¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, julho 01, 2014
 
NA CORDA BAMBA *


Comer todos os dias às margens do Atlântico cansa, não é verdade? Sem falar no eterno peixe-frito-com-pirão que nesta Ilha de Santa catarina passa por culinária, mais que a vontade de mudar de geografia nos impelem as ganas de degustar algo menos prosaico, tentar outros pratos às margens do Pacífico, por que não? Só que para isso é preciso voar e terrível é meu medo de voar. Para afastá-lo, me agarro em qualquer coisa, livro, garrafa ou mulher. Mal o avião decolou, aterrissei no primeiro volume das memórias de Arthur Koestler, La Corde Raide (A Corda Bamba).

Ao sabor do acaso, caí em suas lembranças da Viena dos anos 20, na época da inflação austríaca, quando ninguém sobrevivia senão às custas de expedientes, quando respeitáveis donas de casa tinham de prostituir-se para equilibrar o orçamento familiar, onde, naquele sabá de feiticeiras, foi destruída a classe média da Europa Central e de onde emergiram ideologias totalitárias: “era o começo do fim da vida civilizada ao longo do Danúbio e ao leste do Reno”.

Koestler nos fala de uma pendenga judicial envolvendo seu pai, causa perdida em função da corrupção dos juizes, já que na época o salário mensal de um magistrado alcançava o preço de uma libra de manteiga, ou quase isso. Os juizes, escreve Koestler, “eram apenas um pouco mais difíceis de serem comprados que suas mulheres ou filhas nos bares da Kärntnerstrasse”.

Considerando que eu saía de um Brasil com uma inflação — escamoteada, diga-se de passagem — de uns dez por cento ao mês, e teria como final de viagem a Argentina, onde a inflação já alcançava dois por cento ao dia, minha mania de refugiar-me em um livro resultava mais inquietante que o próprio vôo.

Antes de continuar esta viagem, melhor pôr-lhe uma data. Eu viajava nos primeiros dias de maio. Hoje, estima-se a nossa inflação em dezesseis por cento ao mês, e a de nuestros hermanos ninguém sabe a quantas anda. Angustiado com o panorama traçado por Koestler, preferi enfrentar o vôo e tentar comunicar-me com o universo circunjacente.

O avião estava assim de gaúchos e paulistas, gaúchos de Porto Alegre e paulistas da capital, é bom salientar. E que acontece quando porto-alegrenses e paulistanos se encontram a dez mil metros de altura? O assunto é um só, as desgraças do PT, tema que rendeu muita charla a viagem toda. Descendo, mais tarde, rumo à Patagônia, não havia quem não se dobrasse junto à janela, tentando situar o vulcão mais adequado onde jogar a Erundina, quem sabe o Osorno, talvez o Chalbuco. Ou mesmo o Puntiagudo. Proposições mais eivadas de humanismo sugeriam exilá-la na ilha de Chiloé, “os nordestinos não agüentam o frio”. Eu, que nada tinha a ver com os dramas dos paulistanos, sei por que lembrei Euclides da Cunha:

— O nordestino é, antes de tudo, um forte. Sou mais Punta Arenas.

O diálogo transcorria assim ameno, todo mundo buscando soluções mais amenas para Erundina, a tal ponto que acabei descontraindo. A meu lado havia uma chilena. Fechei Koestler e tentei fechar meus ouvidos ao debate tupiniquim, afinal enfrentava meu medo de voar justo para afastar-me de meu país e, para afastar meu medo, que mais não fosse, puxei conversa:

— E Pinochet?

Mal ouviu nominar o tirano, os olhos da chilena se encheram de justa cólera. E de medo, afinal voltava ao Chile. Ao saber-me brasileiro, ousou confiar:

— No Chile, nós odiamos Pinochet.

O Boeing continuava adejando rumo ao Oeste, ao longe já se divisava as neves da Cordilheira, atrás de mim alguém comentou que o dólar na Argentina, de 83 austrais passara a 104, assim de um dia para o outro.

Com aquela sensação de que, uma vez metade da viagem feita, metade do perigo havia passado, fui relaxando e passei a perscrutar meu meio ambiente.

Não poucos turistas era jovens bancários do Banco do Brasil em greve e, como acho que vou acabar voltando ao assunto, passo a abreviá-los por JBBBG. “Não é que a gente seja a favor da greve” — dizia um JBBBG catarinense — mas a pressão dos petistas é tal que temos de cair fora”. Maravilha de queda, pensei com meus botões, nada mau trocar de oceano para fugir a pressões sindicais. Entendi então parte do charme petista: seus militantes, com sua agressividade, forçam zelosos funcionários a apoiar a greve do outro lado dos Andes.

