¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

sábado, junho 30, 2012
 
SOBRE SEXO E CEREJAS


Homossexualismo tem cura? Esta parece ser a grande discussão nacional, nestes dias em que a Câmara debate em Brasília se psicólogos podem ou não oferecer tratamento para a homossexualidade. Na berlinda, projeto de decreto legislativo do deputado João Campos (PSDB-GO), da bancada evangélica, que pretende rever resolução do Conselho Federal de Psicologia que proíbe que psicólogos emitam opiniões públicas ou tratem a homossexualidade como um transtorno.

Proponho outra pergunta: gostar de cerejas tem cura? Claro que evangélicos jamais porão em cheque o apreço por cerejas. Mas se encarniçam contra um outro prazer bem mais intenso que o de comer cerejas. Ainda há pouco, eu manifestava meu espanto com essa obsessiva preocupação que têm certas culturas em determinar como as pessoas devem se comportar na cama. Se não há violência nem desrespeito ao parceiro, que cada um se divirta como melhor lhe apraz e boa sorte a todos.

Em meus dias de Folha de São Paulo, quando escrevi um artigo abordando a possível homossexualidade de Cristo – e por que não? Se os evangelhos nada dizem sonbre sua sexualidade, qualquer hipótese é permissível. Assexuado é que não deveria ser – recebi telefonema de um pastor, perguntando se eu não estava precisando de cura. Disse-me que tinha uma casa que abrigavam muitos ex-homossexuais. Ora, pastor, confesso que jamais vi um destes seres de perto. Entendo que uma pessoa possa ser ex-marido, ex-sacerdote, ex-comunista. Mas por que ser ex-homossexual? Se era, a prática lhe era prazerosa. E se lhe trazia prazeres, por que a ela renunciar?

Quando se pergunta se homossexualismo tem cura, claro está que se fala em doença. Durante séculos, exceto em algumas culturas pagãs, este comportamento foi visto como perversão ou doença, e só em 1973 a homossexualidade deixou de ser classificada como tal pela Associação Americana de Psiquiatria. Em 1990, a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da sua lista de doenças mentais. Em 1991, a Anistia Internacional passou a considerar a discriminação contra homossexuais uma violação aos direitos humanos.

No Brasil, a Associação Brasileira de Psiquiatria considerou, em 84, a considerou a homossexualidade como algo não prejudicial à sociedade. No que foi seguida, no ano seguinte, pelo Conselho Federal de Psicologia, que acabou estabelecendo mais tarde regras para a atuação dos psicólogos em relação às questões de orientação sexual. Considerou-se então que a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio, nem perversão e que os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e/ou cura da homossexualidade. E aqui reside o nó górdio da questão. Os evangélicos querem permitir que psicólogos tratem a homossexualidade de clientes. A militância gay vê nesta atitude preconceito.

Quinta-feira passada, 28 de junho, quando ocorreram os debates em Brasília, foi proclamado o Dia Mundial do Orgulho Gay. Para o deputado João Campos, a resolução do CFP veda que o psicólogo atenda o homossexual que queira se tratar, como se esse paciente fosse um cidadão menor. Ora, por que um cidadão desejaria tratar-se de algo que lhe é prazeroso? Só mesmo por razões religiosas, que vêm no homossexualismo um pecado e incutem no homossexual sentimentos de culpa. Azar de quem é suficientemente pobre de espírito para cair na armadilha dos religiosos.

Conheço e convivi com homossexuais durante toda minha caminhada. Eles estão a nosso lado, em praticamente todas as circunstâncias da vida, escola, universidade, trabalho ou lazer. Fiz meu ginásio no início dos anos 60, em Dom Pedrito, pequena cidade fronteiriça, que teria na época uns 13 mil habitantes. Em minha classe havia pelo menos três homossexuais, que me acompanharam durante quatro anos. Muito antes que a Associação Americana de Psiquiatria deixasse de classificar homossexualismo como doença, muito antes de a OMS ter retirado a homossexualidade da sua lista de doenças mentais, não víamos neles nada demais, a não ser uma opção sexual distinta. Claro que alguma piada rolava, mas jamais foram discriminados.

Dom Pedrito – já contei – foi o berço de Rui Bastide, líder político local, voz de estentor, bom de voto e temível nos debates, que jamais escondeu suas preferências por jovens efebos. Nem por isso deixava de contar com o apreço dos pedritenses. Isso há meio século atrás.

Alto, apolíneo no porte, dionisíaco na vida, Rui Bastide foi eleito e reeleito vereador várias vezes e chegou a ser prefeito da cidade. Nos anos 70, teve seus direitos políticos cassados, por um ato único do presidente Garrastazu Médici. Honrado com a deferência, comemorou o ato com foguetes. Comentário indiferente na cidade: "O Brasil vai perder muito com esta cassação". Na época, não se falava em gays, tampouco havia associações de gays e lésbicas. "Já procurei até médico" - confessou-me um dia Bastide -. "Mas que vou fazer? É a minha natureza." Em tempo: Brasil era um negrão que fazia jus aos favores do futuro alcaide.

A trajetória do Rui, a meu ver, está à espera de um bom cineasta. Em passadas andanças pela Europa, em vários países relatei este caso pedritense. E vi alemães, franceses, espanhóis perplexos, admitindo que em suas comunidades, por mais abertas que fossem aos novos tempos, não haveria lugar para um prefeito gay. Fala-se muito hoje em abrir o jogo, sair do armário, assumir-se. Tais expressões eram desconhecidas em Dom Pedrito. Se alguém era homossexual, ninguém tinha nada a ver com isso e estamos conversados.

Para quem se criou em meio a este ambiente de tolerância, causa espécie que hoje, 50 anos depois, esteja se debatendo na capital do país se a prática é ou não doença. Segundo o presidente do Conselho Federal de Psicologia, Humberto Verona, o profissional que insistir em tratar homossexualidade sofrerá processo ético. Em entrevista à Folha de São Paulo, diz o psicólogo: “A homossexualidade não é doença, não é um distúrbio. É proibido ao psicólogo oferecer tratamento e cura. O psicólogo que entender que é uma doença pode sofrer um processo”.

Em meio a isto, entra na dança a psicóloga evangélica Marisa Lobo, que explica porque é contra a resolução. Interrogada se é possível tratar a homossexualidade, responde: “É possível atender o sofrimento psíquico, eu não falo em tratamento. É possível uma pessoa buscar ajuda psicológica para mudar sua opção ou orientação. Não estou tendo preconceito. Homossexual que se aceita tem mais é que ser feliz do jeito que ele escolheu, e que lhe sejam garantidos todos os direitos. Mas e esses que procuram ajuda, que não se aceitam?”

Marisa Lobo, que se apresenta como “psicóloga cristã”, está sendo ameaçada de ter seu registro profissional cassado caso não negue sua fé. O Conselho Federal de Psicologia acatou denúncia contra a psicóloga por divulgar isto nas redes sociais, assim como nas palestras em que participa. Para evitar a cassação, deveria retirar de seus perfis nas mídias sociais toda e qualquer menção à sua fé, ou parar de exercer a profissão.

Há exageros de parte a parte. Por um lado, nenhum religioso pode impor a uma sociedade laica sua visão de mundo. Se quiser impô-la a seu rebanho, sinta-se à vontade. Por outro lado, se existem até médicos católicos e juízes espíritas, por que uma psicóloga não pode se dizer cristã? De minha parte, acho que quem crê na Santíssima Trindade, na ressurreição do Cristo e na virgindade de Maria, não pode sequer participar de uma banca de doutorado. Mas eu sou teu e isso é apenas meu modo de ver a coisa. Conheço doutores crentes que continuam julgando teses, que se pretendem científicas, e nem por isso o mundo vem abaixo.

Que mais não seja, se alguém descobriu algo de perverso nas cerejas e quer ajuda para evitá-las, não vejo porque negá-la. O azar é dele.

sexta-feira, junho 29, 2012
 
CATÓLICOS SEQUER SABEM
O QUE SEJA CATOLICISMO



Segundo o Censo de 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgado hoje, a Igreja Católica teve uma redução da ordem de 1,7 milhão de fiéis, um encolhimento de 12,2%. Se em 1970 havia 91,8% de brasileiros católicos, em 2010 essa fatia passou para 64,6%. Quem mais cresce são os evangélicos, que, nesses quarenta anos saltaram de 5,2% da população para 22,2%. O aumento desse segmento foi puxado pelos pentecostais, que se disseminaram pelo país na esteira das migrações internas. A população que se deslocou era, sobretudo, de pobres que se instalaram nas periferias das regiões metropolitanas. Nesses locais, os evangélicos construíram igrejas no vácuo da estrutura católica.

Nada de espantar. O que é um católico? Nem os católicos sabem o que é ser católico. Em 2007, comentei pesquisa publicada pelo do Le Monde des Religions, suplemento do jornal francês Le Monde, segundo a qual só um católico entre dois – na França, bem entendido - cria em Deus. Que significa ser católico? Ir à missa? Ser batizado? Levar os filhos ao catecismo? A estas definições institucionais, os pesquisadores preferiram uma definição sociológica: é católico todo aquele que se declara como tal.

Se na culta França nem os católicos crêem mais em Deus, que pode sobrar para este inculto Brasil, onde as crenças cristãs se misturam ao espiritismo, umbanda e até mesmo Santo Daime? Como esperar uma fé sólida de quem desconhece a própria doutrina que professa? Não espanta pois que os evangélicos, oferecendo uma fé mais à la carte, estejam sequestrando o rebanho da Santa Madre. Quem desconhece o que crê, crê em qualquer coisa.

Ateu, ao longo destas crônicas, tenho lembrado aos católicos algumas verdades que eles desconhecem. Por exemplo, há quem creia que Cristo nasceu em Belém. Ainda hoje, o El País noticiava que a Unesco declarou a igreja da Natividade patrimônio da Humanidade. Até aí nada demais. O problema é o que vem adiante: “A basílica da Natividade, construída no século IV, marca o lugar no qual nasceu Jesus, segundo a tradição cristã”. A basílica fica em Belém.

Permito-me repetir o que venho afirmando há décadas. Cristo nasceu em Nazaré. Não por acaso era chamado de Nazareno. A Igreja pretendeu situar seu nascimento em Belém por ser cidade mais prestigiosa.

Escreve Renan, em A Vida de Jesus: "Cristo nasceu em Nazaré, pequena cidade da Galiléia, desconhecida até então. Toda sua vida foi designado pelo nome de Nazareno e só por um esforço que não se compreende é que se poderia, segundo a lenda, dá-lo como nascido em Belém. Veremos adiante o motivo dessa suposição, e como ela era conseqüência necessária do papel messiânico que se deu a Jesus".

Segundo Renan, Nazaré não é citada nem no Antigo Testamento, nem por Josefo, nem no Talmude. Enquanto Nazaré da Galiléia era um vilarejo anônimo, Belém da Judéia portava o prestígio de antigas profecias. Nazaré era aldeia era desprovida de qualquer prestígio. Tanto que, em João 1:46, Natanael pergunta: "Pode haver coisa bem vinda de Nazaré?" Que nascesse em Belém, portanto.

Lucas também adere à lenda do nascimento em Belém:

Naqueles dias saiu um decreto da parte de César Augusto, para que todo o mundo fosse recenseado. Este primeiro recenseamento foi feito quando Cirino era governador da Síria. E todos iam alistar-se, cada um à sua própria cidade. Subiu também José, da Galiléia, da cidade de Nazaré, à cidade de Davi, chamada Belém, porque era da casa e família de Davi, a fim de alistar-se com Maria, sua esposa, que estava grávida. Enquanto estavam ali, chegou o tempo em que ela havia de dar à luz, e teve a seu filho primogênito; envolveu-o em faixas e o deitou em uma manjedoura, porque não havia lugar para eles na estalagem.

Os evangelistas, ao situarem o nascimento de Cristo no reinado de Herodes e evocarem o recenseamento de Cirino, desmontam a própria tese. Diz Renan:

"O recenseamento feito por Cirino, do qual se fez depender a lenda que ajunta a jornada a Belém, é posterior, pelo menos dez anos, ao ano em que, segundo Lucas e Mateus, nascera Jesus. Com efeito, os dois Evangelhos põem o nascimento de Jesus no reinado de Herodes (Mateus,II, 1,19,22; Lucas, I, 5). Ora, o recenseamento de Cirino foi feito só depois da deposição de Arquelau, isto é, dez anos depois da morte de Herodes, no ano 37 da era de Ácio. A inscrição pela qual se pretendia outrora estabelecer que Cirino fizera dois recenseamentos é reconhecida como falsa. O recenseamento em todo caso não teria sido aplicado senão às partes reduzidas à província romana, e não às tetrarquias. Os textos pelos quais se pretende provar que algumas das operações de estatística e registro público, ordenadas por Augusto, chegaram até o reinado de Herodes, ou não têm o alcance que se lhes quer dar, ou são de autores cristãos que colheram esse dado no Evangelho de Lucas".

