entende. Árvore velha não se dobra. Sempre defendeu o comunismo e o stalinismo e renunciar ao obscurantismo seria negar tudo o que escreveu. Esclerose é isso mesmo, enrijecimento do cérebro.

Mas Luciana Genro tinha 18 anos quando caiu o Muro. Tinha 20 quando a União Soviética esfacelou-se. Terá tapado a cabeça com um travesseiro para não ouvir o rumor do mar?

Parafraseando outro velho comunossauro: a história passou na janela e só a Luciana não viu.

domingo, dezembro 18, 2011
 
FILHO FEIO NÃO TEM PAI


Caro Janer,

Cordiais saudações!

Hoje de manhã li as notícias sobre a morte de Vaclav Havel. Coincidentemente, eu havia comprado ontem o livro 1989 - O ano que mudou o mundo, de Michael Meyer, publicado pela Zahar. Ainda ontem, eu estava buscando resenhas ou opiniões sobre o livro de Meyer, quando me deparei com isto:

Excelente registro histórico do jornalista norte-americano Michael Meyer sobre os acontecimentos que mudaram o mundo em 1989. “1989 – O ano que mudou o mundo” relata os bastidores dos acontecimentos que nossa geração assitiu pela televisão, e talvez não tenha tido, na época, sua total dimensão. Na Polônia, Meyer acompanhou o renascimento do sindicato Solidariedade, cujo líder, Lech Walesa, viria a ser presidente. Na Hungria, o primeiro “furo” na cortina de ferro. Em Praga, Tchecoslováquia, ele esteve com Vaclav Havel, também futuro presidente daquele país quando aconteceu a Revolução de Veludo. Assistiu, ainda, a execução do ditador da Romênia Nicolae Ceausesco. Mas o momento culminante foi a queda do muro de Berlim, em 9 de novembro de 1989, que Meyer assistiu do lado leste da fronteira, e se juntou aos alemães que dançavam no alto do Muro da Vergonha.

Os acontecimentos de 1989 deixaram profundas marcas na esquerda de todo o mundo. Muitos lamentaram a “morte do socialismo”, mas outros tantos, como eu, viram naqueles acontecimentos a rebelião de um povo cansado da opressão e da miséria, em um sistema que nada tinha em comum com a idéia generosa do socialismo de Marx, Lênin e Trótsky. Em busca de liberdades democráticas e do fim da penúria econômica, esses povos acreditaram que o capitalismo era o caminho, pois do socialismo só conheceram uma grotesca imitação. O livro de Michael Meyer nos conduz às entranhas desse processo, fornecendo elementos para que cada um chegue às suas próprias conclusões. A mais evidente, contrariando os profetas do capitalismo, é que a história não acabou.


A Luciana Genro, elogiando o livro de Meyer, condenando o regime dos países do leste da Europa antes de 1989, e ao mesmo tempo louvando aquilo que ela chamou de "a idéia generosa do socialismo de Marx, Lênin e Trótsky". Digno de riso.

Pouco depois, li seus dois textos publicados recentemente no blog, sobre o Psol gaúcho querendo mudar nome de rua em Porto Alegre e sobre o Havel. Não resisti em te enviar este e-mail. O "duplipensar orwelliano" dessa gente é de uma regularidade espantosa. Funciona como um bom relógio. Lembrei-me da época em que a esquerda clamava contra o Rubens Ricupero por ter dito que "o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde", e fiquei pensando: nenhum esquerdista iria querer deixar de faturar com as imagens do povo tomando as ruas de Berlim e derrubando o muro em 1989, mas também não iria querer blasfemar contra seus santos "Marxengels" e "Lenitrótisque". Como diz o ditado popular, filho feio não tem pai.

Querem negar que o muro horroroso seja o filhote de Marx e Lênin (como eles mesmos são), e querem assumir a paternidade dos belos eventos de novembro de 1989. Eles fazem questão de esquecer que dentre as imagens mais exibidas na televisão durante aquele período estavam as demolições e destruições de estátuas de Lênin...

Um grande abraço!

Humberto Quaglio

 
In memoriam Vaclav Havel:
UM ESCRITOR SEM MEDO *



Praga - A vida é como uma viagem aos países do Leste - dizia-me um jornalista espanhol -, curta e cheia de aborrecimentos. Suas observações, é claro, datavam do ano passado. Corroído desde dentro o regime tão amado pela intelligentsia brasileira, regime que durante décadas devastou os povos do Leste, viajar por estas bandas torna-se interessante. Em Berlim, junto à porta de Brandenburgo, onde consegui arrancar alguns cacos do Muro antes que fosse posto abaixo pelos seus construtores, o ruído incessante dos martelos escavando o símbolo maior da Guerra Fria foi música para meus ouvidos.

