¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, abril 09, 2014
 
CARTA DE MADRI


Ilmo. Sr.
Prof. Juan Mayor
Director del Instituto de Cooperación Iberoamericana
Madri

Findo o prazo para a entrega do trabalho de pesquisa previsto para a conclusão deste XXI Curso Iberoamericano, sinto-me na obrigação de expor-lhe as razões pelas quais decidi não concluí-lo – aliás nem mesmo começá-lo – decisão esta que não foi tomada ontem, mas há boas semanas atrás e após longa meditação.

Selecionado como bolsista para este curso – o que muito me honra – cheguei a Madri absolutamente entusiasmado para defender uma tese em torno à obra de Camilo José Cela, autor que traduzi e introduzi no universo literário brasileiro. Mas uma coisa é a disposição de defender uma tese, outra é encontrá-la. Para melhor explicar-me, permito-me voltar alguns anos em meu passado, quando vivi a mesma experiência como bolsista do governo francês.

Ao postular uma bolsa na França, elaborei um projeto de pesquisa que julgava sólido e pertinente: Les racines françaises de l’oeuvre d’Ernesto Sábato. A comissão de seleção por certo também o terá julgado sólido e pertinente, pois recebi quatro anos de bolsa na Université de la Sorbonne Nouvelle (Paris III).

Pois bem: após seis meses de leituras, tive de render-me à evidência de que meu projeto não era sólido nem pertinente, que as raízes da literatura sabatiana não estavam na Gália, mas bem mais ao Leste, em Dostoievski. Para descobrir que trilhava caminhos que não conduziam a lugar nenhum, necessitei exatamente do prazo que agora me é concedido para a descoberta, elaboração e defesa de uma tese.

Para descobrir efetivamente uma abordagem original – pois penso que toda tese deve primar pela originalidade – e defensável, necessitei de outros seis meses. Para perseguir bibiografias, redigi-la e preparar sua defesa, tive mais três anos. Menção: Très Bien.

Ao sair do Brasil, tinha em mente voltar com u ensaio que desse uma ampla visão do homem Camilo José Cela, de sua obra e dos diversos gêneros percorridos, centrando minha análise e sua novelística. Projeto que, evidentemente, logo se revelou inviável. Pensei então em analisar apenas suas novelas, o que também era intenção desmesurada, dada a exigüidade do tempo.

Sejamos modestos, considerei, estudo então apenas enfoque celiano da Guerra Civil Espanhola, o que reduziria minha análise a apenas dois livros, San Camilo, 1936 e Mazurca para Dos Muertos. Passei então a ler sobre a Guerra Civil, uma vez delimitado o campo de estudos, seria bem mais fácil encontrar a assertiva que constituiria minha tese.

Mergulhei então neste conflito, que talvez tenha produzido maior mar de tinta do que de sangue. Quando pensei ter encontrado o cerne do que seria minha tese, já estávamos em maio. Produzi algumas escassas páginas, que não me agradaram, e concluí, honestamente, que o produto final não teria o nível que costumam ter meus ensaios. Decidi então, tranqüilamente, interromper a redação apressada de um trabalho do qual não teria motivo algum para orgulhar-me, nem maiores estímulos para defendê-lo.

Seria eu então incapaz de escrever cem páginas sobre Cela e a Guerra Civil? A resposta é não. Escrever cem páginas para mim jamais constituiu problema, sou homem que vive de escrever e ensinar. Poderia perfeitamente tê-las escrito. Mas preferi autocensurar-me, insatisfeito com a qualidade do que via sair de minhas mãos.

Penso que são duas – e não apenas uma – as teses que defendemos quando recebemos uma bolsa em país estrangeiro. A primeira, aquela que devemos submeter à uma banca, talvez não seja a mais importante. Pois o que nos impregnará o espírito e nos transformará interiormente, é o que chamo de “segunda tese”: o contato íntimo com outra cultura, o confronto com outras visões de mundo, a descoberta de novos autores e livros.

Em Paris, meu doutorado mais significativo, aquele que me transformou, tanto intelectual como culturalmente, foi o segundo, o que não tinha obrigação nenhuma de concluir: a leitura diária do Monde, a vivência cotidiana dos debates parisienses, o conhecimento das ruas e da História que as envolve, dos cafés e dos escritores e artistas que os freqüentaram, as visitas aos museus e monumentos, sem falar nas viagens pelo interior da França.