Ou seja, quando a própria igreja nega o texto bíblico, que se pode esperar dos católicos? Ainda hoje há cristãos desavisados que julgam que Cristo era cristão. (Sem falar nos que têm certeza de que Cristo era católico). Ora, Cristo nunca foi cristão. Era judeu. Em sua época, não existia nada que se pudesse chamar cristianismo. A palavra cristianismo nem existe na Bíblia. Encontramos, isto sim, a palavra "cristãos". Mas apenas nos Atos, II, 25, bem depois da morte de Cristo:

Partiu, pois, Barnabé para Tarso, em busca de Saulo; e tendo-o achado, o levou para Antioquia. E durante um ano inteiro reuniram-se naquela igreja e instruíram muita gente; e em Antioquia os discípulos pela primeira vez foram chamados cristãos.

Há quem julgue existir um só deus na Bíblia. Nada disso, o Antigo Testamento é politeísta. Os deuses eram muitos na época do Pentateuco. Jeová é apenas um entre eles, o deus de uma tribo, a de Israel. Em La Loi de Moïse, escreve Soler: “Ora, nem Moisés nem seu povo durante cerca de um milênio depois dele – os autores da Torá incluídos – não acreditavam em Deus, o Único. Nem no Diabo”.

A idéia de um deus único só vai surgir mais adiante, no dito Segundo Isaías. Reiteradas vezes escreve o profeta:

44:6 Assim diz o Senhor, Rei de Israel, seu Redentor, o Senhor dos exércitos: Eu sou o primeiro, e eu sou o último, e fora de mim não há Deus.

Num acesso de egocentrismo, Jeová se proclama o único:

7 Quem há como eu? Que o proclame e o exponha perante mim! Quem tem anunciado desde os tempos antigos as coisas vindouras? Que nos anuncie as que ainda hão de vir. 8 Não vos assombreis, nem temais; porventura não vo-lo declarei há muito tempo, e não vo-lo anunciei? Vós sois as minhas testemunhas! Acaso há outro Deus além de mim? Ou ainda:

45:5 Eu sou o Senhor, e não há outro; fora de mim não há Deus; eu te cinjo, ainda que tu não me conheças. (...) 21 Porventura não sou eu, o Senhor? Pois não há outro Deus senão eu; Deus justo e Salvador não há além de mim.

Só aí, e tardiamente, surge na Bíblia a idéia de um só Deus. Jean Soler nota uma safadeza nas traduções contemporâneas da Bíblia: Jeová está sumindo. Fala-se em Deus ou Senhor, em Eterno ou Altíssimo. Como Jeová é apenas o deus de Israel, melhor esquecer o deus tribal. Ao que tudo indica, alguns tradutores fazem um esforço para transformar um livro politeísta em monoteísta. Substituiu-se a monolatria - culto de um só deus nacional - pelo monoteísmo, culto de um deus único.

Só um testezinho final para meus eventuais leitores católicos. Depois da morte do Cristo, Paulo se jacta: “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?”. O fanático judeu sabe que sua pregação tem suas bases no absurdo: “Mas se não há ressurreição de mortos, também Cristo não foi ressuscitado. E, se Cristo não foi ressuscitado, é vã a vossa fé”.

Acontece que não foi um só o ressuscitado naquela sexta-feira no monte Calvário. Leiamos Mateus, 27:50 e seguintes:

De novo bradou Jesus com grande voz, e entregou o espírito. E eis que o véu do santuário se rasgou em dois, de alto a baixo; a terra tremeu, as pedras se fenderam, os sepulcros se abriram, e muitos corpos de santos que tinham dormido foram ressuscitados; e, saindo dos sepulcros, depois da ressurreição dele, entraram na cidade santa, e apareceram a muitos.

Perguntinha aos católicos que julgam conhecer sua própria doutrina: quem eram estes santos homens e a que título foram ressuscitados? Por que os evangelhos posteriores não os citam e a Igreja sequer fala deles? Terão os demais evangelistas achado o puchero por demais gordo?

Sou todo ouvidos.

quinta-feira, junho 28, 2012
 
SOBRE A VENTURA DE SER
PRESIDIÁRIO NA NORUEGA



Rafael Piaia me envia um link da revista eletrônica Consultor Jurídico, no qual João Osório de Melo, correspondente nos Estados Unidos, nos mostra as idílicas prisões da Noruega, país que consegue reabilitar 80% de seus criminosos. Transcrevo a descrição da Halden Fengsel:

Qualquer projeto de construção de edifícios, na Noruega, reserva pelo menos 1% do orçamento para a arte. A construção da prisão de Halden foi concluída com obras do artista grafiteiro Dolk em um muro do pátio e toilettes, que incluiu mais de R$ 2 milhões no orçamento. As paredes dos corredores do prédio são cobertas por quadros enormes, de flores a ruas de Paris, e azulejos de Marrocos. A prisão foi construída em uma área de floresta, em blocos que "servem de modelo ao chique minimalista", descreve a BBC. A prisão já ganhou prêmios de "melhor design interior", com uma decoração que tem mesas de laminado branco, sofás de couro tangerina e cadeiras elegantes espalhadas pelo prédio.

A prisão tem ainda estúdio de gravação de músicas, ampla biblioteca, chalés para os detentos receberem visitas da família, ginásio de esporte, com parede para escalar, campo de futebol e oficinas de trabalho para os presos. Tem trabalho (com uma pequena remuneração), cursos de formação profissional, cursos educacionais (como aulas de inglês para presos estrangeiros, porque os noruegueses em Halden já são todos fluentes). No entanto, a musculação não é um esporte permitido porque, segundo os noruegueses, desperta a agressividade nas pessoas. Promover muitas atividades esportivas, educacionais e de trabalho aos detentos é uma estratégia. "Presos que ficam trancados, sem fazer nada, o dia inteiro, se tornam muito agressivos", explica o governador da prisão de Halden, Are Hoidal. "Não me lembro da última vez que ocorreu uma briga por aqui", afirma.

Dizer que um criminoso já está atrás das grades pode ser uma afirmação falsa. As celas da prisão de Halden não têm grades. Têm amplas janelas, com vistas para a floresta, e bastante luminosidade. As celas individuais são relativamente maiores do que a de muitos hotéis europeus, têm uma boa cama, banheiro com vaso sanitário decente, chuveiro, toalhas brancas grandes e macias e porta. Tem, ainda, televisão de tela plana, mesa, cadeira e armário de pinho, quadro para afixar papéis e fotos, além de geladeiras. Os jornais dizem que, de uma maneira geral, são acomodações bem melhores do que quartos para estudantes universitários nos EUA. E é normal que prisioneiros portem suas próprias chaves.

Cada bloco tem sua cozinha. A comida é fornecida pela prisão, mas é preparada pelos próprios detentos. Eles podem comprar ingredientes na loja da prisão para refeições especiais. Podem comprar, por exemplo, de pasta de wasabi para fazer sushi a carne de primeira (por R$ 119 o quilo), com contribuições de todos que se sentam à mesa — normalmente, grupos de dez. Os livros mais emprestados na biblioteca de Halden são os de culinária. Os presos também podem ir à loja para reabastecer suas geladeiras nas celas com iogurtes e queijos, por exemplo. No restaurante, membros do staff da prisão (incluindo os graduados), sempre desarmados, sentam-se à mesa com os presidiários.

Melhor nem divulgar, Piaia. Prisão, na Noruega, oferece mais educação que milhares de escolas no Brasil. Sem falar no conforto. Imagine um pobre diabo imigrado da Somália, da Argélia ou do Marrocos. Pode viver a vida inteira em seu país e jamais terá tais luxos. Para um faminto oriundo da África, Halden é mega sena acumulada. Em uma outra prisão, na ilha de Bastoey, a vida não é menos mansa:

Os detentos vivem, em pequenos grupos, em espécies de chalés espalhados pela ilha, com quartos individuais, cozinha completa, televisão de tela plana e todos os confortos de uma casa pequena. O lugar tem uma grande biblioteca, escola, sala de música, sala de cinema, sala de ginástica, capela, loja, enfermaria, dentista, oficinas para conserto de bicicletas (o meio de transporte dos presos pela ilha) e de outros equipamentos, carpintaria, serviços hidráulicos, estábulo (onde os prisioneiros cuidam dos animais), campo de futebol, quadra de tênis e sauna. Trabalham no estábulo, na oficina, na floresta e nas instalações do prédio principal, praticam esportes, fazem cursos, pescam, nadam na praia exclusiva da "prisão" e tomam banho de sol no verão — para o inverno, há uma máquina de bronzear.

Melhor que isso, só férias nas ilhas gregas. Com a diferença de que em Bastoy os involuntários turistas não pagam nada. O correspondente não informa, mas certamente haverá no país muito imigrante cometendo pequenos crimes - ou nem tão pequenos – para aceder ao status de prisioneiro norueguês. Em meus dias de Suécia, soube de casos inclusive de suecos que, no inverno, praticavam esses tais de crimes sem vítimas, para gozar da calefação, alimentação e conforto das prisões do país.

Obviamente, o tipo de criminalidade na Noruega é outro que não o nosso. A rigor, ninguém precisa matar ou roubar por falta de comida ou condições materiais. Anders Breivik, o maluco que matou 77 pessoas, é uma anomalia não só na Noruega como em toda Europa. Segundo o correspondente do Consultor Jurídico, foi a ação criminal contra Breivik que despertou a atenção dos americanos e do mundo para as "prisões de luxo" da Noruega. No princípio, os americanos ficaram horrorizados com a ideia de que o "monstro da Noruega" fosse parar em um estabelecimento correcional, cujas celas são bem melhores do que qualquer dormitório universitário dos Estados Unidos. Uma apresentadora de uma emissora de TV repetiu a zombaria que mais se ouvia no país: "Eu quero ir para a Noruega cometer um crime".

Mas, para consolo dos americanos, como Halden ou a ilha de Bastoey não têm alas de segurança máxima, Breivik deve permanecer na prisão de Ila, em Oslo, que já foi, no passado, um campo de concentração nazista, movimento com o qual ele se identifica. Onde certamente tampouco passará mal.

Como as notícias correm rápido na aldeia global, certamente nossos incondicionais defensores dos direitos humanos já devem estar pensando em prisões semelhantes para os coitadinhos dos assassinos e estupradores nacionais.

quarta-feira, junho 27, 2012
 
REGIME DOS AIATOLÁS EMPURRA
HOMOSSEXUAIS À PROSTITUIÇÃO



Se há algo que até hoje não entendi, é essa obsessiva preocupação que têm certas culturas em determinar como as pessoas devem se comportar na cama. Se não há violência nem desrespeito ao parceiro, que cada um se divirta como melhor lhe apraz e boa sorte a todos.

A humanidade, de modo geral, não pensa assim. Desde o Antigo Testamento, a sexualidade tem sido preocupação dos legisladores, laicos ou religiosos. Salvo alguns interregnos históricos como as antigas Grécia e Roma, o livre exercício do sexo sempre tem trazido dores de cabeça aos cultores do prazer sem culpa.

Em maio passado, a Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais (ILGA) divulgou em Genebra um relatório sobre a situação da homossexualidade que revela que dez países permitem o casamento entre pessoas do mesmo sexo e 12 admitem a adoção de filhos por parte de casais. O homossexualismo é ilegal em 78 países e punido com pena de morte em cinco. Irã, Arábia Saudita, Iêmen, Mauritânia e Sudão penalizam a homossexualidade com pena de morte, o que ocorre também em algumas regiões do norte da Nigéria e do sul da Somália.

O que não deixa de ser significativo. Se a prática é duramente penalizada em 78 países – em geral situados na Ásia, África e Oriente Médio - a tentação deve ser dominante em tais geografias. No Ocidente, salvo infames exceções, você deita com quem bem entender e o Estado nada tem a ver com isso. A Europa é a região onde os direitos dos homossexuais são mais atendidos – diz o relatório – enquanto que na América Latina o maior problema é a violência, pois a maioria de países não conta com legislação que proíba a homofobia. A palavrinha teria sido cunhada pelo psicoterapeuta George Weinberg, em 1965.

"Eu inventei a palavra homofobia para expressar que havia um medo de homossexuais. Havia um medo de homossexuais, que parecia estar associada ao medo de contaminação, o medo das coisas para as quais eles lutaram - lar e da família - a desvalorizar. Era um medo religioso e levou a grande brutalidade como o medo sempre faz".