Estou agora em Praga. Segundo observadores temerários, a cidade mais linda do mundo. Opinião discutível para quem viveu em Paris. Mas isto pouco importa. E sim Vaclav Havel. No ano passado estava no cárcere e hoje é presidente da Tcheco-Eslováquia. Tudo muda neste mundo, e mais rapidamente do que se pode imaginar. Como dizia Marx, profeticamente, tudo que é sólido se desmancha no ar.

- Não encontrei um único relógio nos gabinetes do Castelo de Praga - disse Havel em seu primeiro discurso ante o Parlamento -. Considero isto como algo simbólico. Durante longos anos não havia porque olhar um relógio, pois o tempo estava parado. Em realidade, foi a História que parou.

Vaclav Havel é escritor, dramaturgo e ensaísta. Sofreu quatro anos de prisão lutando contra o regime comunista cuja defesa levou ao cárcere míopes intelectuais brasileiros e latino-americanos. Antes de partir para a Tcheco-Eslováquia, decidi munir-me de alguma informação sobre o país. Publicações oficiais louvavam os grandes feitos do socialismo. O mesmo não diria - nem disse - Havel em seu discurso.

- Durante quarenta anos temos escutado a mesma coisa da boca de meus predecessores, embora apresentada de formas diferentes: nosso país floresceu, produzíamos tantos milhões mais em aço, somos todos felizes, temos fé em nosso governo e brilhantes perspectivas pela frente. Suponho que não me propuseram para este cargo com a finalidade de que eu também lhes minta. Nosso país não floresce. Este estado, que pretende ser um estado de trabalhadores, humilha e explora os trabalhadores. Devastamos a terra, os rios e os bosques, patrimônio de nossos antepassados, e temos o mais poluído meio ambiente de toda a Europa. Mas isto não é o principal. O pior é que vivemos em um meio moral putrefato. Estamos moralmente doentes porque nos acostumamos a dizer algo diferente do que pensamos. Aprendemos a não acreditar em nada, a não nos importarmos uns com os outros, a não nos ocuparmos senão de nós mesmos. Definições tais como o amor, a amizade, a compaixão, a humildade ou o perdão perderam suas dimensões e sua profundidade e significam para nós uma espécie de peculiaridade psicológica, que interpretamos como mensagens errantes de tempos passados, um tanto ridículos na era dos computadores e dos foguetes espaciais.

Em minhas rápidas incursões pelos países socialistas, sempre intuí nos rostos e gestos um medo latente pairando no ar. Medo de falar com o viajante estrangeiro, medo de falar alto, medo de emitir qualquer opinião não sacramentada pelo poder. Este medo, diga-se de passagem, só fui encontrá-lo no Brasil em duas ilhas: Brasília e Florianópolis, coincidentemente os dois mais corruptos currais eleitorais do país. Mas estou na Tcheco-Eslováquia. Em uma carta aberta a Gustav Husak, datada de 1975, Havel propunha uma questão fundamental: por que as pessoas se comportavam como o faziam? Por que cumpriam todos tudo aquilo que, globalmente, dava a impressão de uma sociedade totalmente unida, apoiando totalmente seu governo? Para Havel, a resposta era então evidente: o medo.

- Por medo de perder seu posto, o professor ensina a seus alunos coisas nas quais não acredita. Por medo de seu futuro, os alunos o repetem. Por medo de não poder continuar seus estudos, os jovens aderem à União da Juventude e fazem o que se lhes pede. Por medo de que seus filhos não obtenham, ao entrar na universidade, o número de pontos exigidos pelo monstruoso sistema de conotação política, o pai aceita as mais diversas funções e faz "voluntariamente" o que lhe é exigido. Por medo de eventuais perseguições, as pessoas participam das eleições, votam nos candidatos propostos e fingem tomar esta liturgia por verdadeiras eleições. Por medo, as pessoas assistem às comemorações, manifestações e desfiles. Por medo de serem impedidos no prosseguimento de seu trabalho, cientistas e artistas defendem idéias às quais não aderem, escrevem coisas que são falsas, associam-se a organizações oficiais, participam de trabalhos dos quais têm péssima opinião, ou ainda amputam ou deformam suas próprias obras.