Esta temática contaminou a viagem toda, o assunto dominante nos bares e boates de Bariloche — permita-me o leitor antecipar escalas — era, entre mesas repletas de trutas, veados e javalis, o problema da greve no Banco do Brasil. Terá terminado ou não? Foram ou não foram atendidas nossas reivindicações? Reivindicações, a meu ver, fundamentalmente justas: que horror um JBBBG, sem sequer ter curso superior, ganhar apenas o suficiente para curtir sua greve na Patagônia! Salário justo seria o que lhe permitisse curti-la nos Alpes ou Pirineus, em Roma ou Paris.

Já mais relaxado, consciente de causas maiores que meu medo de voar estavam em jogo, fui contaminado pelo desprazer de viajar quando meu país vivia uma crise constitucional, sendo incerto o resultado das justas reivindicações sindicais. Uma eterna angústia perpassava os olhos dos jovens bancários, não só durante o sobrevôo da cordilheira, como também ao navegar pela paisagem de sonho dos lagos de Todos los Santos e Nahuel Huapi, sob a presença imponente do Osorno: será que a greve acabou?

Em Florianópolis, contou-me um desses reacionários sem cura que um caixa do BB, mal tendo curso secundário, ganhava o dobro de um professor titular na universidade, com doutorado e vinte ou mais anos de carreira. Tentando negar as calúnias do direitista abominável, perguntei a um de meus parceiros de vôo qual era seu salário.

— Estás invadindo minha privacidade — reagiu o bancário. Isso só a mim diz respeito. No máximo, à Receita Federal.

Enfiei a viola no saco e voltei-me para a chilena. Além de seu perfil contra a escotilha, crescia, imponente, a Cordilheira.

— Pinochet? Um canalha. Empobreceu as elites do país, com essa piada populista de tributar violentamente as grandes fortunas. Por isso teve 44% de votos no plebiscito, coisa que nem Mitterrand fez no primeiro turno. Com o dinheiro da gente, deu casas aos vagabundos das favelas de Santiago e Valparaíso. Coisa de comunista, isso de tributar os ricos e dar aos pobres, logo aos que nada produzem.

O clima era de absoluta insatisfação naquele Boeing que transportava injustiçados turistas de um oceano a outro, revolta que nem mesmo as generosas doses de Chivas ou Ballantines conseguiam atenuar. Meu medo de voar reduzia-se cada vez mais a suas verdadeiras dimensões, preocupação egoísta com a própria vida, quando no avião as preocupações eram antes de tudo sociais. Que percentual de aumento a classe levará na greve? Verdade que por setecentos dólares se pode comprar peles chiquérrimas em Buenos Aires? E o austral, será que vai continuar caindo?

Angústias, a meu ver, perfeitamente compreensíveis no Terceiro Mundo, pois se estou viajando sem saber qual é meu atual salário, rumo a outro país de moeda que se esfarela de hora em hora, como posso saber quanto realmente paguei por um vison ou chinchila?

O austral, efetivamente, caiu ainda mais, nos dias seguintes o dólar estava cotado a 170, 200 e mesmo 250 austrais, o que permitia uma refeição no requintado Clarks, de Buenos Aires, por cinco dólares por cabeça, o que mal paga uma sola de sapato de codinome filé, sem vinho algum, nos restaurantes da Santa e Bela Catarina. A inflação acabaria chegando a 4% ao dia, o que daria, segundo os especialistas, um índice de 24.000% ao ano. Nesta altura do vôo, sei lá o que mais me fazia medo, se Koestler ou o Boeing.

Mas é nisso que dá escrever sobre coisas passadas, na verdade ainda não cheguei a Santiago e já falo da Argentina. O fato é que esta angústia corroía a todos, pairava no ar um certo arrière-goût a almejas, piúres, locos e picorocos.

Estamos sobre a Cordilheira. As comparações são inevitáveis, não falta quem evoque os Alpes ou os Urais, evidência de que não navego com marinheiros de primeira viagem. Um gaúcho me fez emergir de minhas elucubrações:

— O senhor também é criador?

Enfim, uma alma gêmea. Criador sempre fui, desde que rabisquei minhas primeiras ficções. Só não sabia que tal profissão de fé se me estampara no rosto, ou talvez o gaúcho me conhecesse de peleias passadas, o fato é que ser reconhecido sobre os Andes constituía uma gentil massagem a meu ego. Quis saber então qual a linha de produção de meu interlocutor:

— Hereford, Angus-Abeerden.

Voltei a Koestler. Dias depois, nas cadeirinhas suspensas de Bariloche, numa Argentina à beira da hiperinflação, eu voltaria a rever meus colegas de vôo, em monótona sucessão, os cabos de aço girando e fazendeiros e bancários passando. Lá embaixo, os lagos andinos e mais ao leste, apenas intuído, um Brasil em crise. Mas isto aconteceu mais adiante, bem depois daquele momento bendito em que as rodas encontram a pista e o piloto reverte as turbinas. Estou em Santiago.

Alívio. Quinze graus, céu de anil. Um por cento, a inflação de abril.

* Joinville, A Notícia, 11.06.89