O que só comprova que psicoterapeutas excelem em dizer bobagens. Para começar, não entendo como medo possa ser o móvel da repulsa a homossexuais. Quem tem medo destes senhores? Por outro lado, como tenho afirmado, a construção do neologismo está rotundamente errada. Se o homo grego significa mesmo, e fobia significa medo, homofobia quer dizer o mesmo medo, e não medo a homossexualismo como hoje se pretende. A tal de homofobia, no fundo, é pretexto de ativistas homossexuais para garantirem mais direitos do que os heteros.

Nas Américas, salvo alguma ilhota da América Central, homossexualismo há muito deixou de ser crime. Neste ano da graça, a punição com morte só ocorre no Irã e quatro países árabes. No país dos aiatolás, com uma curiosa peculiaridade. Homossexualismo é proibido e punido com morte. Mas trocar de sexo é inclusive incentivado pelo Estado. A medida foi avalizada pelo revolucionário aiatolá Khomeini.

Não ouse, no Irã contemporâneo, travestir-se. Macho é macho e fêmea é fêmea. Homem não pode usar chador, nem mulher pode usar vestes masculinas. Mas os sábios aiatolás lhe permitem trocar de sexo. Feita a cirurgia, o homem passa a usar chador. (Nada de vestir-se despudoradamente à ocidental, é claro). Mas atenção: não volte a usar vestes masculinas. Trate de renovar o guarda-roupa. Usar suas antigas roupas agora é crime.

Reportagem transmitida ontem no GNT mostrava este aparente paradoxo do regime dos aiatolás. Em verdade, a mudança de sexo não é exatamente uma permissão. E sim uma imposição. Se você, homem, gosta de homem, trate logo de cortar o que o identifica como homem e transforme-se em mulher. Só então poderá ter relações com homens.

Ou vice-versa. Se você é mulher e gosta de mulher, trate de fechar essa fenda obscena e construa um pênis, ainda que discreto. Antes da cirurgia, não ouse desfilar pelas ruas sua futura condição. A menos que porte consigo um documento provando que a cirurgia foi permitida.

Numa sociedade islâmica, tal opção terá suas conseqüências. Quem muda de sexo é expulso da família e obviamente da vida social e do mundo do trabalho. A solução, pelo menos para as recém-mulheres, é a prostituição.

Acontece que, por definição, não há prostituição no Irã. Se o Ocidente ainda debate a questão do sexo pago, coube ao islâmico Irã desatar o nó, apelando também à castidade. Há mais de dez anos, o jornal conservador Afarinesh noticiava que duas agências do governo haviam encontrado a fórmula para resolver o problema. Seriam criadas as chamadas "casas de castidade", onde o cidadão poderia exercitar sua luxúria em ambiente seguro e saudável. De acordo com o artigo, o plano envolvia o uso de forças de segurança, líderes religiosos e do judiciário para administrar as casas.

De acordo com os números oficiais da época, cerca de 300 mil profissionais trabalhavam nas ruas da capital, que tinha então 12 milhões de habitantes. Para o aiatolá Muhammad Moussavi Bojnourdi, as casas de castidade se justificam "pela urgência da situação em nossa sociedade. Se quisermos ser realistas e limparmos a cidade dessas mulheres, precisamos usar o caminho que o islã nos oferece".

Este caminho é o sigheh, o matrimônio temporário permitido pelo ramo xiita do Islã, que pode durar alguns minutos ou 99 anos, especialmente recomendado para viúvas que precisam de suporte financeiro. Reza a tradição que o próprio Maomé o teria aconselhado para seus companheiros e soldados. O casamento é feito mediante a recitação de um versículo do Alcorão. O contrato oral não precisa ser registrado, e o versículo pode ser lido por qualquer um. As mulheres são pagas pelo contrato. Esta prática foi aprovada após a "revolução" liderada pelo aiatolá Khomeiny, que derrubou o regime ocidentalizante do xá Reza Palhevi, como forma de canalizar o desejo dos jovens sob a segregação sexual estrita da república islâmica. Num passe de mágica, a prostituição deixa de existir. O que há são relações normais entre duas pessoas casadas. Não há mais bordéis. Mas casas de castidade. A cidade está limpa.

A mudança de sexo, autorizada pelo Estado, pode parecer à primeira vista uma brecha para os homossexuais em uma teocracia islâmica. Na verdade é uma imposição tirânica dos aiatolás, que empurra todo homossexual à prostituição.

Isto é, ao sigheh. Pois no Irã não existe prostituição.

terça-feira, junho 26, 2012
 
GIGOLÔS DAS ANGÚSTIAS HUMANAS
AMPLIAM MERCADO DE TRABALHO



Leio na Zero Hora: “Encilhar o cavalo, preparar a sela e seguir um circuito pelo picadeiro no ritmo ditado pelo instrutor. Terminada a seqüência, conduzir o cavalo para a baia, ajudar a limpar e alimentar o animal. Luciano Batista Nascimento, 12 anos, cumpre esse ritual uma vez por semana. Não é treino nem brincadeira. É terapia”.

Mais precisamente, equoterapia, uma das últimas modas criadas pelos ditos terapeutas. Acabo de descobrir que fiz terapia desde criança e não sabia. Nasci quase em lombo de cavalo, desde pequeno os encilhei e não os conduzi à baia porque isso é coisa que não existia em meus pagos. Após a cavalgada, largávamos o animal no campo. Vai ver que é por isso que sou hoje um ser mentalmente tão saudável. Claro que há quem me tome por insano e julgue que necessito urgentemente de terapia. Que se vai fazer? Impossível agradar a todo mundo.

Que cavalgar é bom, quem vai negar? Pequeno, tive um petiço, bichueco por sinal, mas foi nele que aprendi a montar. Mais tarde, tive cavalo de gente grande, e sempre gostei de lidar com eles. Nunca imaginei que isto constituísse terapia. Para mim, era meio de transporte, trabalho e lazer. Transporte para ir à escola ou visitar meus tios, trabalho na hora de ligar com o gado, lazer quando simplesmente saía a cavalgar ou caçar. É óbvio que uma criança urbana se sentirá muito bem, longe da cidade, montando um cavalo. Daí a ser terapia, me parece embuste dos psis. A menos que se considere que fazer algo agradável é sempre terapêutico.

Segundo a reportagem, na quarta série do ensino fundamental, Luciano já repetiu o ano duas vezes e dava trabalho à mãe, Rejane Nascimento, e aos professores da Escola Jardim Vila Nova, Porto Alegre, por causa da falta de disciplina e das notas baixas. Em acompanhamento psicológico e neurológico para investigar as causas da dificuldade de aprendizado, chegou à equoterapia por sugestão da diretora da escola, Tânia Araújo, que percebeu que ele gostava muito de cavalos. Segundo ela, o desempenho na escola tem melhorado com a continuidade do tratamento. A mãe de Luciano também nota que as sessões semanais que ele frequenta desde março fizeram diferença.

Essa agora! Andar a cavalo ajuda no rendimento escolar. Mais um pouco e os terapeutas descobrem que nadar, andar de bicicleta ou praticar qualquer esporte prazeroso estimula uma criança a aprender.

Equoterapia está na moda. Para quem pode pagar, é claro. Há anos venho denunciando estas vigarices, que só servem para enganar a classe média urbana. Digo classe média urbana, pois jamais enganarão um camponês, cujo filho precisa de um cavalo para ir à escola. Cavalo, no caso, não é luxo, mas meio de transporte.

Há horas venho denunciando estes gigolôs das angústias humanas, que transformam em doença circunstâncias banais da existência, para delas tirarem seus rendimentos. Ano passado, eu comentava uma nova vigarice que surgiu no mercado, a terapia do luto. No UOL, li entrevista com Cissa Guimarães, atriz que optara pela terapia do luto após perder o filho.

"A terapia do luto foi fundamental para que eu conseguisse sobreviver à maior dor de um ser humano", diz a atriz. "Consegui isso com a ajuda terapêutica de Adriana Thomaz. Com ela, entendi melhor a morte, como fazer a conexão com o amor do meu filho e como reaprender a viver."

Pelo jeito, o homem contemporâneo, apesar de milênios de evolução, ainda não aprendeu a lidar como o mais corriqueiro dos fatos humanos. Se a moda pega, os terapeutas do luto vão brotar como cogumelos após a chuva. Se cada vez que morre uma pessoa querida, temos de pagar um analista para enfrentar sua morte, o leitor pode ter uma idéia do baita mercadão que se abre aos gigolôs das angústias humanas.

Os psis continuam ampliando seu mercado. Na Folha de São Paulo de ontem, li que o Conselho Federal de Psicologia (CFP) vai permitir mais sessões de terapia, num máximo de 20, por e-mail, MSN ou Skype. Até aí nada de mais, vivemos dias de Internet. O que me deixou perplexo foi ler que a orientação psicológica na web atende problemas pontuais do paciente, como dificuldades de adaptação em uma nova cidade, problemas escolares do filho ou questões afetivas.

Se entendi bem, a cada vez que se muda de cidade, devemos consultar um psicólogo. Nossa! Já vivi em nove cidades e nunca consultei nenhum. Devo ser um desajustado. Para começar, inicialmente não precisei adaptar-me a uma cidade. Mas à cidade, pois vinha do campo, de alpargatas e bombachas. Lá, não existia mais campo aberto, horizontes, vacas e cavalos. Mas ruas acanhadas, pátios exíguos, nem sombra de horizonte, nem de vacas e cavalos. Mas gente, muita gente. Apesar de a cidade ser pequena.

Fui depois para as cidades grandes. Em Porto Alegre, não sabia nem como descer de bonde andando. (Era ainda na época dos bondes). Precisei adaptar-me à nova e complexa geografia, a horários mais rígidos, aos transportes urbanos. Mais adiante, troquei de país. Novas necessidades. Precisei aprender como usar o metrô, como comunicar-me em línguas que não as minhas, como enfrentar hábitos e culinárias que desconhecia. Jamais me ocorreu pedir socorro a psicólogo algum. Sempre enfrentei tais mudanças como um desafio. Mudar bruscamente de cidade – e mais ainda de país – é sempre um teste para nossa capacidade de sobrevivência. Só o que faltava buscar um terapeuta para adaptar-me a Estocolmo, Paris ou Madri.

Vejo ainda que psicólogos se tornaram necessários para resolver problemas escolares e questões afetivas. Ora, problemas escolares existem desde que existem escolas. E questões afetivas sempre acompanharam quem nutriu por alguém algum afeto. Fazem parte do dia-a-dia de cada um. Pelo que se depreende da decisão do CPF, cada cidadão deve andar com um psicólogo a tiracolo.

O que nos leva a um mistério. Como faziam os homens d’antanho - daqueles tempos em que a psicologia não se instalara ainda como ciência – para resolver esses tremendos dramas humanos, como a morte de um próximo, uma mudança de cidade, o rendimento escolar ou as crises afetivas? Mistério, profundo mistério.

Não bastassem os gigolôs das angústias humanas transformarem em doença os problemas banais do dia-a-dia, os psicólogos já estão cozinhando no forno novas enfermidades da era internética. Segundo o psicólogo Larry Rose, que estuda problemas mentais ligados à tecnologia, o smartphone acentua males psiquiátricos. Para o autor de iDisorder, redes sociais também afetam comportamento e narcisismo, depressão e obsessão são os problemas mais comuns em estudos com usuários.

Hoje, com smartphones e redes sociais pedindo atenção permanente das pessoas, a lista de problemas cresceu para uma dezena de sintomas de males psiquiátricos, disse Rosen à Folha de São Paulo.

"Mais gente está se tornando mais narcisista, ou está se apresentando para o mundo como se só se importasse consigo própria. Mais gente está ficando obcecada e compelida a checar constantemente o telefone. E há uma pesquisa que mostra que mais pessoas estão ficando deprimidas quando não têm coisas maravilhosas para mostrar aos outros no Facebook."

Para Rosen, que divide a autoria de iDisorder com Nancy Cheever e Mark Carrier, os problemas descritos por eles são fonte de atrito nas relações interpessoais e pioram nossa qualidade de vida. Para organizar essa tese, o livro apresenta um capítulo para cada tipo de transtorno tecnopsicológico. Ao final de cada um, há um trecho de autoajuda, que mostra dicas de como evitar o problema. Os autores defendem que, cada vez mais, psicólogos não podem ignorar a tecnologia. Não há como cuidar de um adolescente sem entender qual personalidade ele exibe no Facebook, por exemplo. E isso também é verdade para muitos adultos.