Denunciar o medo exige coragem, Vaclav que o diga. Sua coragem custou-lhe anos de cárcere e agora parece contaminar os tchecos. Pela primeira vez em um país socialista, consegui falar de política, abertamente, com um desconhecido encontrado ao azar em um café. "É o começo do fim", dizia-me com entusiasmo um tcheco, embalado por uma cerveja de Praga, a 12 graus. E brindamos em altos brados - gesto insólito nas ditaduras socialistas - ao fim do regime infame.

Mas o fim ainda não chegou. Como bem acentuava meu interlocutor, estamos assistindo ao começo do fim. "O medo não é - escrevia Havel a Husak -, o único material de construção de nossa sociedade atual. Mas continua sendo, no entanto, o material essencial".

Estes povos, para os quais a História parou e os relógios não têm sentido, necessitarão de mais algumas décadas para readquirir o aprendizado da fala e do livre debate. Pode ser até verdade que a vida seja curta e aborrecida, como filosofava meu colega espanhol. Mas voltar a Praga será sempre cada vez mais interessante.


* Porto Alegre, RS, 31.03.90

sábado, dezembro 17, 2011
 
PRECONCEITO DO PSOL GAÚCHO
CONTRA DITADOR NORDESTINO



Um insólito debate tomou conta da Câmara Municipal de Porto Alegre no início deste mês. A bancada do PSOL – os vereadores Pedro Ruas e Fernanda Melchionna – elaborou um projeto de lei que propunha a alteração da denominação da Avenida Presidente Castelo Branco para Avenida da Legalidade.

A medida pretendia reescrever a história do país, homenageando os participantes do Movimento da Legalidade, de 1961. O projeto não passou. Se a moda pega, os cartórios terão muito trabalho no Brasil todo. Pois o país está cheio de ruas e avenidas não só Castelo Branco, como Garrastazu Médici, Costa e Silva, Ernesto Geisel, João Figueiredo. Mas a proposta dos vereadores é curiosa. Pelo jeito, não gostam de ditador nordestino.

Ditador gaúcho pode. O Rio Grande do Sul está eivado de ruas que homenageiam o ditador Júlio de Castilhos e há inclusive uma cidade que leva seu nome. Pelo jeito, o PSOL nada conhece da história do Estado, nem nunca ouviu falar da “ditadura científica” de Castilhos, inspirada no positivismo.

Isso sem falar nas ruas que, no Estado todo, homenageiam o ditador Borges de Medeiros, que durante 25 anos – sete anos a mais que o regime militar de 64 – foi presidente do Rio Grande do Sul. Até hoje me pergunto como a capital gaúcha não se envergonha ao dar o nome do ditador à sua avenida mais central. Gaúchos a parte, Porto Alegre – como também vários municípios do Estado – têm largos, ruas e avenidas chamadas Floriano Peixoto e marechal Deodoro. Homenagens que se repetem no país todo, tendo Floriano dado seu nome à capital catarinense.

Se os vereadores porto-alegrenses queriam tecer loas à democracia, esqueceram de pedir a troca de outros nomes na cidade. O historiador Sérgio da Costa Franco observa: “Prova da absoluta tolerância de Porto Alegre é que temos uma Praça Che Guevara, e uma rua do bairro Cascata com o nome de Carlos Marighela. Nem um nem o outro passariam num exame de fidelidade à democracia e à legalidade”.

A bem da verdade, até Dom Pedrito tem uma rua Ernesto Che Guevara. Como a cidade vive um tanto afastada da história contemporânea, poucos sabem quem foi o celerado e a rua passou a ser chamada de a Rua do Che. Palavra que, lá na Fronteira Oeste, designa qualquer um. Marighella, por sua vez, mereceu uma rua em Salvador. E Luís Carlos Prestes, o gaúcho a soldo de Moscou que pretendia fazer do Brasil uma republiqueta soviética, deu seu nome a uma rua na burguesa Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro.

Costa Franco esqueceu de mencionar a rua Capitão Carlos Lamarca, no bairro Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre. O assassino mereceu outra homenagem no bairro Las Palmas, em São Bernardo do Campo.