Poderia ler tudo o que foi escrito, por exemplo, sobre as batalhas de Madri. Mas jamais as sentiria tão vividamente se um dia não tivesse atravessado o Manzanares, passeado pela Casa de Campo e Parque del Oeste. Poderia ler todas as biografias existentes sobre Valle-Inclán, mas jamais conseguiria visualizá-lo se não tivesse freqüentado o Gijón ou deambulado pela Calle del Viejo Idiota.

Podemos ler, reler e tresler Don Quijote, mas só entenderemos sua verdadeira natureza percorrendo a geografia de suas andanças. Esta é a tese vital, penso, a que favorece o intercâmbio, a que levaremos guardada na retina e no coração, e que divulgaremos até o fim de nossos dias em nossas charlas cotidianas. A outra, a primeira e obrigatória, permanecerá provavelmente empoeirada, ad aeternum, nalguma estante.

Com tudo isto quero dizer que, se furtei-me – por autocrítica – à sustentação da primeira, a segunda eu a defendi ampla e corajosamente nos cafés, praças e ruas de Madri e das cidades de Espanha.

Não termina aqui a mais importante tese, ou pesquisa, como quisermos. Viver quatro anos em Paris permitiu-me conhecer meu continente. No Brasil, sei lá por que estranhas razões, nossos intelectuais tiveram os olhos sempre voltados para o Atlântico, tentando talvez vislumbrar, quem sabe em um dia sem bruma, os cafés da Rive Gauche. Nosso diálogo com o mundo hispano-americano sempre foi escasso, senão inexistente.

Para um autor paraguaio ou argentino, por exemplo, o caminho mais curto entre Buenos Aires e Rio, ou Asunción e São Paulo, sempre passou por Paris ou Nova York. Ernesto Sábato só foi conhecido no Brasil após ter sido traduzido na Europa e Estados Unidos. Roberto Arlt, este Dostoievski portenho, só teve Los Siete Locos traduzido ao português meio século após sua publicação na Argentina. E já que falamos em letras hispânicas, La Família de Pascual Duarte só foi publicada entre nós... no ano passado!

Assim como vivemos isolados culturalmente de nuestros vecinos, vivemos isolados também fisicamente. Não há na América Latina uma capital que seja ponto de encontro dos latino-americanos. “América Latina capital Paris”, disse um dia Carlos Fuentes. Embora hoje pudéssemos acrescentar centros como Berlim, Barcelona e Madri como capitais de nosso continente, isto não modifica os termos da equação: nossos pontos de encontro continuam situados em continente europeu.

Voltando à segunda tese: esta oportunidade que agora tive neste curso, de conhecimento da América Latina, em função do encontro com colegas de diferentes países e culturas, vale mais do que qualquer reflexão teórica e feita às pressas sobre textos.

Se constitui objetivo principal do Instituto de Cooperación Iberoamericana o intercâmbio cultural e o diálogo entre Espanha e América Latina, penso que, em meu caso, estes objetivos foram plenamente atingidos. Homem de fronteira, sou contrabandista inveterado, e volto desta viagem fecundado por novos autores e livros, sem falar em uma melhor capacitação para traduzir literatura espanhola. Penso que uma visita a dois ou três editores brasileiros poderá ser bem mais útil ao diálogo que cem páginas precariamente redigidas. Estou certo que deste curso resultarão novas traduções e não poucas crônicas de viagem.

Em sinal de reconhecimento a esta oportunidade de conhecer mais intimamente a Espanha – antigo e obsessivo sonho meu, que reiteradamente manifestei em tudo que escrevo – deixo-lhe, en souvenir, Prof. Mayor, estas duas primeiras traduções de Camilo José Cela no Brasil, A Família de Pascual Duarte e Mazurca para Dois Mortos. É modesta contraprestação a uma bolsa, disto tenho consciência. Mas foram feitas com carinho e sem pressa, e orgulho-me de assiná-las, o que não seria o caso de meu entusiasta – e abortado – projeto de tese.

Madri, 10 de junho de 1987