Não vai demorar muito, os computadores, smartphones e tablets serão vendidos em pacotes com assistência técnica e psicológica acopladas. Preserve sua saúde mental. Nos dias que correm, só um anormal – como este que vos escreve – pode viver sem apoio psicológico.

segunda-feira, junho 25, 2012
 
TRATE SEU ASSALTANTE
COM MAIS URBANIDADE



Comentei há pouco o caso de dona Odete Prá, de 86 anos, que matou com três tiros, em Caxias do Sul (RS), um vagabundo que invadiu seu apartamento para roubá-la. Quando li a notícia, logo pensei com meus botões: a vovó vai se incomodar. Não deu outra. Foi indiciada por homicídio doloso, isto é, quando há intenção de matar.

Aconteceu de novo. E vai acontecer mais vezes. Leio no Estadão que o comerciante Jeferson Fiuza de Moraes, de 28 anos, se viu na semana passada em meio a uma polêmica envolvendo legítima defesa ou reação excessiva a um assalto. Dois criminosos - incluindo um adolescente - invadiram sua loja de informática na Cidade Dutra, zona sul, e anunciaram o assalto. Moraes, que faz curso de tiro, alega que os criminosos afirmavam a todo momento que matariam ele e uma funcionária. Como tinha uma arma no banheiro onde foi mantido refém, decidiu usá-la e matou a dupla. Acabou preso por homicídio doloso e passou um dia na cadeia. Segundo o delegado, houve excesso na reação. Um ladrão morreu com cinco tiros (um na cabeça), o outro com três.

Fiuza está indignado. Foi posto em uma cela com um estuprador, um pedófilo e um receptador. Para não morrer, o carcereiro montou uma história diferente, como se ele tivesse sido preso por pensão alimentícia. Pela segunda vez, temeu perder a vida.

- Aconteceram os fatos, chamei a polícia, socorri os bandidos. Cheguei ao DP e meu advogado foi falar com o delegado. Ele perguntou: "Doutor, meu cliente vai ser preso?" Ele disse: "Vai, para mim seu cliente é um criminoso, ele atirou com intenção de matar". Ele disse que não está ali para ouvir ninguém, mas para prender e quem me ouviria seria o juiz. Sou uma pessoa com bons antecedentes criminais, nunca tive problema nenhum com a Justiça, tenho a arma registrada, agi em legítima defesa, o cara deu três tiros contra mim, graças a Deus não me acertou, eu atirei contra ele, infelizmente, ele veio a morrer e eu é que sou a ameaça à sociedade?

Ora, quem deveria estar na cadeia era o delegado, que pela segunda vez colocou em risco a vida da vítima. Quem pode afirmar que Fiuza atirou com intenção de matar? Quando se atira em alguém, nessas circunstâncias, a pessoa não se sabe nem mesmo se vai acertar. Deu cinco tiros? Deveria ter dado dez. O ladrão atirou três vezes em Fiuza. Quem invade a casa de alguém com um revólver na mão não invadiu para conversar. Invadiu para matar. Deve ser sumariamente fuzilado. É curioso observar como nos ditos crimes passionais, o assassino tem sua culpa atenuada pela emoção do momento. No caso de uma vítima que recebe três tiros, exige-se que ela haja com moderação.

- O cara está dando tiros em mim, vou ficar contando quantos tiros eu dei nele? O bandido não contou quantos tiros deu em mim. Acho estranho o delegado falar em excesso de tiros. Será que se o bandido tivesse dado seis tiros em mim seria condenado por excesso? Eu era a vítima e virei o vilão.

E mais vítimas virarão vilões, neste caldo cultural em que bandido é um pobre coitadinho injustiçado pela sociedade e quem dele se defende é criminoso. Verdade que reagir é sempre arriscado e você tem boas chances de levar a pior se não souber lidar com um revólver. Não era o caso de Fiuza, que fazia curso de tiro. Pessoalmente, eu jamais reagiria da mesma forma. Para começar, sequer tenho arma. Mas vontade não me faltaria de fuzilar o vagabundo. Que certamente sairia impune com o roubado. Se fosse preso, pegaria alguns meses de cárcere. E se fosse “de menor”, nem isso.

O delegado que jogou Fiuza na cadeia está legitimando o direito de um marginal entrar em sua casa, ameaçá-lo com uma arma, atirar em você e mesmo matá-lo, e sair impune da empreitada. Por que encarcerar alguém que tem profissão e endereço fixos, não tem antecedentes penais e apenas tentou defender-se?

Caso semelhante ocorreu sábado passado. A notícia é também do Estadão. Um jogador de basquete aposentado, de 72 anos, reagiu a um assalto, entrou em luta corporal com o ladrão, tomou sua arma e o matou. O assaltante tentava roubar sua casa em Birigui, no interior de São Paulo. O aposentado ainda tentou alvejar outro ladrão, que estava no quintal, mas ele fugiu. Portador de doença cardíaca, o aposentado foi internado.

Z. - que não teve o nome divulgado a pedido da família – e sua mulher, professora aposentada de 69 anos, assistiam à TV na sala às 20h30, quando foram rendidos pelo ladrão armado com um revólver calibre 38 que havia pulado uma janela. O aposentado aproveitou uma distração do bandido para entrar em luta com ele, agarrar a arma e atirar no peito do ladrão.

O delegado titular de Birigui, Cristiano de Oliveira Mello, foi mais sensato. Abriu inquérito para apurar o caso. Segundo ele, o aposentado não deve ser punido por ter agido em legítima defesa. O que deve ter salvo o velhote foi sua condição de cardíaco. Fosse saudável, provavelmente estaria encarcerado.

Comentando o caso da vovó, afirmei que os assaltados precisam ser urgentemente reeducados. Que história é essa de reagir à bala contra um pobre excluído que busca por meios não muito ortodoxos, é verdade, sua justa parte na repartição do bolo social? Por que não oferecer um cafezinho ao coitado e perguntar-lhe se aceita moeda sonante ou prefere cheque?

Como cheque nem sempre tem fundos, o ladrão poderia talvez munir-se de uma leitora de cartões. O assalto poderia ser parcelado em dez vezes, por exemplo. E tudo terminaria com um aperto de mãos, muito obrigado, volte sempre.

Seria muito mais civilizado.

domingo, junho 24, 2012
 
ENTREVISTA ANTIGA (I)
(junho 2003)

por Diogo Chiuso e Sidney Vida

Não é fácil entrevistar alguém que sempre tem algo interessante a dizer, principalmente na hora da edição do texto. Essa é a parte complicada quando o entrevistado é alguém como o jornalista Janer Cristaldo, que deixou clara a impressão de que para cada assunto levantado caberia mais e mais perguntas.

Felizmente no jornalismo online não temos os problemas técnicos e de espaço em papel, como no jornalismo impresso. Portanto, no final das contas, toda a complicação teve uma simples solução: publicar a entrevista na íntegra, sem cortes, nem edição.

Mas não poderíamos privar os leitores de tentar conhecer como Janer Cristaldo é pessoalmente. Já lá com seus 56 anos, mais parece um garotão entusiasmado com a beleza das mulheres e das lindas cidades européias. Até hoje não possui automóvel, pois preferiu gastar seu dinheiro em momentos bem vividos em viagens à Europa, estampadas em lindas fotos de bares e cafés nas paredes. "Adoro bares, aliás, é meu lugar preferido para a leitura", confessa, apontado, numa das fotos o seu preferido, um café em Viena.

Além da agradável recepção em seu apartamento no charmoso bairro paulistano, Higienópolis, Janer fez questão de nos guiar pela imensa biblioteca que viaja pelo mundo das idéias, da literatura e até dos "inimigos", como refere-se com zombaria aos comunistas. Relembra fatos de sua infância em Dom Pedrito - pequena cidade do Rio Grande do Sul - e fala de suas experiências nos jornais paulistas Folha de São Paulo e Estadão. Considera a imprensa brasileira, apesar de tudo, muito boa por abranger o mundo todo na editoria internacional, diferente da americana e européia que centralizam as notícias em informações "caseiras". Em compensação, critica o jornalista que não gosta de ler e tampouco tem sua própria biblioteca, pois esse profissional, segundo ele, tem a obrigação de conhecer melhor o mundo em que vive.

Hoje, Janer escreve em diversos jornais na internet que dá a ele a liberdade que jamais teria nos de papel, além de não precisar bajular o grande público. Janer é polêmico, mas não por querer ser conhecido, obter fama ou coisa parecida - que aliás diz ter ojeriza a essas coisas - mas, sim, por não ser preso a nenhuma ideologia ou convicção religiosa: "...abandonei Deus lá pelos meus dezesseis, dezessete anos, e senti uma baita sensação de liberdade", afirma com a convicção de quem viveu muito bem a maior parte da vida sendo ateu.

Janer Cristaldo é a essência do homem anti-politicamente correto, no sentido de, com responsabilidade, falar o que pensa sobre qual for o assunto, sem se importar com as reações adversas e o ranger dos dentes daqueles que crêem nos objetos de suas críticas.

Portanto, o que o leitor verá a seguir são análises sérias e contundentes de um homem que tem o que dizer, em contrapartida dos papagaios que encontramos aos montes arrotando a sabedoria alheia, por não ter a capacidade de pensar por si mesmo.

Atualmente a religião Católica, que é a mais praticada no Brasil, parece estar meio sem rumo. Antigamente tínhamos o conhecimento muito vinculado aos colégios católicos, além dos grande filósofos da Igreja como São Tomás, Santo Agostinho etc. O que aconteceu para que a Igreja Católica perdesse esse status de produtora de grandes pensadores?

A meu ver, hoje não há grandes pensadores, nem dentro nem fora da Igreja. É como se os antigos tivessem esgotado todas as formas de enquadrar o ser humano e a realidade, e não restasse aos contemporâneos senão papagueá-los. No campo da filosofia ocorre a mesma coisa. Não se vê mais surgir Sócrates, Kants ou Descartes. O que surgem são repetidores confusos.

Que mais pode acrescentar a Igreja ao que disseram os antigos doutores? Além do mais, a Igreja tem uma espécie de AI-5, o dogma, que inibe todo pensamento. Católico algum pode negar o dogma. Até mesmo um marxistóide como Leonardo Boff tem de engolir a virgindade de Maria, tanto que ele escreveu um livrinho, A Ave Maria - o Feminino e o Espírito Santo, endossando esse fenômeno típico de certos pulgões da lavoura, a partenogênese. O pensador católico tem também de engolir que o pão consagrado não é mais pão, mas carne, e o vinho consagrado não é mais vinho, mas sangue. Mas atenção: pão e vinho não são símbolos da carne e do sangue, mas a própria carne e sangue. Ou seja, todo católico é no fundo um canibal ou hematófago. Impossível pensar a partir de dogmas.

Só poderia surgir algum pensamento na Igreja no momento em que esta abandonasse o dogma. E não só o dogma, mas também boa parte dos livros do Antigo Testamento, e mais alguns do Novo, particularmente aqueles que defendem genocídio, massacres, escravidão. Que esses livros permaneçam como documentos históricos, muito bem. Mas deveriam ser eliminados do corpo doutrinário de uma religião contemporânea, particularmente de uma religião que se pretende defensora dos direitos humanos.

Embora o sr. seja ateu, deve concordar a base moral dos últimos dois milênios da humanidade foi erguida sobre os ensinamentos judaico-cristãos. Como o sr. vê os ataques mútuos entre ideologias e religiões, principalmente no século XX?

Em primeiro lugar, vamos acabar com essa história de sr. Até parece que tu és mais jovem que eu (risos). Continuando: vocês falam na base moral da humanidade. Da humanidade, não. Mas do Ocidente, pois no Oriente a realidade é outra. Mesmo assim, a esses elementos judaico-cristãos se deve acrescentar o legado greco-romano. Juntem-se esses ingredientes todos e temos o que se convencionou chamar de Ocidente. Quanto aos ataques mútuos, estes decorrem do problema que já apontei, o dogma. Aliás, antes de serem mútuos, são internos. A negação dos dogmas provocou cismas, perseguições, massacres, fogueiras.

Depois, surge o problema do monoteísmo, a origem da maior parte das guerras. Com tanta pedra no deserto, Maomé inventou de subir aos céus a partir de uma rocha sagrada para os judeus. Esta história é curiosa. No espaço de uma noite, Maomé voou de Meca a Jerusalém, montado em uma mula alada chamada Burak, com cabeça de mulher e rabo de pavão. Lá, da rocha onde Abrahão iria sacrificar Isaac, subiu ao céu para receber a revelação. Toda pretensão árabe a Jerusalém, todo o atual derramamento de sangue no Oriente Médio, tem no fundo esta lenda estúpida. Árabes e judeus até hoje estão se matando em função da luta pelas mentes de dois deuses ciumentos, Alá e Jeová. Católicos e protestantes estão se entredevorando na Irlanda, shiitas e sunitas se massacram no mundo islâmico, cristãos e muçulmanos se mataram com gosto nas recentes guerras iugoslavas. Melhor o antigo mundo grego. Os deuses eram tantos que soaria ridículo um deles se declarar como único.