O projeto de lei do PSOL foi rechaçado. Defensores da idéia aventam o absurdo de existir uma rua chamada Hitler, Franco, Stalin ou Lênin. Bom, Hitler não vale. Perdeu a guerra. Se a tivesse ganho, daria seu nome a praças e avenidas em toda a Europa. Quanto a Franco, até bem pouco era homenageado em toda Espanha. Stalin deu nome a não poucas ruas e logradouros não só na União Soviética como na Europa e, mesmo após as denúncias de Kruschov em 1956, era homenageado com estátuas colossais. O mesmo diga-se de Lênin, cuja múmia ainda é venerada em Moscou. Pelo que sei, aquela estátua colossal em frente à Estação Finlândia, em São Petersburgo, continua em pé. A propósito, Paris conserva até hoje uma rue Lenine, em Baingnolet.

Diz o manifesto do PSOL: “considerando tudo o que o Marechal Castelo Branco fez na qualidade de representante da ditadura civil-militar, remonta um período marcado por severas violações aos direitos fundamentais, a lembrança pública desta personalidade afigura-se incompatível com os ideais defendidos pelo Movimento da Legalidade. Por isso, ao realizarmos a alteração proposta, estaremos, ao mesmo tempo, renovando os ideais legalistas e repudiando qualquer forma de violação aos direitos humanos e às liberdades democráticas, tornando ainda mais justa a homenagem ao movimento gaúcho pela legalidade”.

Como se Júlio de Castilhos ou Borges de Medeiros fossem paladinos da democracia. Sem falar em Getúlio Vargas, o mais querido ditador gaúcho, que foi reconduzido à Presidência da República por voto popular. Mas as esquerdas gaúchas jamais ousariam pedir a retirada do nome do Velho, onipresente nas cidades do Rio Grande do Sul. Que mais não seja, era idolatrado por Leonel Brizola, o alvo oculto do projeto do PSOL.

Puro preconceito do PSOL gaúcho contra nossos irmãos lá do norte. Ditador gaúcho pode. Nordestino é que não pode.

sexta-feira, dezembro 16, 2011
 
A CARNE É FORTE


Pois, Paulo,

tivemos itinerários mais ou menos semelhantes. Perdi minha fé lá pelos 15 ou 16 anos. Não que tivesse nascido com ela. Nascemos todos ateus. Quem introduz a idéia de deus é a família, a escola, a sociedade e o Estado. Em meu caso, minha família não foi. Meus pais eram camponeses que, se acreditavam vagamente que deveria existir alguém que havia criado o mundo, para ele pouco ligavam, e muito menos para igreja ou padres. Vigário, lá em meus pagos, era palavra associada a vigarista.

No primeiro domingo do mês sempre havia uma missa na capela das Três Vendas. A gauchada toda se pilchava, encilhava os cavalos com o melhor pelego e badana, o chinaredo tirava suas chitas do baú e saía cortando campo até a capelinha, enchendo de cores o mar de alhos-bravos que ondeavam nas coxilhas. Não era fé. Missa era um acontecimento social. Ir à missa era pretexto para uma charla no bolicho, truco, jogo de osso e provavelmente um baile à noite, para despachar as machorras. Nada a ver com a acepção urbana desta palavra. Machorra, naqueles pagos, é a vaca que não deu cria.

Em Ponche Verde, (novela, 1986), contei como fui seqüestrado para as hostes católicas lá pelos seis ou sete anos, por uma catequista, mulher de um fazendeiro do Uruguai, Doña Chichi. Ela percorria a Linha Divisória numa camionete com caçamba e ia arrebanhando a piazada dos dois lados da fronteira. Para nós, a suprema aventura não era ouvir o catecismo, mas "andar de auto". Ao final das aulas, Doña Chichi nos induzia a rezar al Todo Poderoso, para que traiga lluvia a nuestras tierras, para que se pueda vender la safra de la lana. Eu, mais pelo prazer de andar de camionete do que por outra coisa, fazia coro às preces da catequista.

Aos dez anos, conheci cidade. Fui para Dom Pedrito, onde fiz o ginásio, dirigido pelos Padres Oblatos, ordem oriunda da Alemanha. Foram excelentes mestres de línguas e matemática e souberam reunir uma boa equipe de professores laicos, para ensino de história, geografia, biologia. Aos Oblatos do Colégio Patrocínio, minha eterna gratidão pela educação que me propiciaram, educação que hoje não encontramos nem nas universidades.

O problema era a religião. A disciplina era obrigatória e a doutrinação intensa. Fui introduzido em uma doutrina baseada no terror e na reverência a um deus mudo, com especial insistência aos sexto e nono mandamentos. Pecado, para os Oblatos, eram os pecados ditos da carne. Os demais eram irrelevantes. Para comungar, precisávamos estar em estado de graça. Isto é, absolvido de todos os pecados. As confissões eram em geral aos sábados, para que no domingo a pobre alminha estivesse limpa de toda mácula. Então vinha o interrogatório constrangedor:

- Pecou contra a carne, filho? Quantas vezes? Como e onde?