Qual o seu conceito de Deus?

Não tenho conceito algum de deus. Se tivesse, seria um crente. Tenho, isto sim, um conceito da idéia de deus. Esta idéia responde, de forma primitiva, é verdade, aos mais profundos anseios humanos. Primeiro, serviu como tentativa de explicar o inexplicável. A medida em que o homem desenvolvia seu conhecimento, esta idéia foi sendo relegada a um segundo plano. Quando a física, a química, a biologia começaram a tornar o universo compreensível, deus foi se reduzindo à sua insignificância. Isto permite que, no final do XIX, Nietzsche proclame: Deus morreu. Verdade que o alemão se enganava. As multidões contemporâneas, cada vez mais famintas de misticismo, reduziram o brado de Nietzsche a um ingênuo wishfull thinking.

Hoje, Deus é uma espécie de esperança para as grandes massas incultas. Aliás, desconfio que as pessoas que dizem crer em Deus, pouco estão se importando com o tal de Deus. O que importa realmente é a transcendência da própria alminha. Encontramos isto mesmo no universo pagão. Que eram os deuses lares, manes e penates romanos, senão reencarnações dos próprios antepassados? O homem que cultuava seus lares estava em verdade cultuando seus mortos. A família era mais sólida naquele mundo pagão. A progênie era uma benção e a infertilidade uma maldição. Quem não procriasse, uma vez morto não teria quem lhe oferecesse os manjares que agradam aos lares.

O ser humano é um bicho que se viciou com a vida, aspira ardentemente à eternidade. O que, se pensarmos bem, é um grande engodo. Se uma vida já cansa, imagina ser eterno. Deus ainda tem algum prestígio porque promete vida post-mortem, paraíso ou inferno conforme os méritos do cliente. Se um deus dissesse: “olha, te comporta como quiseres, não tenho nada a ver com isso, afinal depois da morte não existe nada mesmo”, é claro que esse deus não teria Ibope. Eu ousaria avançar que, no fundo, ninguém crê em Deus. Prova disto é o pavor dos crentes na hora da morte. Ora, a morte propicia o encontro com Deus. Deveria ser ardentemente desejada. Mas não é isto que ocorre. Na hora do jesus-está-chamando, até mesmo o papa busca medicina de ponta. Em A Peste, pela voz do padre Panélou, Camus fala de antigos cristãos que se envolviam em lençóis usados pelos pestíferos, para morrer depressa e mais depressa se encontrarem com Deus. Este tipo de cristão não existe mais.

Alguns pensadores - e até o senso comum - costuma associar a crença em Deus a manutenção de comportamentos éticos (os dez mandamentos, por exemplo). O escritor Dostoievski chegou a afirmar que, se Deus não existe, tudo é permitido. Há, no entanto, diversas interpretações para tal frase da mesma forma que parte da filosofia ergueu uma ética sem Deus. Uma pessoa, enfim, pode ter uma vida de virtudes sem Deus, sem esperar as recompensas transcendentais que as religiões oferecem? Qual a sua posição diante de tal dilema?

Vamos aos fatos. Em primeiro lugar, Dostoievski nunca afirmou isso. Se alguém afirmou, teria sido Ivan Karamazov, um de seus personagens. Não se pode confundir personagem com autor. Em segundo lugar, Ivan tampouco afirmou isso. Quem o afirmou foi Sartre, ao escrever que o existencialismo francês estava fundamentado no argumento de Ivan Karamazov, de que se Deus não existe, tudo é permitido. Os fatos são um pouco diferentes. Em verdade, Ivan conclui que se Deus não existe, não existe imortalidade. E “se não existe imortalidade, não existe virtude”. O que, aliás, confirma minha tese: o que preocupa realmente as pessoas é a transcendência.

Para efeitos de raciocínio, admitamos a proposição “se Deus não existe, tudo é permitido”. É uma proposição safada. Dita por um libertino, significaria que tudo é permitido mesmo, já que Deus não existe. Elimina-se qualquer ética, como se ética dependesse da existência de Deus e não de um acordo entre homens. Dita por um crente, é um alerta: cuidado, se Deus não existe, tudo é permitido. Para que tudo não seja permitido, é preciso que Deus exista. Mas de que deus fala quem assim fala? É bom que lembrar que, no universo do monoteísmo, os deuses são vários. Mesmo na Bíblia não existe um só. A que deus se referem esses pensadores e o tal de senso comum? Ao que não só permite, mas também ordena guerras, massacres, pestes e catástrofes? Ou àquele outro que fala em amor e perdão? É bom ainda lembrar que este deus amoroso do Novo Testamento, segundo o Apocalipse, deve voltar a ferro e fogo para fazer tábula rasa do planetinha. Pela primeira vez, nos textos sagrados, Cristo monta um cavalo, arma de guerra.

Quanto aos Dez Mandamentos: estamos naquele período histórico em que religião não se distingue de legislação, onde ainda não há Estado mas apenas um poder religioso. Ora, isto faz mais de três mil anos. De lá para cá, o homem ocidental foi suficientemente sensato para separar as duas coisas. Uma das grandes confusões de nossos dias é a falta de distinção entre preceito religioso, preceito ético e lei. Lei deve ser cumprida, sob pena de sanção. Preceito ético pode ser cumprido ou não, depende do conceito de ética de cada um. Pode até ocorrer alguma sanção da comunidade, em caso de transgressão, mas esta sanção não tem o aval do Estado, nem pode ser exercida através de força policial. Quanto ao preceito religioso, este deve ser cumprido apenas pela comunidade que crê naquela religião. Ou pelo menos assim deveria ser. Que os cristãos considerem pecado o aborto ou o homossexualismo, isto é um problema que diz respeito apenas à comunidade cristã. Tal condenação não pode ser imposta a um Estado laico, como pretendem os papistas.

Pessoalmente, não preciso de Deus nem de recompensas transcendentais para ser honesto. E penso que não somos poucos os que assim pensamos.

Mas no Brasil a questão religiosa é complicada. A maioria é católica, porém, nada impede que freqüentem terrenos de candomblé ou até sigam as doutrinas espíritas de Kardec, que aliás, o Brasil é um dos únicos países que ainda levam à sério a "ciência-religião" deste francês. Na sua opinião por que há esse desespero em querer salvar a alma? Neste sentindo o ateu é mais tranqüilo, já que sabe que seu fim não é a eternidade proposta pelas religiões?

O candomblé se deve à porção africana do Brasil. Há toda uma população que não se reconhece no deus e santos brancos europeus. Apela então às tradições animistas africanas. É uma religião de negros e pobres, mas que gera muito dinheiro e poder, particularmente na Bahia. Até um comunista empedernido como Jorge Amado achou melhor fazer o jogo dos orixás. Quanto ao espiritismo, foi uma fórmula encontrada por um setor das elites brasileiras para escapar ao catolicismo sem cair no animismo. O kardecismo tem suas origens no mesmerismo, doutrina proposta pelo austríaco Franz Anton Mesmer, para quem a alma humana ultrapassava os limites do corpo e atuava fora dele. Que o corpo humano emitia radiações, compostas de elementos materiais, que seriam os veículos transmissores da ação da alma e que continham forças vitais. Kardec - em verdade Denizard Rivail - aproveitou esses elementos, mesclou-os com uma teoria da reencarnação e estabeleceu bate-papos com os espíritos através de mesas girantes. Não sei se já observaste, mas muita gente que perde um filho ou pessoa próxima, logo é assediada pelos espíritas. Na ânsia de transcendência, de comunicação post-mortem, há pessoas que caem no engodo. É uma variante mais pragmática da vigarice da vida além-túmulo dos cristãos.

Kardec está sepultado no Père Lachaise, em Paris. Multidões de brasileiros visitam sua tumba. Se fores perguntar a um francês quem foi Kardec, ele não te dirá nada, pois nem sabe de quem se trata.

Eu não saberia dizer nem onde nem quando surge essa idéia estúpida de salvar a própria alma, aliás tão estúpida quando a idéia de alma. Isto é tarefa para historiadores, mas obviamente o cristianismo não é inocente neste imbroglio. Claro que o ateu é um homem mais tranqüilo, ele dispensa muletas espirituais. Mas atenção: há dois tipos de ateus. Há aquele que simplesmente não acredita em Deus nem na craca metafísica que vem junto com essa idéia, nem faz proselitismo. Existe ainda um outro, o ateu militante, aquele que procura adeptos para reforçar sua descrença. Este, na verdade, está doidinho para acreditar em deus. Mal um deus qualquer lhe pisca um olho numa esquina, ele adere de corpo e alma à nova crença.

Então Marx acertou em dizer que "a religião é o ópio do povo"?

Ópio do povo e mais um pouco. Fonte de renda e poder para elites, atraso para o pensamento e para a ciência, um peso inútil para o indivíduo. No caso da Igreja Católica, é um tremendo fator de miséria para o Terceiro Mundo. O Vaticano tem assento na ONU e sempre se opõe às políticas de controle da natalidade. Fator de insalubridade, também. Toda vez que as autoridades falam em preservativos para conter a Aids, não falta padre ou bispo que se manifeste contra. O Congo, que tem uma população de 52% de católicos, está sendo arrasado pelo HIV, graças aos padres que se opõem ao preservativo. Estas políticas merecem um só adjetivo: criminosas.

Vamos falar de literatura. Na sua opinião, qual o valor dos livros na vida de uma pessoa? E quais livros uma pessoa jamais deveria deixar de ler?

Sem livro, não há cultura. Vê os índios, por exemplo. Há tribos ágrafas no Brasil que continuam chafurdando no paleolítico, para alegria e sustento dos antropólogos. O livro, primeiramente, com Gutenberg, e depois a democratização do livro, com Aldus Manutius, foi uma poderosa ferramenta do desenvolvimento humano. O livro liberta, nos livra de idéias preconcebidas, de crendices e religiões. Ensina e humaniza. Tem mais: se não for instrumento de libertação, de informação e de degustação estética, para nada serve. Curiosamente, um dos primeiros livros que me ajudou a jogar fora idéias religiosas, foi a Bíblia. Não há fé que resista a uma leitura atenta da Bíblia. Lendo-a com atenção, vê-se que deus é uma criação humana, e seu conceito depende de época e geografia.

Mas o livro também tiraniza. Já deves ter notado o poder de que se imbui um desses pregadores de rua, ou mesmo de púlpito, ao brandir uma bíblia. Eles se apegam apenas a alguns aspectos da bíblia, os que mais convêm a seus dogmatismos, e ameaçam a clientela com inferno, fogo e sofrimento eterno. Não por acaso, o livro predileto deles é o Apocalipse.

Quanto aos livros que uma pessoa jamais deixaria de ler, a pergunta é complicada. Eu diria que, ocidentais, todos temos de dar uma olhadela em Platão e seus Diálogos. O Quixote é outro grande livro, mas atenção: é preciso que o leitor goste da ironia literária, da Espanha e, principalmente, da antiga Espanha. Sem isto, o Quixote pode tornar-se uma leitura maçante. As Viagens de Gulliver, de Swift, este tremendo libelo contra as instituições humanas, é outro livro importante. 1984, de Orwell, é fundamental para conhecermos o debate do século passado. Para se ter uma idéia das instituições do Ocidente, eu sugeriria A Cidade Antiga, de Fustel de Coulanges. Para bem entender os fundamentos de nossa cultura, importante ler A História das Origens do Cristianismo, de Ernest Renan. São sete volumes, mas é leitura que prende. Particularmente para quem gosta de viajar, é uma visita - ou revisita - a Jerusalém e Roma antigas.

Em matéria de poesia, penso que Fernando Pessoa é o grande poeta do século passado, apesar de a universidade tentar destruí-lo com suas análises teóricas. E sou apaixonado por José Hernández, este poeta maior da América Latina, tão pouco conhecido no Brasil. Martín Fierro é certamente o poema que mais adoro. A propósito, se alguém não o conhece, aqui está: http://www.literatura.org/Fierro.

Mas isso são as minhas leituras. Um outro leitor certamente proporia outras. A leitura da Bíblia também é fundamental, não posso considerar culto quem não a tenha lido. Mas é preciso lê-la sem fé, sem idéias preconcebidas, ou então a leitura só serve para reforçar fanatismos.