Hoje, não tenho dúvidas de que os padres se masturbavam, do outro lado da tela do confessionário, ouvindo aqueles relatos. Eles foram os precursores do sexo por telefone. Só que sem telefone. Ocorre que, entre a confissão de sábado e a comunhão de domingo, havia a longa noite de sábado. No domingo pela manhã, estávamos de novo impuros, cheios de culpa e apavorados com as chamas do inferno. Mas sempre havia um padre de plantão para absolver os reincidentes.

Quando cheguei à puberdade, não conseguia entender aquelas proibições. Estava cercado de meninas e queria algo mais delas do que um simples beijo. E lá vinham os argumentos de pecado contra a castidade. Na classificação da Igreja Católica, o sexto mandamento.

Peguei uma Bíblia e fui pesquisar o Êxodo, onde estão os mandamentos. Li o livro de ponta a ponta, não encontrei nem sombra da palavrinha castidade. De Bíblia em punho, chamei uma coleguinha de origem basca, a Irigaray, que eu paquerava, para lermos junto a palavra divina. Lemos tudo referente aos mandamentos.

- Encontraste alguma menção à castidade? – perguntei.
- Não.
- Então, vamos lá?
- Ai, que horror, Janer, pára com essas bobagens.

Com o tempo, aprendi que não é com lógica que se leva uma mulher para a cama. Tentando uma primeira resposta ao leitor, eu diria que a primeira coisa a afastar-me do tal de Deus foi uma sexualidade imperiosa, exigente e implacável. A carne não era fraca, como diziam os padres. Era forte. Tão forte que não conseguíamos dominá-la. Se sexo era bom e não fazia mal a ninguém, por que privar-me de sexo? Meu ateísmo começou por aí.

Obviamente, a negação de um deus não passa por uma questão de sexualidade exacerbada. Um pouco mais adiante, li a Bíblia de ponta a ponta. Aquele deus era inviável. Cruel, exterminador, genocida, Jeová estava mais para facínora do que para divindade. Além do mais, ia tomando diferentes formas, conforme a data dos livros. Só podia ser obra do intelecto humano, criação de sacerdotes sedentos de poder. Não há crença que sobreviva a uma leitura atenta da Bíblia. Não por acaso, houve época em que a Igreja proibiu sua leitura para menores de 30 anos. Não por acaso, mandou Fray Luís de Leon para as masmorras, por ter ousado traduzir alguns livros do Livro ao espanhol.

Em suma, retornei a meu ateísmo primevo lendo a Bíblia. Não sei qual foi o caminho de outros ateus. Só posso dizer que passa pela leitura. Sem leitura – apesar do que pensa o Lula – não há salvação. Em meu caso, o gatilho inicial foi a sexualidade. Não há cristão que suporte o puritanismo medieval do catolicismo. Prova cabal disto são os milhares de padres pedófilos que a Santa Madre abriga e protege. Mas o que consolidou minha descrença foram as leituras.

Quanto ao estudo de história das religiões em idade avançada, vou discordar. Acho que isto deve ser estudado quando ainda se é jovem. Não é preciso ser muito entrado em anos para entender que se uma geografia tem um deus e outras geografias têm outros, então deus é invenção humana. Quem começa a estudar história das religiões logo perde a fé. Foi o que aconteceu com Ernest Renan, o mais importante historiador do cristianismo. Quando se perde a fé ainda jovem, ainda há tempo de viver a vida.

Há alguns anos, um amigo narrou-me uma tragédia das boas, daquelas sem volta. Um sacerdote já entrado nos 60 anos, que a havia perdido, debruçou-se sobre suas mãos e começou a chorar:

— Eles roubaram minha vida.

Roubaram mesmo. Mas se roubaram, é porque deixou-se roubar. “Te é melhor que se perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno”, diz Mateus. Orígenes, teólogo e autor de Contra Celso, levou as Escrituras ao pé da letra e cortou o seu.

Verdade que minhas leituras de história das religiões foram um tanto tardias. Hoje, é minha literatura preferida, e os livros sobre o assunto ocupam várias estantes de minha biblioteca. Mas pelo menos tive o bom senso de largar a craca cristão na adolescência.

Dediquei-me então a recuperar o tempo perdido. Dizem que a carne é fraca. Nada disso. A carne é forte. Tanto que sempre vence.