A literatura e a intelectualidade já estiveram muito ligadas à boemia, principalmente nas décadas de 1920 e 1930, em que muitas obras "nasceram" em meio a conversas de bar. Você não acha que existe hoje uma certa predominância do meio acadêmico no processo de produção literária? O escritor Gore Vidal acha, por exemplo, que a literatura norte-americana praticamente transferiu-se para a universidade, confundindo-se com a crítica literária. Não há uma separação muito abissal entre o escritor que narra as coisas do cotidiano dos que fazem sua literatura com base na cultura adquirida na universidade?

Considero a literatura como uma expressão da revolta. Ou a literatura contesta a própria época, ou é mero entretenimento. A universidade é uma instituição fortemente ancorada no stablishment. Quando a universidade adota uma obra, é porque essa obra já perdeu sua força de contestação.

O suporte da indústria do livro, hoje, é a universidade. Se um dia o livro foi um instrumento sem o qual a universidade não podia existir, hoje a universidade é um instrumento sem o qual a indústria do livro perde seu vigor. O que era fim, a aquisição de saber através da universidade, se tornou meio para sustentação de um comércio. E o que era meio, o livro como instrumento de deleite espiritual ou comunicação do saber, tornou-se fim, uma mercadoria como qualquer outra, para alegria de editores e massagens no ego de escritores com boas relações junto ao MEC e crítica acadêmica. Claro que estou falando da área humanística da universidade, e particularmente dos cursos de Letras. Na área científica e tecnológica encontramos mais seriedade.

A universidade está até mesmo determinando como deve ser feita a literatura. Há milhares de escritores escrevendo para agradar acadêmicos. Mais ainda: a universidade preserva em formol autores que há muito deveriam estar sepultados. Os acadêmicos criaram um mercado artificial, que chamo de indústria textil - textil assim mesmo, sem acento, a indústria do texto - e só assim certos defuntos ainda nos chateiam. Machado de Assis é um deles. Duvido que algum editor apostasse na publicação do Machado se este não fosse leitura obrigatória de vestibulares e ementas universitárias. Mas Machado até que tem algum valor, como referência histórica. Que mais não seja, como cronista de sua época. O pepino são as clarices lispector da vida, as lígias telles, os guimarães rosas. São elefantes brancos que estariam repousando em paz nos cemitérios de paquidermes, não fosse a venda forçada imposta pela universidade. Guimarães Rosa, por exemplo. Todo mundo cita e ninguém lê. Não fosse a pressão universitária, jamais seria reeditado. Além disso, em Grande Sertões, perdeu uma excelente oportunidade de escrever o grande romance homossexual brasileiro. Diadorim era mulher. A família está salva.

Certa vez, em uma palestra na PUC de Porto Alegre, afirmei mais ou menos isso. Após a palestra, uma professora me procurou. Disse-me sentir-se gratificada ao ouvir aquilo, pois ela não suportava a Clarice Lispector, seus alunos abominavam a Clarice Lispector e ela tinha de impor a Clarice Lispector a seus alunos. O que me espanta em tudo isto é que os universitários engulam calados estas imposições curriculares, sem nenhum protesto, nenhuma proposta de mudança de currículo. Há uma indústria estatal no país, títulos que são impostos à rede escolar por compadrismos dos autores ou herdeiros de autores junto ao MEC ou universidades. A audácia que se atribui aos jovens é mero chavão. Os jovens são covardes e, de um modo geral, engolem tudo que se lhes serve.

Denuncia-se muito a corrupção no governo neste país, mas ninguém ousa denunciar a corrupção no santo dos santos, a universidade. Lygia Fagundes Telles, por exemplo, que participou de uma comissão que escolheria 300 títulos a serem comprados pelo Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação, teve o desplante de sugerir um livro seu, Ciranda de Pedra para a lista dos trezentos. Do dia para a noite, sua cotação subiu nesta suspeita bolsa de valores. Segundo a revista Veja, seu passe foi comprado pela editora Rocco, para a publicação de doze livros, por 500 mil reais. Ora, isto é corrupção.


sábado, junho 23, 2012
 
ENTREVISTA ANTIGA (II)


por Diogo Chiuso e Sidney Vida

Mas nem Machado de Assis escapa?

Quando o Machadinho estava preocupado com o tremendo drama da Capitu - se ela corneou ou não o marido - Nietzsche estava lutando a tapa contra Deus, Dostoievski estava discutindo os grandes problemas da condição humana, o assassinato, o poder, a revolução. Marx (sem entrar em seus méritos ou deméritos) já havia declarado sua guerra particular à Europa. A impressão que se tem é que Machado desconhecia esses autores. Ou, se os conhecia, preferiu ignorá-los. É muito pobre, muito tacanho. Mas Machado não tem culpa do que mais me irrita nele: é sua circulação forçada nas escolas e universidades. Sem falar que ele cometeu um pecado que não tem perdão, criou essa associação de pavões medíocres que se chama Academia Brasileira de Letras.

Essa mediocridade está clara hoje, por sermos totalmente órfãos de bons textos literários e dramatúrgicos, o que reflete, principalmente, em nosso cinema, que não tem boas estórias para transpor para as telas. Na sua opinião, por que isso acontece?

A escassez de bons textos não é só brasileira. É como se a ficção, a força de multiplicar-se, tivesse se exaurido. O escritor tinha uma função social importante até o século XIX, até a primeira metade do XX. Era uma espécie de filósofo, maître-à-penser, o sonhador da comunidade. A indústria editorial cresceu desmesuradamente e a literatura foi se banalizando. Imprensa, cinema e televisão foram aos poucos invadindo o território antes ocupado pelo escritor. Qual a diferença entre um filme e um romance? Do ponto de vista estrutural, nenhuma. Do ponto de vista prático, no filme há imagens e sons, e além disso pode ser degustado em menos de duas horas. Em uma época em que as pessoas são pouco dadas à leitura, isto se reflete na literatura.

Houve época em que escritores promoviam revoluções. Que fez Marx, que influiu no século passado de ponta a ponta? Marx não fez nada senão escrever. Mas o mundo mudou. As revoluções hoje são feitas por cientistas e técnicos em laboratórios. A pílula anticoncepcional foi mais eficaz que milhões de palavras contra o obscurantismo. O chip de silício aproximou mais os homens que inflamados discursos em prol da solidariedade.

Pessoalmente, não leio mais ficções. Cansei. O autor leva muito tempo e muitas páginas querendo criar um clima especial, para então plantar sua tese. Sei disso porque cometi algumas ficções. Prefiro ensaios, que são mais diretos, e particularmente ensaios históricos. E adoro essa novela sem fim nem roteiro, as notícias do mundo que o jornalismo traz. Leio hoje os jornais com o prazer que um dia li ficções. Há romances para todos os paladares, sempre segundo a fórmula do antigo folhetim. Desde clássicos antigos como A Guerra dos Seis Dias, Watergate, A Guerra no Golfo, A Queda do Muro, Ex-URSS, O Conflito nos Bálcãs, até outros mais contemporâneos como A Guerra no Iraque, Intifada em Israel, Rio sem Lei, O Presidente Analfabeto. São obras surpreendentes, que autor algum, por mais imaginoso que seja, ousou conceber.

Para você qual o melhor escritor de todos os tempos?

Pergunta complicada. Dentro do pequeno universo que li, o que mais me toca é José Hernández, talvez por minhas origens gaúchas. Martín Fierro é minha bíblia predileta. Quanto me exilei na Suécia no início dos 70 (voluntariamente, bem entendido, afinal ninguém me obrigou a sair do país) levei no bolso um pequeno exemplar de Fierro. Invejo a capacidade de síntese de um Renan. É preciso muito talento e obstinação para montar aquele imenso quebra-cabeça histórico. Invejo também a intuição de Orwell em 1984, a meu ver a obra mais importante do século passado. Não quero dizer que estes sejam os melhores escritores de todos os tempos. São apenas os que mais admiro. Ah! Tenho também de pôr Pessoa nesta cesta básica. Foi o outro autor que levei em minha bagagem para Estocolmo. Hernández e Pessoa foram os amigos que reconfortaram naquelas noites brancas, solitárias e geladas de Estocolmo.

Fale um pouco sobre os seus livros e quais as influências literárias que você teve para escrevê-los; e aonde eles podem ser achados pelos leitores interessados?

Meu primeiro livro foi um ensaio sobre a Suécia dos anos 70, O Paraíso Sexual Democrata. Publiquei depois vários livros em papel e eletrônicos (contos, dois romances, crônicas, ensaios) e traduzi vinte títulos do sueco, espanhol e francês, entre estes praticamente toda a obra de Ernesto Sábato. Como as publicações em papel estão todas esgotadas, o leitor pode encontrar os eletrônicos no E-books Brasil. Dois romances, Ponche Verde e Laputa. O primeiro é um romance de exílio, dez anos na vida de um grupo de gaúchos que sai de Porto Alegre e perambula por Estocolmo, Berlim e Paris. O segundo, as angústias de um professor de Letras em uma ilha tropical, leia-se Santa Catarina. Mensageiros das Fúrias é minha tese de doutorado em Letras Francesas e Comparadas na Sorbonne Nouvelle (Paris III). Nesta tese, em torno às obras de Albert Camus e Ernesto Sábato, há um capítulo que hoje não assinaria mais, é o capítulo sobre o Che Guevara. Ocorre que Sábato o tomou como personagem em Abadón, o Exterminador, e faz do assassino frio um herói generoso e sonhador. Eu endossei a proposta do autor, também tomei Che como personagem. Hoje, considero que não se pode maquiar impunemente um personagem histórico. Sábato, tenho hoje de convir, caiu na armadilha do terceiromundismo. Foi cúmplice póstumo deste mito que só tem atrasado a América Latina.

Mais os ensaios Engenheiros de Almas (sobre o stalinismo em Jorge Amado e Graciliano Ramos), Qorpo Santo de Corpo Inteiro, Ianoblefe (ensaio jornalístico sobre essa tremenda farsa que foi o massacre de ianomâmis em 93) e A Indústria Textil, ensaios sobre a corrupção literária e universitária. Textil assim mesmo, sem acento, a indústria do texto. Em crônicas, há mais títulos: Crônicas da Guerra Fria, EleCrônicas, Flechas contra o Tempo, Ressentidos de Todo o Mundo, Uni-vos e o último, A Vitória dos Intelectuais, compilação de crônicas do ano passado. Minhas crônicas atuais, e muitas das anteriores, podem ser encontradas no Baguete, Mídia sem mascara, Brazzil.com e Jornaleco.

Influências? Os autores que mais me transformaram, já os citei. Aos leitores, recomendo minhas últimas crônicas. O jornalismo na Web não depende de grandes custos em papel, máquinas, distribuição, logo não precisa bajular o grande público. A liberdade que tenho nos jornais eletrônicos, eu jamais a teria nos jornais em papel.

Você acha que o nível das nossas universidades melhorou ou piorou nas últimas quatro décadas? Quais os motivos? Você não acha que está sendo instituída uma supervalorização do diploma universitário?

Piorou, e piorou terrivelmente. Senti isso quando lecionei Letras na Universidade Federal de Santa Catarina. No último ano de curso, meus alunos não dominavam nem mesmo o português. Aí lembrei de meus dias de ginásio, no Colégio Patrocínio, em Dom Pedrito, pequena cidade gaúcha na fronteira com o Uruguai, na época com uns 15 mil habitantes. Completei o ginásio aos quatorze anos, com um português impecável, um excelente francês, um inglês razoável e arranhando um bom latim. Essa educação, que tive no ginásio, nenhuma universidade fornece hoje. Basta ler os jornais e ver o resultado. Jornalistas oriundos até mesmo da prestigiosa ECA já não conseguem conjugar o subjuntivo e se enredam com os verbos reflexivos. O pronome reflexivo está em vias de extinção. Urge criarmos uma Sociedade Protetora do Pronome Reflexivo, ou este pronome desaparece da língua brasileira. Os jornalistas cometem até mesmo erros crassos, como trocar a letras l (ele) por u. Sauva tua auma, como li certa vez em uma cruz de uma Igreja no interior.

Certa vez, na Folha de São Paulo, escrevi a palavra “preito” em um texto-legenda. Escândalo na editoria. Um subeditor veio reclamar que ninguém conhecia aquela palavra, deveria ser palavra muito antiga. Ora, todas as palavras são antigas, e a imensa maioria delas são bem mais antigas que nós. Tenho dezenas dessas histórias. Isso nos dá uma idéia do nível do ensino universitário hoje.

Quanto à supervalorização do diploma: o papelucho é algo mítico para o brasileiro. Os mercadores do ensino sabem disso e as faculdades proliferam como cogumelos após a chuva. Dessa expansão descontrolada decorre o baixo nível dos cursos. Não há preocupação das universidades na seleção dos melhores. As universidades querem clientes, e quanto mais clientes melhor. Agora chegou no Brasil, tardiamente, a moda das cotas. Querem enfiar os negros à força nas universidades, mesmo quando ineptos para o ensino universitário. Se a moda pegar, vai piorar ainda mais. Todo brasileiro sabe que um marceneiro ou mecânico ganha mais do que muito profissional diplomado. Mas há quem prefira ganhar menos ou mesmo nada, desde que tenha o diploma na parede.

Como você vê a dicotomia entre o grande número de formados que saem das universidades brasileiras todos os anos com a crescente queda de oferta de empregos no mercado formal para pessoas qualificadas?

Isto não é difícil de entender. É decorrência do que falei antes. Ninguém está preocupado com possibilidades no mercado, o que interessa é o diploma. Em minha cidadezinha, vi gente pobre, pagando o que não podia a faculdades particulares, para que os filhos tenham um diploma que não servirá para nada. Diploma é sinal de status no Brasil. Que mais não seja, sempre pode render um empreguinho público ou mesmo um casamento morganático. Só um setor tem ganhos garantidos com a expansão descontrolada do ensino superior: os mercadores de ensino superior. Em minha passagem pelo curso de Letras, vi que o magistério pode não levar a nada, mas tem suas mordomias nada desprezíveis. Bolsas no Exterior, congressos literários, intercâmbio universitário. Isto é, turismo à la farta, boa gastronomia, vida sexual mais diversificada que na província. Tudo isto às custas do contribuinte. Denunciei amplamente, na imprensa, esta corrupção na Universidade Federal de Santa Catarina, que eu chamava de UFSCTUR. Deu em nada. O reitor me processou, mas também não levou nada.

Na sua opinião o que é uma pessoa culta?

Culto, a meu ver, é o homem que conhece história suficientemente para entender a época em que vive. Também acho que uma pessoa, hoje, para entender o mundo em torno a si, deve conhecer pelo menos uns dois ou três idiomas além do vernáculo. Idiomas são janelas abertas para o mundo e viver em ambientes fechados não é nada salutar. Não se pode admitir que um brasileiro medianamente culto não entenda espanhol, francês e inglês. Espanhol, porque é língua irmã, língua do vizinho. Francês, além de ser língua irmã, é a língua das artes. E inglês, queiramos ou não, é o esperanto que deu certo. Se não entender estas três línguas, não saiu da aldeia.

Mas qual o incentivo para estudar se você pode virar um jogador de futebol rico e famoso?

Bom, tens de convir que o jogador de futebol tem vida mais dura que o intelectual. Transpira mais, faz mais esforço. Mas a fortuna só bafeja uns poucos. Para cada moleque de favela que sonha ser um Pelé, há milhares que não chegam sequer a um time de porte médio. A verdade é que o futebol é um meio de ascensão rápida no Brasil, para quem nasceu pobre. É como as touradas na Espanha. Ou como os seminários. A grande safra de padres no Brasil - e provavelmente no mundo todo - depende de famílias pobres, que jogam os filhos numa escola gratuita e num ofício que lhes dá alguma proeminência social. Se o objetivo é ser rico e famoso, estudar de pouco vale.

O que você acha desta busca desenfreada nos dias de hoje - principalmente dos jovens - por alguns valores como fama, poder, corpo perfeito, riqueza e sexo. Essa busca demasiada de tais valores seria característica do declínio da nossa civilização? Por que não se cultiva mais a justiça, lealdade, honra, amor, honestidade e etc., em nossa sociedade?

Começo pela ordem inversa. Sexo é ótimo. Tens algo contra? Riqueza não é ruim, não. Quem gosta de pobreza são os católicos e marxistas. Eu adoraria ser rico. Seria pródigo, daria bolsas e viagens às pessoas que julgasse merecê-las. Bill Gates doa um bilhão de dólares por ano aos países do Terceiro Mundo. Te confesso que adoraria doar um bilhão de dólares. Infelizmente, não posso doar nem mil. Corpo perfeito é uma bela idéia, desde que não seja obsessão. O sedentarismo inerente à cidade deforma o corpo, mas que fazer? Como dizia Sócrates: a vida no campo é linda, mas os amigos estão em Atenas. Quanto a poder e fama, bom, são coisas que não me atraem. Para se chegar ao poder é preciso mentir, bajular a opinião pública. Está aí o Lula. Para chegar lá, mentiu a vida toda. Mas chegou.

Fama também exige mentir. A idéia de escrever para agradar o maior número de pessoas possível me horroriza. Daí minha ojeriza a best-sellers, sejam livros, sejam filmes. Best-seller, por definição, é algo medíocre. Se o que escrevo não irrita boa parte de meus leitores, em algo devo ter errado.

Quanto à justiça, todo mundo clama por ela. Tanto o Lalau como o Fernandinho Beira-Mar se sentem injustiçados. Lealdade é virtude muito cara aos gaúchos, mas quando falo em gaúchos me refiro àquele ser mítico já extinto, que um dia habitou Uruguai, Argentina e a Fronteira Oeste gaúcha. Lealdade é uma virtude camponesa, pouco encontradiça na urbe. Honra? Está fora de moda. Hoje vale mais saldo bancário, carro importado, roupa de grife. Amor? É um mito literário que surgiu nos poemas de Safo, de Lesbos, na Grécia, invadiu a Idade Média e hoje rende milhões de dólares a indústria cinematográfica, particularmente Hollywood. É talvez o mais lucrativo produto de exportação ianque. Honestidade? Já encontrei pessoas que me confessaram ter vergonha de serem tidos como honestos. Passam por panacas. Assim é o mundo em que vivemos. Não adianta deplorar.

Quem gosta de música, quem precisa de música, acha-a uma emoção, uma sensação, uma onda de prazer. Você não pode sentir prazer se não se permitir sentir, principalmente no caso da música erudita - o prazer de um Mozart, de um Beethoven, tem que penetrar em você suavemente, sem que você perceba, dando uma sensação de bem estar. Mas é notório que nos últimos vinte anos - sendo muito otimista -, a música erudita foi marginalizada na nossa cultura; ninguém quer sequer experimentar tais emoções. Qual a sua opinião sobre os ramos atuais da música erudita em nossa cultura?

Vou discordar de teus pressupostos. Existe, é claro, essa massa informe que vai a megashows, curte rock, funk, reggae e barulhos do gênero. Ou essa música fajuta caipira que de caipira nada tem. São multidões, como multidões são também os leitores de Paulo Coelho ou Harry Potter. Essa gente não interessa, são mercado. Mas a música erudita não foi marginalizada, não. Tenta encontrar um ingresso para uma ópera em Paris, Roma ou Viena. Se não tentares com um mês de antecedência, só vais encontrar o "assento do ceguinho". Em Nova York, há duas salas de ópera, lado a lado, com espetáculos diários, eternamente lotadas. Conheço pessoas que economizam o ano todo para fazer circuitos de ópera em ópera no Exterior. Concertos de música erudita também são muito concorridos no mundo todo.

Eu acho espantoso - e reconfortante - que obras de Mozart, Verdi ou Bizet, escritas há séculos, ainda atraiam multidões. Não só atraiam, como também comovam. Há momentos em Carmen ou Don Giovanni que até hoje nos fazem chorar de emoção. A música erudita vem de séculos e tem excelente futuro pela frente. Considerada a população do planetinha, seus cultores são minoria. Mas é uma minoria de milhões. Outro dia, tomei um táxi com uma amiga, o taxista escutava Carmina Burana. Mal entramos, desligou. Minha amiga chiou: deixa aí. Ele ficou surpreso, disse que o CD estava sendo um sucesso entre seus passageiros. Estatisticamente, isto não quer dizer muita coisa. Mas já é algo.

Além disso, o CD e o DVD trouxeram a música erudita para mais perto de seu público. Hoje, podemos assistir dezenas, centenas de vezes, a uma ópera de Mozart. Ou as diversas encenações de uma mesma ópera. Mozart não teve essa chance.

Por que tudo se politizou no Brasil? Ou é da natureza do homem desde sempre? Não me parece que o Brasil se tenha politizado. Há setores politizados, isto sim. O povão gosta mesmo é de futebol, samba, carnaval, novelas da Globo, Ratinho e Sílvio Santos, Fórmula Um e besteiras do gênero.

O que você acha das medidas do governo Lula? Você acha que tais iniciativas diferem das do ex-governo FHC? Acredita que até terminar seu mandato o sr. Luiz Inácio Lula da Silva finalmente cumprirá parte do ideário socialista de suas propostas iniciais?

Lula começou com uma grande bobagem, o tal de Fome Zero. A meu ver, será este programa o fator maior de desmoralização de seu governo. É uma idéia de jerico dar de comer a uma grande massa. Há inúmeros planos assistenciais no Brasil, desde o governo Fernando Henrique. No ritmo em que vamos, teremos em breve metade do país trabalhando para sustentar uma outra metade ociosa e improdutiva. Não se constrói riqueza deste jeito. Esta é a melhor fórmula para chafurdar eternamente na pobreza.

Lula não está seguindo exatamente ao pé da letra o programa de Fernando Henrique, está indo além. Fernando Henrique tentou taxar os inativos, mas acabou desistindo. Para Lula, é uma questão de honra levar a velharada à miséria. Com o argumento de acabar com aposentadorias milionárias, que são exceção, quer tascar a mão no bolso de milhões de pessoas que estão longe de receber aposentadorias milionárias. Não importa se isto ferir um dos pilares dos regimes democráticos, o direito adquirido. O PT pode ter-se civilizado, mas dadas suas raízes stalinistas, pouco está ligando para democracia. Quer fazer caixa rapidamente. Como afirmou o presidente, nem o Congresso nem o Judiciário irão impedi-lo deste propósito. Só Deus. Quanto ao ideário socialista, ao que tudo indica, o PT, uma vez no poder, o abandonou. Ainda bem.

Mas o Brasil não está passando por uma revolução comunista aos moldes de Antonio Gramsci?

Não creio. Se o PT tivesse ascendido ao poder nos anos 80, quando ainda o urso soviético arrotava e fazia ouvir seu arroto no Terceiro Mundo, sem dúvida teríamos corrido o risco de virar uma gigantesca Cuba. Verdade que o socialismo serviu de bandeira para a tomada do poder. Mas, como dizia Roberto Campos, o poder é como o violino: pega-se com a esquerda e toca-se com a direita. Derrubado o Muro, desmoronada a União Soviética, não há mais clima para aventuras socialistas neste mundo contemporâneo. Se os brasileiros todos estrilam contra um salário mínimo de 75 dólares, não vejo como reduzir, nos dias atuais, o salário de um médico ou professor universitário a vinte ou trinta. O paraíso cubano, onde médicos e professores foram reduzidos a esta condição de miserabilidade, só serve de referência para militantes idosos, saudosos de suas bandeiras de juventude, e universitários sem noções da História recente, como o são geralmente os universitários hoje. O salário de um profissional liberal nos atuais países socialistas e ex-socialistas, um mendigo diligente o tira em uma semana no Brasil. Tampouco consigo imaginar os brasileiros se submetendo à tirania de um partido só.

O poder tornou o PT mais pragmático. Um dos últimos movimentos no mundo a empunhar as bandeiras do obscurantismo hoje é a guerrilha católica do MST, cujas lideranças cultuam assassinos como Mao, Lênin e Castro como paradigmas para a sociedade. Há quem desconfie do namoro dos encanecidos petistas com o regime de Cuba. Árvore velha não se curva, sob risco de quebrar. Condenar Cuba, para vetustos senhores como José Dirceu, Genoíno, Tarso Genro, seria algo como negar a própria biografia. O mesmo fenômeno vemos nas universidades, onde velhos marxistas continuam fiéis à antiga crença. Negá-la seria o mesmo que afirmar: “eu fui um idiota a vida toda e minha obra não vale nada”. A um homem já maduro, é preciso muita coragem para tal admissão, e coragem é moeda rara. O máximo que o PT conseguirá fazer é afundar um pouco mais o país na pobreza. E daí não passa. Espero.

Quanto ao Gramsci, me parece que atualmente seu maior divulgador é o Olavo de Carvalho, ao conceder-lhe créditos por esse pensamento comunizante que ora vige no país todo. Discordo. Não consigo ver a militância do PT, de Gramsci em punho, tentando encontrar em seus livros a fórmula de introduzir o comunismo no Brasil. Não é preciso ler Gramsci para concluir que, dominadas a universidade e a imprensa, tem-se o controle do que pensa a população. As esquerdas brasileiras são malandras e não precisam de maiores leituras para saber disso. O Olavo vê o mundo a partir de um prisma filosófico e pensa que atrás de todo fenômeno social deve existir um pensamento. Ora, não é bem assim. Basta apanharmos os milhares, talvez dezenas de milhares, de jovens que se dizem marxistas. Raros, raríssimos, são os que leram Marx. Nessas doutrinas messiânicas há algo de místico que não apela à razão, mas ao irracionalismo. De fato, no Brasil le fonds de l'air est rouge, como diziam os franceses em 68. Daí a estabelecer um regime comunista, vai uma longa distância. Comunismo significa miséria. Se os brasileiros já acham injusto um salário mínimo de 75 dólares, imagino que a população jamais aceitaria um regime onde um médico ganha 20 dólares por mês.

Com a falência do chamado socialismo real, surgiu o neoliberalismo (sic) como saída política e econômica para as sociedades ocidentais. Esse modelo, no entanto, já começa a dar sinais de falência. O sr. enxerga uma terceira via nesse processo ou uma saída inovadora baseada em novos princípios?

Isso de neoliberalismo mais me soa como insulto criado pelas esquerdas para atacar o poder. Palavras como capitalismo, burguesia, classes dirigentes, tornaram-se obsoletas com a derrocada do comunismo. Era preciso criar um novo vocabulário, novos palavrões ideológicos. Conheço pensadores, teóricos e obras do liberalismo. Do tal de neoliberalismo, não conheço nada. O PT usou muito o novo palavrão em sua campanha. Agora, ao repetir o programa de Fernando Henrique, faz boquinha de siri. As sociedades ocidentais encontraram uma boa saída tanto no capitalismo como nas sociais-democracias, sistemas que aliás em pouco diferem. Isso de buscar uma terceira via é recurso retórico dos derrotados da história que não querem admitir que foram derrotados. Os petistas já andam piscando o olho para a social-democracia, que até bem pouco era considerada reformismo. Será divertido ver o PT, partido no governo de um país pobre, sendo aceito pela Segunda Internacional, movimento de países ricos. Será um vexame, algo como um penetra maltrapilho em baile da corte.

O que é ser um estadista? Você acha que houve algum em nosso país?

Quem decide quem foi ou não estadista é a História e, no caso brasileiro, esta senhora parece não ter-se decidido por nome algum. Mas há um grande má vontade, um propósito veemente de negar a importância dos governantes militares de 64 em diante. Da mesma forma que Francisco Franco salvou a Espanha - e a Europa, eu diria - do comunismo, nossos militares salvaram o país desta peste que contaminou o século passado. Da mesma forma que Franco, foram situados como vilões. Até o século XIX, os vencedores escreviam a História. Do século XIX em diante, graças à propaganda soviética, surgiu um fenômeno novo: os derrotados passaram a escrever a História. Hoje, no Brasil, são cultuados como heróis os apparatchiks financiados por Moscou, pagos para transformar o país numa tirania comunista.

Podemos acreditar em um futuro para o nosso país?

Futuro é claro que o país tem, já que não há perspectiva alguma de que amanhã desapareça do mapa. Como vai ser este futuro? Esta é a pergunta que se impõe. Não sou nada otimista. Com as favelas se multiplicando, com os ditos moradores de rua aumentando nas metrópoles, com o tráfico dominando e administrando comunidades inteiras, com os sedizentes sem-terra invadindo fazendas, repartições e pedágios, com um governo populista dando - ou pretendendo dar - comida em vez de trabalho e educação, não consigo ver dias lindos pela frente. Tenho mais de meio século de existência e neste curto tempo já vi países escapando à pobreza e levando prosperidade a seus cidadãos. Sem ir mais longe, aí estão a Irlanda, Espanha e Portugal, que deram um tremendo salto econômico nas últimas décadas. Se antes forneciam mão-de-obra aos demais países europeus, hoje têm de fechar fronteiras para escapar aos migrantes da África, Ásia e Leste europeu. O Brasil marcha em ritmo de ganso: um passo, uma cagada. Vivi na Europa e viajo seguidamente para lá. Cada viagem me dói na volta. Vejo países cada vez mais lindos, organizados e ricos e volto a um país cada vez mais sujo, bagunçado e pobre.

Qual a sua mensagem para os jornalistas que estão iniciando sua carreira?

Resumindo: antes de mais nada, aprender português. Depois, ler História.

sexta-feira, junho 22, 2012
 
HULA GARU


Com a idade, fica cada vez mais difícil encontrar autor ou leitura que fascine. Já não consigo encontrar em um livro o deslumbramento com que li Fédon, o Quixote ou as Viagens de Gulliver. Verdade que nos últimos 2.300 anos não surgiu um novo Platão, faz meio milênio que não surge um novo Cervantes e pelo menos uns quatro séculos que não ocorre um novo Swift. Nosso século não produziu ainda outro Orwell ou Fernando Pessoa. José Hernández morreu há mais de 100 anos e ainda não surgiu no continente poeta que se lhe equipare. Nietzsche morreu com o século passado e a humanidade ainda não o repôs.

Enfim, o século recém está começando. Mas tendo a desconfiar que tão cedo não teremos gênios de tal porte. Olho em torno, e não vejo nada de mais importante na área da literatura ou poesia. Ou nosso século é estéril, ou talvez necessitemos de um bom distanciamento no tempo para reconhecer o gênio.

O gênio, de modo geral, tem consciência de seu gênio. No prólogo a Novelas Ejemplares, Cervantes faz seu auto-retrato. Nesta confissão de um homem machucado pela vida, lamenta seus dentes, "ni menudos ni crecidos, porque no tiene sino seis y son mal acondicionados y peor puestos, porque no tienen correspondencia los unos con los otros". Também glorifica a mão perdida em Lepanto, "herida que, aunque parece fea, él la tiene por hermosa, por haberla cobrado en la más memorable y alta ocasión que vieron los pasados siglos ni esperan ver los venideros". Ali está o homem, mutilado pela vida, mas inteiro e orgulhoso de seus feitos. Mais tarde, ciente da grandeza de sua obra, Cervantes dirá de Cervantes:

"tú, que en la naval dura palestra
perdiste el movimiento de la mano
izquierda, para gloria de la diestra!"

Swift, que curiosamente é mais conhecido no Brasil como um autor de histórinhas infantis, não foi exatamente um homem benquisto pelos seus contemporâneos. Deão de Saint Patrick, em Dublin, Irlanda, escreveu anonimamente a maior parte de suas obras. Diz a lenda que sua obra maior, As Viagens de Gulliver, teria sido jogada de uma carruagem pela janela adentro do editor. Mas seu estilo era inconfundível. Para que se tenha uma idéia do humor do deão e de seu conflito com a própria época, bastaria citar esta reflexão sua: "Quando um verdadeiro gênio aparece no mundo, podeis conhecê-lo por este sinal: todos os cretinos se aliam contra ele".

Pessoa se revela em um de seus ensaios, Heróstrato:

“A avassaladora produção literária tornará a seleção igualmente avassaladora, pela reação. A verdadeira produção abundante de livros bem escritos fará com que muitos livros antigos pareçam menos bons do que quando se destacam de um pano de fundo de nada. (...) A competição entre os mortos é mais terrível do que a competição entre os vivos; os mortos são mais numerosos”.

Aqui o homem já diz ao que vem. Quando afirmava que o gênio é o mais comum dos homens, tão comum a ponto de passar despercebido em sua época, obviamente falava de si mesmo. Hostil à celebridade, Pessoa morreu quase inédito e considerava ser editado uma ofensa à genialidade.

Depois de ler estes autores – e outros menores mas nem por isso menos importantes – fica difícil encontrar pensamento novo na literatura contemporânea. Existem é claro reflexões sobre os dias que correm, que não poderiam ter sido feitas por quem não os viveu. Mas muitas vezes os homens do passado demonstram mais conhecimento do presente que nossos coetâneos.

Em minha idade, o mesmo está acontecendo com as demais artes, particularmente com o cinema. Fui iniciado com Chaplin, Bergman, Louis Malle, Fellini, Kurosawa, Peckinpah, cineastas personalíssimos, cujas obras eram sempre esperadas com sofreguidão. Hoje, está difícil encontrar quem os substitua. Depois destes, vi obras interessantes, dessas que jamais encherão várias salas ao mesmo tempo.

Sempre me comovem La Strada e Noites de Cabíria, de Fellini. Como aliás quase todos seus filmes. Adoro Bas Fond, do Kurosawa (vi o filme em Paris, não sei qual o título brasileiro), como também seus demais filmes. Curto muito também o Buñuel, particularmente O Anjo Exterminador. Falando nisso, alguém viu J'irais comme un cheval fou, do Arrabal? Vale a pena. Pelo que sei, não passou no Brasil.

O dileto entre os diletos, que vejo e revejo com prazer, é A Festa de Babete, de Gabriel Axe. Certamente, o mais belo e sensível filme que já vi. Mexeu muito comigo também The Map of Human Heart, de Vicent Ward, que creio que não passou no Brasil. No fundo, a busca de uma filha pelo pai, um esquimó que, por circunstâncias da vida, tornou-se fotógrafo em um bombardeiro inglês durante a Segunda Guerra. Comovente.

Mash, de Robert Altman e A Vida de Brian, de Terry Jones, até hoje me fazem rir, particularmente este último. É a mais ferina sátira já feito pelo cinema ao cristianismo. Palombella Rossa, de Nanni Moretti, ataca os comunistas. (Só passou no Brasil quase clandestinamente, em um festival no Rio). Louve-se o engenho do cineasta: consegue fazer um filme dinâmico e divertido que se passa praticamente o tempo todo dentro de uma piscina.

Morri de rir vendo East Side Story, produção alemã da romena Dana Ranga. (Passou em um cinema escondido nos confins de São Paulo. Quando fui ver, tinha apenas três espectadores). Outro filme belíssimo que vi foi Lepota Poroka (em francês, La Beauté du Peché), do iugoslavo Zivko Nikolic, com uma atriz divina, Mira Furlan. Uma moça que vivia nas montanhas da Iugoslávia, vai trabalhar em uma colônia de nudismo na costa montenegrina. O conflito cultural é inevitável.

Em Estocolmo, lá por 71, vi outro belo filme que jamais deu as caras por aqui, The Bus, do turco Tunç Okan. Um grupo de imigrantes turcos clandestinos é jogado dentro de um ônibus, que é abandonado em plena T-Centralen, a estação central do metrô de Estocolmo. Foi o primeiro filme que vi sobre a condição do imigrante na Europa.

Ultimamente, os melhores que vi foram Adeus Lênin, do alemão Wolfgang Becker, e Slogans, do romeno Gjergj Xhuvani, uma sinistra comédia situada nos dias da ditadura de Nicolae Ceaucescu. Muito Além do Jardim, de Hal Ashby é outro filme importante. Nos remete imediatamente a nosso Primeiro Magistrado, o Supremo Apedeuta.

Fora isto, tenho vivido relativamente longe do cinema. Difícil encontrar algo novo nesta idade, dizia. De qualquer forma, com alguma paciência, sempre se cata alguma obra-prima perdida na televisão. Foi o que aconteceu nesta madrugada. Vi Hula Garu (Um Paraíso Havaiano), comovente surpresa do cinema japonês, filme do qual jamais havia ouvido falar, dirigido por Sang-il Lee.

O relato é inverossímil. Estamos em 1965, na pequena cidade mineira de Iwaki, no Japão. Ante a iminência do fechamento das minas, a Joban Coan Mining Company resolve construir um Centro Havaiano. Sob protesto dos moradores, é colocado um anúncio convidando moças que desejem aprender hula, a dança típica do Havaí. O encarregado Yoshimoto convida a senhorita Madoka Hirayama para dar aulas às interessadas.

Reação violenta da comunidade, que acha que todo mundo deve mourejar nas minas e que corpo de baile é coisa de prostitutas. Contra tudo e contra todos, Madoka insiste em seu projeto e vence. Acaba tendo a adesão dos mineiros. Suas garotas provam que se pode criar um mundo onde se pode trabalhar e ao mesmo tempo sorrir.

A história é inverossímil, afirmei. No entanto, as resenhas do filme me informam que o relato é verídico. Que o Parque Havaiano Joban foi inaugurado em 15 de janeiro de 1966. Esperava-se um público de 1000 pessoas durante a semana e umas 3000 nos fins-de-semana e dias de festa. A realidade é que o empreendimento se converteu num sucesso que atraiu 1,5 milhão de pessoas no ano. Em 1990, trocou o nome para Spa Resort Hawaiians e continua evoluindo, embora se mantenha como manancial termal integrado na estrutura social da região.

Madoka Hirayama teria hoje mais de 70 anos e ensinou 318 bailarinas. A demonstração mais cabal de que a grande arte enobrece e é capaz de comover uma aldeia de mineiros, que só viam na vida um sentido, a extração de carvão.

Lindo e comovente. Recomendo vivamente.